É carnaval

WhatsApp Image 2018-01-27 at 08.09.26

25 de janeiro de 2018

Momentear quebra limites entre os vivos e os mortos. Ontem meu devaneio foi com alguns que já se foram. Bom reencontrá-los.

Quando Zé Hamilton quis me apresentar a seus ancestrais em Pontevedra, na Espanha, antecipei-me ao verão europeu. Levei-o para conhecer Bezerros. Ficamos na janela alta da casa de minhas tias, qual um camarote, olhando a festa de rua. Foi na passagem de ano de 1977 para 1978. Meia noite, apagaram-se todas as luzes da cidade para voltarem a se acender depois da queima de fogos. No alto da Igreja Matriz, as luzes com o ano novo substituíram o velho.

Sempre achei que o ano novo não entraria em cena sem esse ritual. Acabou-se. Novos ritos, hoje carregados de medo da rua, outrora espaço de cidadania.

Descemos à rua. Hamilton ficou menino de seis anos, quando viveu e aprendeu a ler com um professor em Gajate, aldeia de Pontevedra. Encantado, olhava os tabuleiros de alfenim (massa muito branca de clara de ovo e açúcar a que se dá ponto especial) ricamente embrulhados em papéis de seda coloridos. No lado de trás da igreja matriz, circulavam os matutos chegados da roça para a festa, vestindo roupas novas, calças azuis de alvorada (que é pra Matuto não andá nú, na voz de Luiz Gonzaga) tomando cachaça com a melhor carne de caça assada na brasa. Pintor nas horas vagas, seus olhos exultavam com o colorido das ruas que, em devaneio, levou-o de volta à velha Espanha.

Enquanto estou momenteando, o mundo pega fogo. Mesmo ontem, continuei minha recusa em ver televisão, ler notícias. Impus-me retiro e cumpro-o com prazer. Não acho que vale a pena trocar Marguerite Duras e Henry Miller, meus atuais companheiros de cabeceira e rede (não a social, a de balançar), por qualquer fragmento do que se passa no mundo. Alimento meus escritos com boa literatura.

Contudo, esse mundo dividido por uma cerca intransponível me chega às escondidas, sem que eu tenha lhe dado permissão para entrar na minha casa. Abro uma mensagem de whatsapp e lá está o discurso de Lula ontem. Ouço e vejo atentamente. Continua reduzindo a política brasileira à vulgar dicotomia entre bons e ruins, nós e os outros, nós e a elite. Não é a ideologia que transmite o calor de suas palavras ao falar sobre cada feito de seus governos. Suas palavras são de tão forte penetração popular porque ele sabe onde busca-las: em seus sentimentos e emoções de criança, esses que carregamos em nossos sonhos, no mundo onírico. Uma inteligência privilegiada, aperfeiçoou, com o poder e o mando, essa capacidade de comunicação. Não por nenhuma técnica de discurso, mas por ter vivido e sofrido as carências dos pobres, Pau de Arara de Garanhuns para São Paulo.

No maior comício pelas “Diretas Já”, na praça da Sé em São Paulo, calhou de ficarmos arrodeadas, eu e uma amiga, de jovens petistas que vaiavam Franco Montoro, Ulisses Guimarães e quaisquer outros que não fosse Lula. Exaltei-me, fiz discurso sobre democracia, eles nem ligavam. Desisti. Quando Lula pegou o microfone, porém, fiz coro aos jovens ao meu redor, ainda mais entusiasmada do que eles, gritando: “Aí, conterrâneo.” Meu Deus, que fenômeno de comunicação!

Ontem, na telinha de meu celular, vendo e ouvindo o discurso de Lula, reportei-me ao O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. A história, quando se repete … Lula ainda é líder carismático, o melhor que tivemos, par a par com Getúlio Vargas. Cai como uma luva no magnífico tratado de Max Weber. Porém, tomou para si o que é do povo, numa manobra digna do melhor jogador de xadrez. Pois às conquistas do povo ele deu um empurrãozinho, sem dúvida, mas foi antecedido por tantos. Quem são os outros, cara pálida?

Os brasileiros pobres, aos trancos e barrancos, vão encontrando seu lugar na sociedade. Por muitos fatores. Inclusive o pertencimento a uma religião, às igrejas evangélicas. Através delas, são todos irmãos, trabalhadores e bandidos, outra dicotomia cravada não pelo discurso, mas pela própria sociedade. Essa irmandade nada tem a ver com a Teologia da Libertação, com os intelectuais libertários de redes sociais. É ali, na cotidiana luta pela vida, nos ônibus lotados, na solidariedade dos hospitais públicos. “Essa é minha cara”, diz o Brasil. Dirá nas eleições presidenciais desse ano. E ninguém de bom senso se atreveria a dizer como, a essa altura do campeonato.

São Paulo é outro país não apenas pelos seus diferenciais de riqueza, mas também porque possui uma ampla classe média. A classe média da cidade de São Paulo é um colchão que se basta. E o Recife?

Aqui ficamos, tais os coqueiros e castanholas da beira mar do Pina e Boa Viagem: imprensados. Eles, entre o calçadão e a beira mar. Nós, entre vestígios da raiz maléfica da cana de açúcar e a miséria espalhada em esgotos fétidos, calçadas e ruas esburacadas, becos ameaçadores. E a classe média, com a desgraça colada à sua porta, foge do povo como o diabo da cruz.

Domingo passado fui à estréia de mais um bloco de carnaval, “Eu acho é Graça”, parodiando um seu antecessor mais antigo de Olinda. Ao final, enquanto a orquestra ainda tocava em frente a um restaurante da rua que dá nome ao bairro das Graças e ao bloco, de cansada, sentei-me na beirada da calçada e fiquei observando as pessoas dos joelhos para baixo. Tivesse um neto de três anos de idade (ah, quem me dera!), essa seria sua visão daquela pequena multidão. Algum sociólogo desocupado já se referiu aos calçados das pessoas como símbolos de classe. Uma senhora de antigamente recomendava às filhas solteiras que prestassem atenção aos sapatos dos pretendentes. Como os ricos eram poucos e sua prole feminina extensa, conformou-se com sapatos de funcionários e caixeiros.

Ali, sentada na beira da calçada, só vi sapatos de ricos. Antes, procurávamos pelo menos lugares com o cheiro do povo para nos enclavarmos. Depois, abandonamos os bairros da Boa Vista, de São José, em favor da Praça de Casa Forte, do Poço da Panela, das Graças. Quem sabe, terminaremos confinados em um navio em alto mar?

5 comentários em “É carnaval

  1. Que boa surpresa um blog de Teresa! Que alegria estar aqui momenteando, eu também, em sua companhia! A escritora ficou danada de boa, é um prazer essa leitura. Vida longa ao bloco Momentear! Já registro desde logo minha admiração e meu carinho por esta minha amiga tão cheia de vida!

    Curtir

Deixe um comentário