28 de janeiro de 2017

Não diria como o poetinha, “porque hoje é sábado”. Digo porque hoje é domingo. E em um domingo de sol no mês de janeiro, quando o carnaval já bate à porta querendo entrar, a praia é uma festa. Hoje destaco duas, das que vi. Uma é prenúncio do paraíso. A outra é a entrada do inferno. Direi das duas.
O sol ainda estava escondido. Poucos caminhando na areia da praia. Em frente ao edifício Saint- Exupéry, o mar tem o mau costume de voltar da maré cheia para a baixa deixando restos de poça d’água, caminhos em superficiais sulcos da terra molhada parecendo as partes femininas, espelhos d’água. Vão até a ladeirinha da terra fofa. Ando então em longos trechos pelas águas, como o São Pedro de Paulo Vanzoline, que, para impressionar a pessoa amada é acompanhado de Santos Dumont, do velho Piccard e de Olavo Bilac.
Encontro, como em outras caminhadas, os de branco fazendo a formatura. Outro dia eram do curso de Serviço Social, de uma faculdade Joaquim Nabuco, na Avenida Guararapes. Dezessete, sendo apenas um rapaz na turma. Passei por eles na hora exata em que uma das moças fazia explodir, tal estivessem em um podium, uma garrafa de champagne. Os demais, com taças de plástico dourado. De costas para o mar, de frente para os fotógrafos. Hoje eram de um curso de Administração. Passei ao largo, ouvindo apenas palavras de ordem dos fotógrafos para que não perdessem a melhor hora do sol nascente.
Mais adiante, em frente ao Edifício Califórnia, cinco barracas de camping. Muitos jovens, alegres, que é palavra em inglês para designá-los. Puxei conversa com três que vinham do mar em direção às barracas. Lembrou-me uma cena em outro tempo, eu na idade deles, em um lugar frio e isolado. Voltava do banheiro e apressei o passo ao ouvir os primeiros tiros para cima de Fleury e sua tropa de doze homens armados. Queria alcançar o mais rápido possível os companheiros. Estávamos em Ibiúna. Chuva, lama, na pressa em chegar onde estavam os outros setecentos, caí na lama. Naquela hora, talvez pelo medo, achei que tinha morrido atingida por uma bala. Foram segundos. Levantei-me. Ficou no chão enlameado todo o dinheiro que caiu do bolso do casaco. Calçava um tênis num pé e um chinelo maior do que meu pé no outro.
Aqui, tudo ao contrário, os três jovens vinham alegres do mar para se juntar aos outros. Ficaram meio espantados quando lhes disse que o que faziam era bom e necessário, quase revolucionário: ocupar as ruas. E que eles eram corajosos o suficiente para enfrentar o medo, o ingrediente mais presente em nossa vida social desses tempos. Que voltaria depois, com meu celular para fotografá-los, a eles e às barracas, ao grupo todo. Assegurou-me um deles que estariam ali até pelo menos às oito horas da manhã e haviam chegado às dez da noite para um lual sem lua.
Voltei. Logo depois das sete, de carro, com o celular e duzentos reais na pochete. O sol já estava quente e meu corpo cansado o suficiente para me proibir de caminhar mais uma vez. Deixei o carro em uma das poucas vagas, porque hoje é domingo e vários grupos vão correr sob suas bandeiras e deixaram seus carros estacionados em quase todos os espaços de Segundo Jardim. Passei por todos o mais rápido que pude para chegar aos das barracas de camping.
Lá estava a maioria deles. Porém apenas uma barraca. Os que conversaram comigo há uma hora não mais. Uma única cadeira de praia ocupada pelo mais gordo, moreno, cheio de graças. Cedeu-me a cadeira para eu fazer as fotos. Expliquei do bloco, um deles anotou o endereço. Posto a seguir a melhor foto de vocês, meninos e meninas alegres, como prometi. E quero tê-los como leitores de meu bloco. Vocês, mais do que muitos outros leitores, entendem perfeitamente o que é momentear. Até apontaram os que mais momenteiam. Ah! Que encontro alegre tivemos nos poucos minutos que fiquei com vocês.
Na volta, fotografei os que se agrupavam embaixo de toldos com os nomes de suas bandeiras, ao som de frevos de carnaval. Nada melhor que frevos em janeiro, em fevereiro, em março, o ano todo, como diz o mais velho programa da Rádio UFPE, O tema é frevo.
Num micro-ônibus com o nome de um vereador, parado junto ao meu carro estacionado, o motorista me pergunta se eu não quero passear pela cidade, que ele acabara de trazer um grupo e iria buscar outro para passar o dia na festa do Segundo Jardim, que hoje tinha também a saída dos corredores. Não se importou que eu tirasse fotos.
O inferno não começou nesse domingo. Principiara desde a quinta-feira, num palco improvisado na barreira do Pina com Brasília Teimosa. Fui perto do palco. No sábado, em pleno horário de praia, não passava de meia dúzia as pessoas assistindo ao show ao vivo. Uma moça de shorts justinho, em uma barraca afastada do local, fazia coro aos músicos pela parte de seu corpo mais valorizada em nosso país. Somente ela, pois, no palco, a pobre banda e o cantor recitavam palavras com pouca melodia em não mais que duas batidas que dizia: polpa da bunda, na bunda, da bunda, da polpa, da bunda.
Uma dúzia de seguranças vestidos de preto, para guardar a meia dúzia que passava naquele momento pela areia, olhando de viés o que se passava no palco. Procurei o responsável. Apontei para os letreiros em cima do palco e lhe perguntei, incomodamente, Então, é isso cultura? Patrocinada pelo Ministério da Cultura? Ele olhava para o outro lado. Chamou um segurança e principiou uma conversa, sem me dar ouvidos.
Quanto teria recebido de cachê cada um daqueles pobres músicos? Quanto ficou no bolso de toda uma escala desde quem ganhou a emenda parlamentar até o organizador último, aquele ali, com cara de malandro rico, desdenhando de uma maluca que tem a ousadia de chegar perto dele com perguntas impróprias?
Entre 2008 e 2009 fui presidente do Centro Josué de Castro, aqui no Recife. Ainda bem que vinha de uma experiência bem sucedida de negociadora de projetos no Cebrap, em São Paulo, com a Interamerican Foundation, com a Novib, com órgãos do governo. Ou teria sucumbido minha auto-estima, ao cabo de dois anos de tentativas infrutíferas de aprovação de projetos nas negociações de financiamento. Apenas um deles foi aprovado parcialmente, para recuperar o acervo de Josué de Castro, sob a batuta da saudosa Francisa.
Cheguei a viajar mais de uma vez a Brasília, aos corredores do mesmo Ministério da Cultura que ora financia quatro dias do mais puro lixo. O salva-vidas concordava comigo. Fosse uma boa MPB, um frevo. Imagine o Maestro Spock? Que maravilha! Aí sim, juntaria gente. O povo gosta do que é bom.
De nada adiantou minhas viagens a Brasília. Uma loura, dessas de quem se pode dizer que é gostosa, olhando a papelada sem nada entender, prometeu examinar um dos projetos com carinho. E ficou por isso mesmo. Com as negociações do final do ano passado entre o poder executivo e o legislativo, aumentaram as verbas para as emendas parlamentares. Salve, salve, pátria amada!