
11 de fevereiro de 2018
Um amigo paulistano, Ulrich Hoffmann, quando tinha casa em Caraguatatuba, onde passamos mais de um réveillon, costumava louvar o tempo nublado na praia. Pele muito clara, como a minha, usufruía melhor as delicias do mar e das caminhadas sem o sol abrasador do verão. Pois foi assim hoje cedo: um domingo que amanheceu nublado, após as chuvaradas de ontem. O que me permitiu um belo passeio, que conto daqui a pouco.
Ontem foi um dia muito especial no Recife. Há muito o Galo da Madrugada desbancou o Zé Pereira. É ele quem nomeia o sábado de carnaval. Tem Galo para todo gosto. Marília e Ronaldo, queridos amigos, fantasiaram-se com o motivo da bandeira de Pernambuco e, de tão bonitos, saíram nos jornais locais. Não sei se algum outro estado da federação tem assim forte e arraigado esse cultivo à bandeira. A nossa é a da Revolução de 1817 e eu acho que o certo seria Frei Caneca ser nosso herói nacional, pois foi o único movimento separatista da Colônia que ultrapassou a conspiração e atingiu o processo revolucionário de tomada do poder.
A foto que ilustra a matéria de hoje é a praia do Pina, defronte de minha janela. Vejam que não tem nenhuma barraca e apenas um caminhante, às 8 horas da manhã. O dia também amanheceu nublado, porém logo veio o sol, como hoje, e, mesmo assim, a praia ficou deserta todo o dia. São os únicos do ano assim: o dia do Galo, no sábado de carnaval, e o dia de Nossa Senhora da Conceição, em oito de dezembro. O povo estará no centro da cidade ou no morro da Conceição.
Hoje saí de casa às 5:30, já atrasada. Tomo o caminho de Brasília Teimosa. Ao chegar à praia de lá, aos fundos do Iate Clube, o tempo continuava nublado. Sigo em frente e vou até o final do calçadão. A avenida que ladeia o calçadão se chama Brasília Formosa. Acabada essa avenida, terminal dos ônibus, acabam-se as casas e vejo a margem do rio Pina à minha esquerda.
Como se chamaria esse rio no tempo dos índios? Porque Pina era o sobrenome de um judeu, chegado com os holandeses, que veio se estabelecer com sua venda dos lados de cá, atravessando desde a Ilha do Recife de barco. Deu nome ao lugar e, de tão poderoso, também ao rio.
O mar agora já não é a brabeza de seu encontro com as pedras ou com o muro de tijolo. É uma doce lagoa para onde virão daqui a pouco os banhistas, para as mesmas sombrinhas, cadeiras e mesas de plástico das praias do Pina e Boa Viagem. Adiante, a Casa de Banho, que virou outra coisa.
Pina, Casa de Banho, tem um tolete que é do teu tamanho. Quem, do Recife, não sabe essa modinha? Foi a primeira coisa que minha mãe me disse quando eu comuniquei que havia comprado um apartamento no Pina. Claro que alguém já deve ter contado a história de tão desabonadora musiquinha. É do tempo da escravidão.
Naquele tempo, não se sabia o valor do mar. Os senhores de engenho, alguns pensando no rio Tejo ou no rio Douro, construíram suas casas senhoriais à beira do Rio Capibaribe, com frente para o rio. Em pequenas cabines de palha fechadas, tomava-se banho. Separados, mulheres e homens. De manhã cedo, as escravas de casa descarregavam os penicos em grandes potes de barro, que eram levados por escravos homens para serem derramados no mar. Esses escravos eram chamados tigres. Pior ofício da escravidão: carregar bosta de branco.
Não podiam despejar na área do Porto do Recife. Lá, estavam sendo descarregados seus novos irmãos da África, em troca das sacas de açúcar exportadas à Europa. Andavam mais um pouco, atravessavam a Ponte Giratória (com atenção à hora em que ela estaria se abrindo, aquilo era um terror) e despejavam a merda toda na praia do Pina.
Foi tempo que algum português descobriu que as águas do rio Pina eram ainda melhores que as do rio Capibaribe. Construíram a Casa de Banho. De um lado, o rio. Do outro, o mar bravio batendo nas pedras. Lugar de grande beleza. Como só viam o mar ao longe, nunca repararam no que era trazido de volta, que o mar, terreiro de Iemanjá, a mais asseada das Orixás, nunca gostou de nada fedido em sua casa. Mandava de volta à praia a sujeira dos brancos.
No dia em que os ricos daquele tempo descobriram que as águas do mar eram ainda melhores para tomar banho do que as do rio, deram de cara com sua própria merda. E foi preciso acabar a escravidão, os tigres, para, depois de muito tempo, construírem um emissário submarino que trouxe de volta a pureza das águas do mar à praia do Pina.