
14 de fevereiro de 2018
Finalmente, a quarta-feira de cinzas. Os blocos se despedindo do carnaval. As véia de véu, terço e missal indo para a missa.
Outro dia nublado, bom de caminhar. Mar cheio, rumo mais uma vez a Brasília Teimosa. Passo apenas por uma igreja, da Assembleia de Deus. Uma escadinha de cinco degraus de um lado, acesso a cadeirantes do outro. A porta está entreaberta e vejo o salão de culto, sem imagens, sem velas. Cadeiras de plástico, as mesmas que povoam toda a orla. Ninguém dentro. Sigo. Saí de casa às 5:30. Deve de ser 5:45 quando avisto de novo o mar e atravesso a rua para chegar ao final do calçadão da Brasília. Ouço música de carnaval, boa, frevo. Em um dos últimos bares à beira mar do Pina ainda é carnaval. Dou as costas e vou em frente, com as passadas ritmadas pelo som da orquestra que vai se afastando, se afastando, até sumir e se ouvir apenas o soberano mar bravio nas pedras e na murada construída em seu auxílio.
A briga do mar com as rochas inverte o gênero desses elementos. O mar é feminino, la mer, como dizem os franceses. E a rocha, masculino. Na aparência, rochas são sólidas, corajosas, fortes. Porém é o feminino mar, com sua constância de bater e recuar, bater e recuar, quem molda a pesada rocha, avança, escolhe sua praia. Até quando a rocha (o) não mais o contém, ao mar (a), e os humanos são obrigados a acrescentar muralhas. Que passam a ter outra serventia: anúncio de blocos de carnaval (Tubarões da Brasília, saiu no domingo de carnaval, perdi), propagandas de comércio, de igrejas, de deus. Nunca seu nome foi tão usado em vão.
Enquanto caminhei, peguei chuviscos. Agora, para iniciar o tempo sombrio da quaresma, do roxo, do preto, chove forte. Chuva de vento, daquele que entra por qualquer fresta zunindo nos ouvidos. Que enlouquece os coqueiros com ânsias de voar, fossem passarinhos.
Não poderia nomear a crônica de hoje com outro título que não fosse Quarta Feira de Cinzas. Repetido, passa a ser 02. Minha amiga das letras, Maria Flora, que até ante-ontem era leitora perspicaz e cuidadosa de meus escritos, rebelou-se contra o zero das minhas crônicas do Momentear. Seu comentário não aparece no blog, mas chegou ao meu e-mail.
“Vale para os nove primeiros dias do mês: não vai zero antes do número! O zero só tem função para preencher os espaços vazios nos formulários de computador. O povo passou a usar indiscriminadamente esse zero em todo lugar. Por favor, volte à pureza dos números essenciais nas datas do início do mês. Além de inútil, o zero à esquerda do número (simples aritmética) suja a limpidez da quase-frase de uma linha da data”.
Ora, ora, querida amiga. Pois se esse bloco está na rua justamente fantasiado de computador? Num blog? O mais importante, porém, é que acho mais bonito o algarismo precedido do zero do que sozinho, com a pureza dos números essenciais. Quero-os impuros. Como fossem uma jangada saindo ao mar, os números sozinhos carecem do zero aos primeiros dias do mês, enquanto dura o impulso manual dos pescadores. Depois, aí pelo dia 10, chega o motor à diesel e a jangada, com seus dois pescadores a bordo, pode seguir sozinha rumo ao alto mar.
Nessa quarta feira de cinzas em que a chuva intermitente me obriga a abrir e fechar janelas, aproveito para me comunicar diretamente com meus leitores. Alguns, tão avessos à tecnologia como eu, preferem e-mail ou whatsapp. Vejam que linda mensagem recebi por este último:
“É carnaval gostosamente sem ser carnaval. / É mais do que carnaval no seu suor horizontal. / É vida contada nos dedos sensíveis da observação vertical”. Luiz Otávio Cavalcanti se fez poeta quase do calibre de João Cabral.
Também repasso para vocês as palavras de Lourdes Rodrigues, por pura vaidade, embora saiba que ela exagera:
“Teresa, querida, você é uma escritora em sua plenitude. Vejo-a como Hemingway com um bloquinho na mão, anotando tudo que o seu olhar de escritora capta para escrever depois. Qualquer pessoa que passe pelo seu caminho torna-se personagem, como Humberto. Acabou de fazer um romance, fez um blog ou bloco como você mesma o chama, participa da revista Será, está escrevendo pelas paredes como Sade. Isso é muito bom. Muito bom mesmo. Fiquei feliz com a sua menção à Oficina, mais ainda quando falou da sua insegurança na publicação dos seus contos nas Escrituras e, ao escrever o seu romance, foi encontrar lá, num daqueles contos, um insight decisivo para o enredo”.
Encerro essa “Quarta Feira de Cinzas 02” dizendo que, por essas e por outras, estou tão contente com meu bloco, que sigo em frente com ele por onde for. Estandarte na mão – caderno, caneta, computador e celular para fotografias –, certamente me acompanhará a Lisboa e Cabo Verde, para onde irei no último dia desse mês de fevereiro.