Ainda mãe Tapuinhas

19 de fevereiro de 2018

Chuva pede recolhimento. Às cinco horas da madrugada, a hora em que acordei, parecia que teríamos um dia de chuvas intermitentes, como ontem e ante-ontem. Fiquei em casa, lendo e relendo o que havia escrito, corrigindo, enxugando, e o tempo passou ligeiro. Agora, já saí da madrugada, que hoje foi curta: são seis horas da manhã.

Ficou tarde para caminhar. E eu achando bom porque assim escrevo. Nos países temperados há mais escritores e leitores por isso. Inverno, neve, frio, as pessoas são obrigadas a ficar mais tempo em casa, no conforto de recantos aquecidos.

Danado é que o sol aparece com vontade de ficar quando sento para escrever às seis horas da manhã. Paciência, sol. Paciência, praia, trópicos. Antecipo o inverno. E minha casa, ao madrugar, não precisa de aquecedor. Basta desligar o ar condicionado e deixar entrar a brisa do mar, agora que não tem mais chuva. Não preciso gastar uma fortuna em taxa de aquecimento. A minha cidade é aquecida o ano inteiro. Mesmo quando chove. Mesmo ao ventinho frio das noites chuvosas de inverno.

Ontem contei a três pessoas a história sucedida na última sexta feira. Em todas as vezes, encerrei a narrativa oral com um sentimento de frustação. Falar é mais pobre do que escrever. Não vou mais contar para ninguém. Quem quiser  que leia.

Como dizia, quando fui interrompida pelo meu filho, que dormiu aqui em casa do sábado para o domingo, a coisa ruim maior de todas que saiu do intestino de meu irmão era da cor e da textura do ferro. Descrevia aquela cena no mesmo lugar em que estou agora. No mesmo quarto, com a luz do dia nublado entrando pela janela. Gosto de escrever sentada na cama, encostada em almofada triangular, travesseiro no colo escorando o caderno. Estava tão absorta que tomei um susto quando Miguel, Mãe?

Pois estava no intestino. Dizem ser o segundo cérebro. De meu irmão, foi de onde saiu mais coisa ruim. Além da língua de bode, tirou de lá umas coisas parecidas com pregos enferrujados de portas antigas, grandes, recobertos de salitre.

Colocados no prato de sobremesa, ninguém tocava nesses seres monstruosos, inanimados. Somente as mãos poderosas da índia, lavadas e esterilizadas com água de alfazema a cada parto. Ficariam no prato de sobremesa, junto com outros pratos, de outros pacientes do dia, esperando a hora do Ângelus. A partir dessa hora até a meia noite do dia em que foram retirados dos corpos, deverão ser incinerados no fundo do quintal, simulacro da Grande Mata onde viviam nossos antepassados indígenas.

A jurema, planta cheia de espinhos, é quem comanda a operação.

Vejo as pequeninas mãos da mãe Tapuinhas caminhar mais para cima da barriga, após a retirada de meia dúzia de coisas ruins do intestino. Está chegando no estômago, mãe? Também tenho males de estômago, diz o paciente. Dali ela extraiu duas coisas ruins.

Parecia que estava encerrada a operação. A índia suspira cansada. Toma mais um gole d’água. Meu irmão está com o corpo inteiramente entregue aos cuidados da parteira, que dele não tira vida, mas morte. E fala da rinite, sinusite, bronquite, alergias que se espalham ligeiro como folhas numa ventania.

Meu fio, para chegar na sua cabeça (ori, complemento eu), careço de mais  que um gole d’água. Vou fumar. Vocês se importam? A senhora também bebe, minha mãe? De de manhã até o meio dia bebo café, minha fia. Da tarde pra noite, só água. Passe a caixa de fósforos, minha fia. Eita, a vela se apagou. Eu acendo, mãe. Foi o ventilador, diz ela, vou virar ele para a parede.

Depois de três ou quatro baforadas em cachimbo de boca grande, desses de feira, levanta-se da cadeira e se posta atrás da cadeira de meu irmão, ele virado de costas para ela. Reinicia o mesmo caquiado sutil na testa, logo acima do nariz. Agora não tem o sentido da visão para auxiliar. Apenas o tato.

Na verdade, o tato é o sentido quase único no leu labor cirurgião. A arte da índia está nas mãos. Mãos que tecem fibras de folhas do mato para fazer cestos. Mãos que preparam os alimentos para serem cozidos. Mãos de tirar piolho em cabeça de menino. Agora, em horário de trabalho, suas mãos lhe causam grande cansaço, pois toda a sabedoria que foi buscar na Jurema concretiza-se pelo tato. Mesmo quando está diante da coisa ruim saindo de dentro do corpo, olha pouco. Sua vista está sempre baixa. Mesmo conversando comigo, sua auxiliar, pedindo-me mais e mais água de alfazema, Pedindo para colocar um defumador aceso embaixo da cadeira do paciente antes de principiar o trabalho de cabeça.

Da testa, de onde retira dois ou três parafusos de ferro, passa à cabeça, depois que o paciente lhe fala de suores noturnos. Dali retira uma coisa ruim em formato de cobra. Mostra a ele. O pratinho já está quase cheio. Ele quer mais. Já que está ali, aproveita para uma revisão geral. Diz do joelho.

Mais um suspiro profundo da índia. Porém sua expressão de rosto está tranquila, o pior já passou. Joelho é coisinha leve. Bote a perna aqui no meu colo, meu fio. Olha uma perna longa, vestida de calça caqui, pés calçados com tênis. Quer que tire o sapato? Carece não, meu fio. E as calças, para ficar o joelho de fora? A índia pensa, matuta. E ele se dá conta, Não preciso tirar. Essas calças, de trilha, transformam-se em bermudas. Abre o fecho-eclair na horizontal e nessa hora mãe Tapuinhas relaxa, sorri. Em tantos anos de trabaio, meu fio, nunca tinha visto uma carça desse tipo. Sai uma coisa ruim do joelho esquerdo. Duas do direito. Esse estava mais inframado, não era meu fio? O paciente confirma.

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