Luzes da noite

22 de fevereiro de 2018

Caminhei hoje à luz artificial da eletricidade. 4:30 da madrugada. Jameson, o porteiro da noite, é a primeira pessoa que encontro nesse dia que ainda dorme. Responde ao meu bom dia como se dissesse, Dona Teresa, espere mais um pouco, deixe o dia clarear. Nada diz. Abre a porta e me deixa sair.

Ao acordar, da janela vira um caminhante no calçadão. Por que não eu? Pensando bem, não é a primeira vez. Só que da outra, passei pelo quintal do velho, meu vizinho de frente de casa, lugar seguro, e andei menos que cinco minutos até chegar às jangadas, outro lugar seguro. Se Jameson toma conta de mim, imagine os pescadores, homens do mar, apóstolos da natureza!

Os homens gostam de tomar conta das mulheres, protegê-las. É da aprendida natureza deles, de pai para filho.

O caminhante já estava longe quando atravessei a rua totalmente deserta. Calçadão deserto. Enquanto caminhava, na avenida passaram três motoristas conduzindo ônibus vazios, certamente saindo da garagem para seus pontos. Dão-se ao luxo de usar as exclusivas faixas da aristocrática avenida Boa Viagem. Serão filhos de Iemanjá. Pedem a sua bênção para mais um dia, Proteja, minha mãe, os passageiros igual sardinhas em lata, livrai-me de algum conserto de rua, manifestação de protesto, ladrões de carteiras e celulares. Livrai-me, senhora, de todo mal, Amém.

Todos os dias um motoqueiro evangélico passa em frente ao meu prédio  anunciando a hora certa, 5:30. No Terceiro Jardim, onde faço alongamentos, serão 5:25. Estou no final da sessão e lamentei não ter encerrado um pouquinho antes. Como já fiz outras vezes, teria acenado com o braço inteiro e sorridente, retribuindo o cumprimento matinal dele.

Os bons dias da madrugada alta são mais calorosos do que os da sociedade doente, que ainda não começou seu desfile pelo calçadão. Andar como prescrição médica é sinal de doença do nosso tempo. Antes do automóvel e do medo da rua, caminhar fazia parte da vida. Saia-se de casa para trabalhar, tomar transporte, bonde, ônibus, fazer compras, levar meninos à escola, ao parque.

Morando em Boston, sem carro, voltei a experimentar esse caminhar simplesmente para viver. Era outono. Depois que meu filho saía para a escola perto de casa, já estava a postos para ir à Universidade. No caminho para o ponto do metrô, que em Brookline era em trilhos descobertos, passava por uma praça onde sempre estava sentada uma velhinha. No segundo dia, trocamos sorrisos. No terceiro, sentei-me a seu lado. Como fôssemos velhas conhecidas. Velhos falam pausadamente. Nada melhor para quem tateava no inglês. A amizade durou até o frio do inverno. Aulas de inglês para mim. Um convívio caloroso para nós duas. Quem sabe, não fui sua filha?

Um dos brasileiros que entrevistei em Framingham, outro município da região metropolitana de Boston, mais afastado e pobre que Brookline, dizia-me, “Professora, um velhinho do asilo onde trabalho me chama de primo. E acha mesmo que sou seu primo”. Esse foi um dos nichos de trabalho dos brasileiros imigrantes: o do calor humano. O outro, da limpeza de casas, com o cuidadoso asseio das mulheres mineiras. Esse é o Brasil profundo, que descobri proseando com aquela gente longe de casa.

Eita, entrei de novo em atalho. Desculpe, leitor. Estava no calçadão de Boa Viagem. Acabou meu tempo, mas isso é uma prosa com amigos queridos, dessas conversas que perdem o prumo e não acabam, levantamos das cadeiras, continuamos na porta da sala, do elevador. Deixa o elevador descer que preciso terminar o que estava dizendo.

A luz elétrica, feita pelo homem, é uma maravilha. Essas do calçadão aqui de Boa Viagem, nem se fala. E sabida? Só apaga quando o sol vem ofuscá-la. Quando abandonei o brinquedo infantil que me serve de academia de ginástica, ainda uma das quatro lâmpadas do poste de rua esperava que as cores rosa claro, cinza e azul bebê do céu dessem lugar ao amarelo e ao encarnado do sol que todo dia nasce para colorir o mundo.

No dia que puseram de pé o primeiro poste da Chesf no quarteirão de minha rua em Garanhuns, poste de concreto, irmão rico daqueles pobres de madeira, não fomos à escola. Meu pai decretou feriado na nossa casa. Eu cursava o quarto ano primário e minha irmã, a demandante do decreto, o segundo.

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