A Marielle
16 de março de 2018
Meu querido professor, depois colega do Departamento de Sociologia da Unicamp, Octávio Ianni, disse-me um dia, a propósito de um convite que eu recebera para fazer uma palestra sobre tema que já não me interessava, A gente nunca se livra, professora, dos pecados que cometeu.
Esse blog é de literatura. Crônica, quando escrita com a régua e o compasso adequados, é literatura. Com bons frutos. Talvez por esse jeito de ser do brasileiro, povo de muito falar e pouco escrever. Exportamos crônicas para o mundo. Porém, nesse bloco, a sociologia comparece sem ser chamada, vai se enxerindo entre um parágrafo e outro.
Hoje resolveu tomar conta.
O primeiro curso que ministrei na Unicamp, Introdução à Sociologia para alunos do curso de História, afastada que andava dos manuais, inventei uma proposta que deu certo. Durante todo o semestre, leram em casa e discutimos em classe pedaço por pedaço de Casa Grande & Senzala. Resultou-me dali a comprovação de uma hipótese: este livro, criador do mito fundante da nação brasileira, o qual não andava ainda nos bancos da academia, fazia parte porém, assim como Os Sertões, da cultura brasileira. Mais da metade de meus alunos de São Paulo conseguiram-no em estantes da geração de seus avós. Os exemplares da biblioteca seriam insuficientes para cada um ter o seu para leitura. Isso foi no ano de 1985.
Hoje, daria um semestre inteiro, talvez na mesma Introdução à Sociologia, uma semelhante leitura do primeiro capítulo do primeiro livro de O Capital. Na Unicamp, assim como na USP, era leitura obrigatória aos alunos de Ciências Sociais os três porquinhos: Durkheim, Marx e Weber, pelo menos um semestre para cada um. A mim sempre coube Max Weber, cujo programa elaborei e foi seguido por muitos anos e outros professores.
O fetiche da mercadoria. O assunto veio-me à tona quando li a manchete no jornal do vizinho, antes de tomar um banho de chuva no calçadão pela madrugada. Marielle, Presente!
Li os comentários nos jornais do país e mensagens de rede social. Chico de Assis comparou ao clima que sucedeu ao assassinato de Edson Luíz, também no Rio de Janeiro, ao qual se desencadearam manifestações de rua e atos repressivos que culminaram no Ato Institucional 5, em dezembro de 1968. Eu estava nas ruas do Recife, Presente! Agora, olho o mundo de minha janela.
Em grande parte dos comentários, não escapou a associação do assassinato de Marielle com o de outro poder da república, a Juíza Patrícia Acioli, em 2011. Esta, ameaçada de morte pela sua luta contra as milícias. Marielle, em começo de luta declarada contra a violência policial nas favelas, aos 38 anos, negra, linda, lésbica, não teve tempo de ser ameaçada. Ambas, defensoras dos direitos humanos.
Será que não existem mais sociólogos no Brasil? Onde estão que não enxergam tudo isso pela ótica da sociedade? Sinto-me sempre como um pregador no deserto quando escrevo a palavra guerra civil. Sim, guerra civil. Costumam começar com um cadáver. Temos dois. Duas corajosas mulheres. E sabemos há muito que o mundo, o nosso país com grande cabedal nesse assunto, não está dando certo com o poder na mão do patriarcado. Que não carece de ser necessariamente regido por homens.
Não me interpretem equivocadamente, por favor. Não estou nem de longe preconizando o poder às mulheres. Minha declaração de feminismo é branda, como a crônica que antecede a essa, a propósito de uma simples galinha. Ainda não havia lido sobre o assassinato de Marielle quando a escrevi.
A tecla que venho batendo é essa: estamos em guerra civil não declarada. E não me venham com governo esse, governo aquele, essa divisão imbecil entre coxinhas e mortadelas. Outro dia, no trânsito, ouvia na rádio da Universidade Federal de Pernambuco uma líder do movimento docente. Abstraindo o tema tratado, a reforma da previdência, era ouvir o discurso de uma pastora evangélica, tal a fúria. Em vez do demônio, o neoliberalismo.
Quase não leio análises econômicas nem políticas para explicar e dar solução às crises. Aqui, acolá, alguém se lembra que existe a sociedade, velha, costurada por séculos de uma desigualdade social crônica, nascida de uma escravidão que nunca se rebelou, como na Guerra Civil americana. Nós, cidadãos dessa sociedade, todos nós, elite pensante, militantes, ativistas, de direita, de esquerda, todos, construímos essa sociedade. Que virou esse monstro que hoje se mostra à luz do dia. Durkheim teria falado em anomia.
Prefiro o fetiche da mercadoria de Marx, num dos poucos capítulos em que ele foi sociólogo. O fetiche que encobre o essencial para mostrar a aparência. Minha tese de Livre Docência defendida na Unicamp em 1993, com banca composta por Francisco de Oliveira, Manuel Correia de Andrade, Juarez Brandão Lopes, Octávio Ianni e Paul Singer, foi sobre o Fetiche da Igualdade. Ainda não havíamos chegado a esse ponto de violência urbana e de acirramento das desigualdades de classes, com total isolamento no espaço físico das cidades.
Aos jovens, a missão histórica de denunciar, sair às ruas, protestar. Aos velhos, tentar entender. O editorial da “Revista Será?” de hoje, 16/03/2018, passou ao largo do assassinato de Marielle, o fato mais importante da semana aqui no Brasil. Enquanto Marx foi capturado na luta contra o capitalismo em prol do socialismo, que a muitos congregava, parecia mais fácil. Agora que, como dizia um prefeito de Garanhuns, quando um eleitor lhe pediu pela terceira vez para votar para presidente da república em um conterrâneo, Pode votar, meu filho, que o comunismo acabou, agora fica tudo mais difícil.