
30 de março de 2018
Apenas agora, 9 horas, apareceu uma claridade de sol encoberto. Às 6 da manhã, com chuva fina, a praia estava deserta, a maré secando. Em tempo de lua cheia, a maré tem seus picos de altas e baixas. As jangadas todas estacionadas, que hoje é dia de guarda para os pescadores. O lutador, dispensado de seus serviços junto às jangadas, foi um dos poucos caminhantes com quem cruzei. Com seu boné de aba para trás, descalço, de bermudas surradas e sem camisa. Caminhava ao léu na areia fofa e nos cumprimentamos de longe. Quando voltei, a chuva engrossara. Pelo chapéu protetor de sol escorria uma goteira à altura de meu nariz, como fosse um telhado.
Um tapete de sargaços. Há alguns anos, escrevi uma crônica, Uma tarde no Pina, em que me referia a essa vegetação marinha que vem aportar a esta praia. Uma forração macia aos pés, cheirosa. Dos meus sentidos, o mais apurado é o olfato, quase faro. Uma hóspede paulistana, Cecília, reclamava da praia suja, do cheiro. Espiei pela janela junto com ela, Que sujeira? Que fedor? Aquilo me provocou uma reação, até com certa indignação, que resultou na referida crônica. Não a reproduzo. Está na Revista Será e na Algomais. Escrevo outra com o mesmo motivo.
Sabe-se hoje que o homem começou a habitar a terra pelo continente africano. Antes dos gregos, antes da sua mitologia, os negros já haviam criado seu panteão de deuses. Iemanjá é mais velha que a Sé de Braga. Imagine-se esse tempo todo, reproduzindo-se sem cessar, pois é casamenteira? Têm seus dias de cabeleireiro. Chamam as filhas Oxum, afeitas ao ofício, vaidosas e sedutoras que são. Elas não se negam a cuidar dos longos cabelos pixains de suas mães, morando em tantos palácios onde os negros se espalharam pelo mundo.
Aqui, os pescadores sabem os nomes das ruas e avenidas marinhas. Não sabem, porém, das moradas de Iemanjá. Apenas deduzem que os maiores palácios estarão na praia do Pina, entre a mais frondosa Castanhola do calçadão e o limite com Brasília Teimosa. Lugar das comemorações do oito de dezembro, no círculo cimentado onde foi implantado o ixé da santa.
Certamente hoje é dia de cabeleireiro para a orixá mãe. Fazia tempo que não chamavam suas filhas para o dia do corte, que, como tudo o que se faz nos cultos iorubás, é motivo de festa. São tantos os palácios transformados em salão de cabeleireiro, que as ondas trazem esse tapete marrom para enfeitar e perfumar as praias do Pina.
O comércio dos ambulantes não aproveitará o feriado, pois choveu até quase agora. Na areia da praia, somente os jogadores de futebol com uniformes azul e encarnado, redes em tamanho regulamentar, juiz, apito. Chegam-me longinquamente seus palavrões. Os três campos próximos ao calçadão, transformados em lama desde as chuvas de ontem, ficaram inviáveis.
Passou o dia de São José. Chegou o inverno. Bendito inverno, bendita chuva, que abastece as barragens, aduba roçados. Quatro estações é luxo de países temperados. Aqui entre nós, no Nordeste brasileiro, é inverno chuvoso e verão seco, quente, ensolarado. Quem quiser banho de mar, que se contente com os dias, que não são poucos, em que o sol resolve aparecer e enche as praias de gente.
Hoje, sexta feira da paixão, dia de festa somente para os habitantes dos palácios marinhos, comemorando o dia do corte. Às vezes os sargaços trazem junto as perigosas caravelas, lindas de espiar, perigosas ao toque distraído que provoca queimadura. Não hoje.
Quem não mora perto do mar, venha até aqui. A cidade está tranquila no feriadão, sem trânsito. Praia deserta. Deixe o carro com os calçados na avenida, caminhe até a beira do mar. O tempo não está para banhos salgados. Apenas um passeio pela areia e pelo aconchegante tapete marrom. Seus pés e seu sentido do olfato vão agradecer.
Sargaço… Seu cheiro forte e característico está gravado em minha memória. Fez-me lembrar minha infância e juventude em Boa Viagem… Linda descrição.
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