Catierina Lvovna

20 de abril de 2018

A palavra tem precedência. No início era o verbo. A percepção de nossos dias, contudo, cada vez mais, com o avanço da informática, é pela imagem. As palavras são escritas para ilustrar a imagem. A imagem conseguiu a precedência. Contudo, os da geração passada, do livro, continuam, como náufragos, apegados ao velho código. Quem poderá julgar o bem e o mal na história que muda enquanto somos vivos? Afinal, muitas crianças aprenderiam melhor a ler se os livros de leitura fossem histórias em quadrinhos, banidas ao meu tempo de criança como inferiores concorrentes do livro.

Daqui a cinquenta anos, todos de minha geração estaremos mortos. Enterrados. Ou pó, Tu és pó e a ele voltarás. A quarta-feira de cinzas é nossa única certeza. Pela velocidade das mudanças da era tecnológica, nós, velhos, não estaremos aqui para ver, ouvir e sentir a sociedade da imagem, da rapidez das comunicações e tudo o mais que nem em sonhos e devaneios futuristas caberiam.

Porém o navio ainda está na superfície do mar. Velhos do mundo, uni-vos. O computador e o celular são inevitáveis, há que aprender os novos códigos de sobrevivência. Aprendamos. O mínimo necessário.

Ah, o prazer dos livros! Grossos. Antigos. Já lidos. Com fungos e poeira. De autores falecidos.

Sempre que posso, leio o livro antes de assistir ao filme. Em geral, prefiro os livros. Porém há diretores que conseguem uma tal sintonia com o escrito que passam para a tela o espírito do livro. Não necessariamente uma cópia quase fiel das cenas, personagens, como fez com grande competência Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas. Para isso, precisou filmar duas vezes, sendo a primeira a difícil passagem de aprender pelo erro. Mas chegou lá. Transmite no filme o espírito do autor da obra literária, Graciliano Ramos, assim como personagens e cenas. Para mim, com um dano irreparável: perdi para sempre a minha imagem de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Outros filmes distanciam-se da descrição. Aqui e ali uma cena, uma personagem, uma fala, remetem diretamente ao livro. Contudo, se bons filmes, conseguem o mais importante: a empatia, sintonia fina com o espírito do livro.

Esta semana, a programação do grupo Arte e Psicanálise, coordenado por Everaldo Soares Júnior, foi a exibição do filme do cineasta polonês Andrzej Wajda, de 1962, Siberian Lady Macbeth, também traduzido como Fury Is a Woman, filme inspirado em livro de Nicolai Leskov. Favorito de grandes diretores da história do cinema, como Roman Polanski, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Wajda ficou mais conhecido pelo filme de 1958 que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes e reconhecimento internacional, Cinzas e Diamantes.

Reli o livro do autor russo Nikolai Leskov, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, no qual é baseado o filme. Livro este, por sua vez, inspirado, por óbvio, na tragédia de Shakespeare. Reli esta também. Apenas para concluir que, talvez por ser prosa e não teatro, talvez por destacar a personagem feminina e não as eternas lutas pelo poder copiadas dos gregos, a Lady Macbeth russa é muito melhor do que a de Shakespeare. Que personagem, Catierina Lvovna! Com justiça, dá nome ao livro. Não um Machado de Assis, que se esconde por trás de um Dom Casmurro, que não passa de uma sombra da personagem forte do livro, Capitu. Foi preciso muito artifício de linguagem para que esse autor não assumisse que o título do livro, de direito, seria Capitu.

Pela descrição da protagonista, não nascera bela, mas de aparência muito simpática. Vinte e quatro anos, estatura mediana, mas elegante, pescoço como que modelado em mármore, ombros arredondados, colo vigoroso, nariz reto, afilado, olhos negros, vivos, fronte alva e alta e cabelos negros, de um negro beirando a azulado, não imaginaria a personagem linda do filme. Porém seus gestos, seu caminhar oscilante por uma imensa e rústica casa rural de um pequeno distrito da Rússia ortodoxa, casam perfeitamente com o tédio russo das casas comerciantes, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar. Catierina ficava em casa dias inteiros, enlanguescendo, sozinha, sozinha… Enquanto isso, o tempo lá fora estava uma verdadeira maravilha: morno, claro, alegre, e, pelas grades verdes de madeira do jardim viam-se pássaros diversos voando de galho em galho.

O filme de Wajda é em preto e branco. Não aparece o verde das grades de madeira. O que não tem a menor importância, pois é precisamente o branco e negro que permite mostrar a solidão de um casarão que aos poucos irá sendo palco de tragédias, sob a batuta de Catierina, uma mulher invisível, como todas de seu tempo, lugar e classe social . Casaram-na com o nosso comerciante Izmáilov, de Tuskara, província de Kursk, não por amor ou qualquer atração, mas sem quê nem para quê, simplesmente porque Izmáilov pedira sua mão e, sendo ela pobre, não precisaria ficar escolhendo marido.

Nietzsche não fez filosofia da razão. Tirou a casca, como descascasse uma banana, do ser social, e o mostrou nu, livre de toda vestimenta ideológica do iluminismo. Nele também aparece essa mulher criada por Nicolai Leskov, submissa, ninguém. De acréscimo, o autor russo lhe acrescenta ser estéril. A rebelião privada de Catierina Lvovna Izmáilova é proporcional à sua esperável submissão. Apenas uma tragédia poderia expressar uma revolta que Leskov não imaginaria se desdobrar no século seguinte em luta das mulheres, minoria, como tantas outras minorias, por seu lugar na sociedade.

O filme de Wajda aprofundou a tragédia, ao inverter alguns papéis, atribuídos a Catierina no romance, por ele imputados ao seu amante, Serguiêi. É o caso dos terríveis pesadelos de Catierina, nos quais lhe aparece um enorme gato que se enfia entre ela e Serguiêi de forma assombrosa, até se transformar no rosto do sogro por ela assassinado. No filme, é Serguiêi quem vê a assombração na forma da cabeça do porco servido em almoço solene e sai correndo da sala. Wajda dá mais realismo á tragédia, pois afinal Catierina perpetrou todos os crimes com a frieza de quem persegue uma meta, enquanto Serguiêi foi o objeto de seu desejo e da intensão dela de tê-lo a qualquer custo. O custo foram três assassinatos a sangre frio. Ela não se abalou com nenhum deles, até o momento derradeiro, epílogo da tragédia, quando vê perdida a sua única ambição: a paixão, o gozo. Pois não soube na vida, essa mulher, nada do amor. Soube apenas da paixão.

O filme aprofundou também a tragédia com outra inversão. Esta, de momentos. No livro, o enlevo da paixão dos dois amantes, Catierina e o jovem e ousado empregado encarregado dos porcos, Serguiêi, dá-se ao início, quando se conhecem e antes da sequência de crimes. É a parte mais bonita do romance, o capítulo VI, que faz lembrar a cena de Madame Bovary circulando na carruagem com seu amante, sem destino, por ruas e ruas, aparecendo ao público apenas um braço nu jogando fora papéis picados. Em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, o amor se faz à sombra de uma macieira.

Depois do almoço, o bochorno assolava lá fora e uma mosca ágil perturbava insuportavelmente … A perplexidade a assalta de repente, afastando-lhe totalmente o sono e a modorra. … O sol já se pusera totalmente e a noite descia, maravilhosa e encantadora, sobre a terra aquecida pelo calor…. o rapagão curvou-se e meteu-se sob a macieira baixa, coberta de flores brancas, e foi sentar-se no tapete aos pés de Catierina …(que) ergueu-se nos cotovelos e olha para a relva alta do jardim, a relva brinca com o esplendor da lua, que se desfaz em retalhos sobre as flores e folhas das árvores. Ela está toda coberta pela claridade dourada daquelas réstias minúsculas e caprichosas que sobre ela tanto bruxuleiam, tanto tremeluzem; como se fossem vivas borboletas de fogo ou como se toda a relva sob as árvores estivesse presa por uma rede lunar e se deslocasse de um canto a outro

Em meio ao sono profundo, um velho capataz que dormia no galpão começou a ouvir no silêncio da noite ora um murmúrio seguido de riso baixo, como se em algum lugar crianças traquinas trocassem ideias de como zombar de velhos fracos com mais maldade, ora uma gargalhada sonora e alegre, como se as sereias dos lagos fizessem cócegas em alguém. Era tudo isso que Catierina brincava e folgava com o jovem capataz do marido, banhando-se de luar e rolando no tapete macio. As flores brancas e frescas da frondosa macieira espargiam-se sem cessar sobre eles, mas por fim o espargimento cessou. Enquanto isso, a breve noite estival ia passando, a lua se escondera atrás dos telhados proeminentes dos altos celeiros e olhava de esguelha para a terra, a cada instante mais e mais opaca.

A mesma cena, onde o amor se expressa na beleza da natureza, transmuda-se no filme para momento mais dramático: não antes, porém depois de todos os assassinatos. Não ao pé da macieira, mas, talvez numa homenagem do cineasta a Gustave Flaubert, numa bela carroça conduzida por juntas de cavalos. Os dois amantes estão na mesma entrega amorosa de risos, a céu aberto, por sobre montes de fenos que esvoaçam pelo ar, deixando um rastro de gozo por onde passa a carroça.

O filme segue com o livro as cenas finais. A mesma determinação de Catierina, seguindo a qualquer preço a paixão, em cenas desesperadas na neve, no gelo, no frio, culminando com a travessia do Volga. A música de Dmítriy Dmítriyevich Shostakóvich completa o cenário.

 

 

 

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