O funcionário

17 de abril de 2018

Em dias chuvosos, sua passagem pela avenida poderá acontecer um pouco mais tarde. Nunca depois das seis horas da manhã. Hoje ainda chovia às cinco e meia quando ele passou, sem nenhum atraso, defronte de minha janela, que está fechada, assim como as cortinas. A mais grossa, nomeada blackout (estamos progressivamente a substituir o belo idioma português pelo empobrecido inglês) impede a entrada da claridade.

Em total concentração, alongo pernas, braços, coluna e tento varrer os pensamentos da mente, o que não é fácil. Ouço o canal Peaceful Maditation of Spotify (lá vai outro inglês), que concorre com o discreto escorrer da chuva sendo pisada pelos pneus dos automóveis na avenida. Não ouço o barulho das ondas quebrando na areia. Nem o vento. Porém, em compensação, também não me chegam aos ouvidos os insuportáveis motores e alarme enlouquecedor do portão da garagem à saída de cada automóvel do meu prédio e do prédio vizinho. São poucos ainda a esta hora e seu deslizar na chuva se sobrepõe ao ronco do motor.

Quando meu deleite é interrompido, olho o reloginho da mesa de cabeceira e confirmo a pontualidade do funcionário evangélico a caminho do trabalho, cantando a todo pulmão com sua voz de tenor. Hoje, na rapidez de sua passagem, não distingo a lírica de sua canção.

Nas vezes em que o vi e ouvi, ele conduzindo sua moto na avenida, eu caminhando no calçadão, pude juntar duas ou três frases trazidas pelo vento e já não tive dúvidas. Espalha por onde anda mensagens de suas crenças com um vozeirão alegre e forte. Na primeira vez, fui para a beirada do calçadão para vê-lo de perto. Queria conhecer o dono da voz. Ele não se fez de rogado. Ao meu melhor sorriso e aceno do braço direito, respondeu igual, com o braço esquerdo, deixando apenas o outro a cargo do volante. Num átimo nossos olhares se encontraram. Não interrompeu o canto de louvor. Como se a mim o dirigisse, no instante da passagem.

Aonde vai trabalhar esse homem? Imagino-o em alto andar do prédio da prefeitura do Recife. Servindo cafezinho aos mais graduados, às audiências públicas, às reuniões. Terá tirado a capa de chuva, as galochas, o capacete, os óculos de proteção, que, no dia ensolarado em que nos cruzamos pela primeira vez, estavam suspensos na testa. (Imprudente motorista!) No trabalho, estará de uniforme cinzento, um pouco folgado para seus cinquenta anos de café com pão bolacha não.

Todos na repartição, mesmo os que acabaram de chegar para esquentar com novas ideias cadeiras antigas, logo saberão seu nome. Porque o cafezinho, já disseram muitos cronistas sociais antes de mim, o cafezinho é o ingrediente mais importante de qualquer repartição pública.

José é seu nome. Nem Zé, nem Zeca, Zezinho, Zezito. Sempre se impôs com o nome de batismo. Os mais antigos na repartição, que já viram muitas ideias novas mudando nem que fosse a mobília e as cortinas dos andares mais elevados, esses o chamam simplesmente José. Os recém-chegados, a cada quatro ou oito anos, o chamarão Seu José. Até se tornarem íntimos. Pois José tem esse dom de nascença: pobre, serviçal, carrega em seu corpo magro, cabelos grisalhos, um olhar e um sorriso altivo que impõe respeito. Não fosse a farda e a bandeja de cafezinho e água, seria facilmente confundido com um superior.

Um barnabé que não divulga suas crenças, como é comum aos de sua religião, a não ser em palavras ao vento no percurso diário de casa para o trabalho. Nem chama aos outros de irmão, hoje, quase uma senha a identifica-los todos em público. Cumpre suas obrigações com dedicação de principiante que não quer perder o emprego, mesmo sabendo que dali só sairá para a aposentadoria. E a ética dos primeiros crentes.

 

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