
Para Priscila
(em memória)
28 de abril de 2018
A minha janela no sétimo andar tem sido plateia para muitos palcos. Os Diários do Pina mal principiaram a reproduzir peças que jamais se repetem de um dia para o outro. Já apresentei o velho, meu vizinho da frente, os ambulantes das carroças humanas, os pescadores, os caminhantes, Brasília Teimosa. Há muito mais escrito. Deles direi em crônicas sociais, quando assuntos mais urgentes não aparecerem na frente.
Como hoje. Com o sol, mesmo encoberto, ameaçando chuva vez por outra, é um prazer voltar a caminhar. Retomo aos poucos, seguindo a maçaranduba do tempo. Hoje a peça foi vista e escutada. Pois de minha janela é sempre um teatro de surdos: espio e não ouço.
Caminhei até as jangadas. Nem pensar em entrar no mar. Barrento, sem cor, o sol escondido. Lá me sento no banco de uma delas e fico olhando a África do outro lado do oceano Atlântico. Minha atenção é despertada pelos atores que vêm, vagabundos, caminhando pela areia da praia. Param em frente às jangadas. Pensei mesmo que ali fariam sua apresentação para a única pessoa que comprou ingresso. Mas teatro é assim mesmo no Brasil. Sobrevive a duras penas e se apresenta anyway, mesmo que o expectador seja apenas um pagante.
A Lady é negra, elegante, magrinha, porte mingnon: uma modelo. A princípio, não atino o enredo. O sol volta a aparecer, clareia o dia, distingo cada um dos atores. Oito do sexo masculino. A única do sexo feminino é a Lady. Estão dispersos. Como ela, três são negros, sendo um deles mais peludo e até com coleira, a indicar uma distinção em relação aos outros, todos vagabundos de rua. Também se distinguem pelo tamanho. Outros três, com o pelo em tonalidades de marrom, são maiores que os demais. Levam vantagem na proximidade com a Lady.
Vinham caminhando sem pressa, os três maiores revezando ao lado da cobiça de todos. Ela comandando a marcha. De repente, para. Um dos grandes cheira, enlaça-a com as patas dianteiras e começa a brincadeira. Ela faz um ligeiro movimento que o desequilibra. Toma seu lugar o segundo grandão. Também sucede a mesma rapidinha. O terceiro se demora mais em cheiros e lambidas. E também no ato, trêmulo, com Ímpetos que a empurra um pouco adiante na areia.
Depois dele, a Lady senta-se no chão, dando assim o sinal de intervalo. Apenas nessa hora minha atenção se volta para o menorzinho. Pois ele não para de latir. Será virgem? Será esta sua primeira vez? Com ele não acontecerá o que sucedeu ao pobre Marcos Palaque: uma surra do pai porque broxou na primeira ida ao puteiro de Garanhuns. Os outros se movimentam, os mais ansiosos balançando o rabo, compondo como um círculo sem forma definida em torno da Lady. Ela não é perturbada. Mantêm-se sentada na areia. Todo o tempo que quis.
Levanta-se, coça a barriga com uma das patas, dá umas voltinhas. Mudam o lugar da apresentação para mais perto das jangadas, seguindo-a. O pequeno está ainda mais nervoso e continua latindo. Nenhum dá importância aos seus lamentos, muito menos a vez de chegar perto da Lady. Mantém-se afastado. Assim como o negro nobre, com seu casaco mais felpudo e a coleira. O três maiores principiam uma briga entre eles. Lutam com valentia, embora o combate seja rápido. Enquanto isso, os outros chegam a ela com agrados. Vai o primeiro, vai o segundo. Ela os recebe tão gentilmente como aos precedentes grandões. Expulsa o segundo mais rapidamente e volta a se aquietar. Dessa vez, não sentada, porém o corpo todo deitado, quase se espreguiçando na areia fofa.
Um deles se destaca dos outros e vai até quase o quebrar das ondas de um mar que está calmo, secando. A Lady fica um tempo maior deitada, novamente sem ser perturbada por nenhum deles em sua quietude. Até que se levanta e segue na direção de onde veio, com destino a Boa Viagem. Pensei em acompanha-los. Porém a marcha da trupe é mais rápida do que a minha. Dou meia volta. E quando já estou quase chegando ao quintal do velho, que preciso atravessar para chegar em casa, eis que voltam os alegres atores, no mesmo passo de trote, comandados pela Lady, a caminho de Brasília Teimosa.