
25 de maio de 2018
Voltei, meus leitores. Fiquei ausente do blocomomentear por mais de uma semana porque estava em viagens interiores. Estas não resultam em crônica social.
Estou em São Paulo, como quem visita uma velha amiga. Caminho pelo Parque Trianon, que se renovou em relação ao tempo em que morei aqui. Com vigilância, fica aberto ao público. Um oásis no meio da avenida Paulista. Esta, no final de semana, vira uma grande festa. Caminhar por essa avenida é melhor do que pela Quinta Avenida de Nova York, para onde viajo nesse sábado. Pois a Paulista é menos comércio e mais cultura, teatros, museus, manifestações públicas.
Gente na rua. Não apenas na grande avenida, coração do Brasil, farol das bandeiras de lutas sociais, como no entorno. A mesma sensação de estar nas ruas seguras de Lisboa. Primeiro dia, à procura de um mercado que entregasse as compras em casa, ainda amedrontada, deixei o celular em casa, como faço quando caminho a pé nos meus arredores recifenses. Porém logo me descontraí. Aqui, como nos lugares frequentados pela ampla classe média do Rio de Janeiro, Copacabana, Ipanema, caminha-se pelas ruas. Os artesãos expõem seus trabalhos em coloridos panos nas calçadas. Os músicos deixam os chapéus na mesma calçada para algum trocado. Uma festa. A rua, meus amigos, é a festa maior da democracia, da liberdade. Os gregos sabiam disso.
Mas o melhor mesmo de São Paulo é reencontrar velhos amigos. Montaigne soube como ninguém, nos seus Ensaios, o valor da amizade, que atinge sua plenitude na maturidade da idade e do espírito.
Quando morava em São Paulo, durante trinta e três anos de minha vida, nunca deixei de ir ao Recife. De férias, a trabalho, sozinha, com a família construída, para estar com a família dos velhos laços de sangue ancestrais. Porém, além da família, nunca deixei de estar com os amigos. Os amigos que nos acompanham na vida são joias raras. Escolhemo-nos sem nenhum outro interesse que não o prazer da companhia.
Hoje inverto essa equação. São Paulo passou a ser, para além da festa da Avenida Paulista, para além dos teatros, dos cinemas, da mais nova aquisição, o Instituto Moreira Salles, onde tive a ventura de poder assistir a todos os filmes da mostra “Carta Branca a Ismail Xavier”, passou a ser o encontro com a amizade. Aquela que ultrapassa o conhecimento primeiro no trabalho e perdura pela vida. A temporada foi curta para estar com todos. Fica para a próxima.
Quando a gente migra, o tempo cuida de se transformar numa peneira que deixa em cima apenas as pedras preciosas, descartando a areia passageira, as pedras miúdas sem valor que mereçam ser guardadas.
A viagem para encontrar amigos principia antes de entrar no avião. Os e-mails e whatsapps nos comunicam. Marcam-se almoços, jantares, programas.
A Rosário queria homenagear Hamilton, que já não habita entre nós. Resolveu fazer um bacalhau. E me pediu a receita. Já havia comprado os ingredientes. “Deixa, Rosário, que eu preparo quando chegar na tua casa”. E lá ficamos na cozinha. Tem lugar melhor para ficar, preparando uma comida, tomando uma taça de vinho? Fazer uma comida a dois, ou entre amigos, é mais prazeroso do que qualquer restaurante.
Ao chegar (viramos grupo quando principiamos a leitura semanal de Don Quixote, pelo puro prazer da leitura, há dez anos. E o grupo cresceu depois que voltei ao Recife. E se desmanchou. E permanecemos esse núcleo original: o grupo dos cinco), ao chegar, dizia, percebi que Daniel não havia ficado muito convencido de um bacalhau que vai ao fogo sem nenhum acompanhamento que não a água do cozimento. A travessa já estava arrumada para ir ao forno com um belíssimo bacalhau à portuguesa. Humildemente fiz apenas o molho, que seria para o outro, espanhol, mas que casou bem com o português. Afinal, a península é a mesma. E que dia agradável!
Depois do almoço, o casal anfitrião, com a intimidade de velhos amigos, foi dar um cochilo. O Zelito, com uma aura de sabedoria que lhe deu a velhice, voltou para a casa dele. E ficamos na sala a Flora e eu em nossas conversas infindáveis. Ainda completaríamos o dia as três mulheres, indo assistir ao filme Todos os Paulos do Mundo na rua Augusta e encerrando a noite com conversas que só as mulheres sabem ter, comendo o famoso Beirute do Frevinho.
PS: Minto. Não assisti a todos os filmes da mostra de Ismail. Mas é como se tivesse, tão familiares, do tempo dos cinemas de arte de nossa juventude. E fecho com chave de ouro a curta temporada paulistana, depois do memorável “Hiroshima meu amor”. Deixo os amigos esperando taxi e volto a pé, sozinha, do final da Paulista até a Alameda Casa Branca, onde me hospedo. Meia noite. Uma caminhada de quinze minutos a passo rápido para espantar o frio. Uma bela despedida de minha segunda cidade (Recife, a primeira), antes do almoço marcado com Tarcila do Amaral no MoMa nesse final de semana.