Diário do Pina, 29 de janeiro de 2020

Meu querido Gilberto Freyre,

Hoje, na minha caminhada pelo calçadão (o mar estava cheio), me lembrei de você e resolvi te escrever. Pessoalmente, só te vi uma única vez, em uma palestra. Foi em 1969. Eu era recém-formada na Escola de Sociologia e Política. Fui até o Instituto Joaquim Nabuco andando a pé. Morava lá perto, no Poço da Panela. Fui à procura de emprego. Pretendia trabalhar como pesquisadora.

Quem me recebeu, muito caseiramente, sentados nós dois num banco de jardim da entrada do casarão na Avenida Dezessete de Agosto, foi um homem que tinha idade para ser meu pai. Meu sobrenome levou-o a perguntar se eu tinha algum parentesco com Antônio Sales. Sim, meu tio, irmão de meu pai. Haviam sido colegas de turma na Faculdade de Direito do Recife. E Mauro Motta me contava o que eu já sabia pela crônica familiar. Que esse tio era gago e, na tribuna, era famoso pelo discurso fluente, brilhante, onde não gaguejava. Enquanto discursava, tomava xícaras de cafezinho que, sabiam os íntimos, vinham batizados com conhaque.

Enquanto Mauro Motta falava, eu me lembrava de meu tio Toinho, eu menina. Palavras ouvidas, cenas. Morreu tão novo, deixou Jônia com um de um ano e outro na barriga. Cada viagem de Garanhuns a Bezerros, uma longa e empoeirada viagem no Ford 51, a gente entrava na cidade por um bairro de casinhas juntinhas umas das outras, de portas e janelas pintadas em verdes e rosas. Já chegando ao centro da cidade, passava-se pelo muro lateral do cemitério. E ouvíamos sempre a mesma ladainha do pai, Reza, reza todo mundo. E meus primos, filhos desse tio, usufruíam de regalias na casa dos avós, porque eram os meninos de Toinho.

Que me lembre, naquele banco de jardim do Instituto Joaquim Nabuco não se falou de emprego de pesquisadora, o motivo que ali me levara. Muitos e muitos anos depois, a recepcionista do Cebrap liga na minha sala para eu resolver o que fazer com uma moça que chegara procurando emprego. Naquela época, qualquer estudante, dos mais brilhantes e inteligentes das Ciências Sociais ou da Filosofia da USP, estaria pagando o dinheiro, que seus pais não precisaram gastar para eles estudarem na melhor universidade do país, para ter o privilégio de ser um simples estagiário naquele prestigiado centro de pesquisa. Porque eu? E ela, Maristela, a recepcionista, foi simples e direta. Professora, aqui, só a senhora ou o professor Francisco quem sabe lidar com imprevistos. E eu pensei com meus botões, que não era coincidência sermos nós dois nordestinos. A moça era estudante de um curso particular pouco referenciado, negra, possivelmente de família pobre. Subi com ela à minha sala e, depois de uma rápida entrevista, pensei, A moça tem uma qualidade: é corajosa. Talvez tenha me identificado com ela. Calhou que eu estava naquele momento prestes a fazer nova seleção de bolsistas para minha pesquisa. Resolvi contratá-la. Teve um desempenho apenas razoável. Acabado o estágio, Elza Berquó, a maior descobridora de talentos que conheci, estava principiando uma pesquisa pioneira, como todas que fez, sobre a questão racial brasileira. Cristina entrou na equipe de Elza e fez bela carreira, mestrado na PUC, entrou para movimentos sociais, assumiu-se uma negra bonita.

Mauro Motta ainda falava sobre meu tio, quando passou, a alguma distância de nós, você, Gilberto Freyre. Estava se dirigindo a um auditório onde faria uma palestra. Você não quer assistir? perguntou-me meu interlocutor no banco do jardim.

Fomos. Você me causou enorme impressão. Seu porte de senhor, seu sorriso quando passou por mim, sentada no auditório ao lado de um de sua roda. Mas você me impressionou muito mais enquanto falava. Como caiam gostosas aos meus ouvidos aquelas palavras bem pronunciadas. Sobre o que falaste? Não guardei nada do que disseste naquela tarde de um verão muito quente. Apenas a tua despedida: sintam-se todas beijadas e abraçadas.

Esse foi nosso único fortuito encontro. Eu te vi. Você quase não me viu. Vi também, naquela tarde, uma cena que achei linda! Ainda a semana passada, lendo a passagem de Guerra e Paz de Tolstói, em que ele descreve uma cena magnífica de um salão da aristocracia czarista, vi na princesinha Helena, que acompanhava a conversação de todos com suas mãos ocupadas com agulhas e linha; vi dona Madalena naquela tarde, no salão de palestras do casarão da Dezessete de Agosto.

Depois dessa tarde, saíste de minha vida. Não eras compatível com a teoria marxista em voga nas universidades. Mas terminaste voltando, num desses acasos de encontrar um velho amigo a quem não se via nem falava há muito tempo.

Aconteceu no ano em que fui contratada pelo Departamento de Sociologia da Unicamp, em 1985. Faria parte do quadro docente do novo Doutorado em Ciências Sociais, que não era, ao modelo da USP, por áreas disciplinares – Sociologia, Antropologia e Ciência Política – mas por áreas temáticas. Fui para a de Agricultura e Questão Agrária. À primeira reunião de departamento, ainda desabituada às manobras de uma reunião decisiva para a distribuição das disciplinas do semestre entre os professores, foi-me atribuída a disciplina de Introdução à Sociologia para alunos do primeiro ano do Curso de História. Eu havia entendido que esse curso de Introdução à Sociologia seria para o semestre seguinte, já que durante aquele, trabalharíamos na estruturação da Área Temática, critérios de seleção dos doutorandos, preparação dos programas, enfim, tudo.

Não, Gilberto, não perdi o fio ao novelo. Vou chegar ao nosso reencontro.

Bem, estou em casa, fazendo umas leituras preparatórias à próxima reunião de nossa Área Temática, quando a secretária do Departamento de Sociologia me liga, Professora, os alunos estão em classe esperando. A senhora não vem? Já não daria tempo de chegar em Campinas saindo de São Paulo. Dois dias depois, entro em sala de aula com uma proposta de programa do curso de Introdução à Sociologia.

Há mais de dez anos, estava afastada das atividades docentes, trabalhando somente em pesquisa social no Cebrap. Acho que já nem lembrava do que ensinara a meus alunos da Universidade Católica de Pernambuco em 1971. Foi aí, Gilberto, que te reencontrei. Fui na minha estante, peguei Casa Grande & Senzala. E cheguei em sala de aula na quinta feira com uma proposta que não careceu nem papel escrito nem lousa. Leríamos apenas um livro, o semestre inteiro. Naquele livro, com algumas explicações da professora, aprenderíamos um jeito de olhar a sociedade.

Na biblioteca haviam poucos exemplares, insuficientes para uma turma de quarenta alunos. Eles teriam como primeira tarefa, procurar o livro com parentes velhos, um avô, um tio avô … Apostei naquele momento que Casa Grande & Senzala, empoeirados nas estantes da biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, não era um livro da academia, mas da cultura brasileira. E olhe, Gilberto, que estávamos em Campinas, São Paulo.

Ah, foi um curso delicioso! Nessa época, eu ia a congressos e seminários na minha área de pesquisa para apresentar e discutir trabalhos. Num desses, encontrei Dirceu Pessoa, que trabalhava no que, já então, era a Fundação Joaquim Nabuco. Contei a ele desse curso e algumas anedotas a ele relacionadas. E sei que chegaram aos teus ouvidos, Gilberto, porque Dirceu me disse depois. Você vê, como voltamos às boas em 1985? Mas vamos às anedotas.

Um dos alunos, ainda lembro a figura dele, alto, mais para gordo, gaiato, alegre, chegou um dia em classe, todo animado, com o livrão debaixo do braço e, de seu lugar, levantou-se, quase em cumprimento aos colegas e a mim: esse livro é bom, professora, porque agora a gente nem precisa mais comprar a revista Playboy.

A outra anedota foi com meu filho caçula, Pedro. Ele tinha então cinco para seis anos. Um dia, fazendo a lição de casa a meu lado, na mesma mesa em que eu lia e fazia anotações em um caderno, espiou para mim, com aquela carinha curiosa de menino que está aprendendo a ler na escola, descobrindo o primeiro horizonte amplo das letras, Mãe, você vai ler esse livro todinho? Estou preparando aula, meu filho. Seus alunos também vão ler esse livrão? Escuta aqui, meu filho, um pedacinho desse livrão. E li um parágrafo, justamente do capítulo que estávamos lendo em classe, o mais telúrico, sobre os índios. Li com a mesma entonação dos livros de histórias de trancoso que ele ouvia toda noite, nós dois no quentinho das cobertas dele, até ele adormecer. Parece que esse livro é bom mesmo, mãe.

Daí por diante, nunca mais saíste de minha vida. Passaste para o programa de um de meus cursos na pós-graduação, sobre as raízes da sociedade brasileira. E, não faz nem um ano, sentei-me numa mesa de bar à beira do rio São Francisco com você, Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de Oliveira, e ficamos a prosear sobre os assuntos mais variados. A morte, o amor, “Viver o amor é sereno, sem os arroubos da paixão. E foder com amor é a grande ventura dessa vida”. O fetiche do pau duro que carrega todo homem, o câncer de próstata, o viagra, a reposição hormonal. Foi uma prosa filosófica, existencial. E tratamos também das classes sociais, pela pista que tu, Gilberto, nos deste, e eu te repostava, “Temos uma carência vital, que vem desde a sociedade de brancos da casa grande e negros na senzala, de termos alguém abaixo de nós. Até o mais miserável dos pedintes de esmolas, carrega junto de si o cão vira-lata que lhe obedece.” E ainda trocamos ideias sobre a moda do politicamente correto, sobre a maconha. Fizemos jus a uma boa mesa de bar. Só faltou Antônio Cândido, mas agora é tarde, porque Cheiro de Velame já está na praça e não dá mais para acrescentar na epígrafe do capítulo XIII da Segunda Parte.

Mas são horas, Gilberto. Preciso encerrar essa missiva, que ficou maior do que tencionava escrever. Espero que você não fique zangado com o que vou te dizer agora. Deixei de propósito para o final, como uma confissão de amiga, que fala de peito aberto e diz até o que a outra pessoa não gostaria de ouvir.

O teu pecado, Gilberto, foi ter vivido demais. Uma pessoa como Antônio Cândido, por exemplo (nunca esqueças que foi ele quem conseguiu furar o cerco da Academia para colocar Gilberto Freyre no lugar que merece, um dos fundadores da nação brasileira), esse mereceu viver até o último dia de sua vida, recolhido, curtindo a essência da sabedoria velha. Mas você, Gilberto, você glorificou-se em vida. Essa glória que deve ser reservada para depois da morte.

Você não teve culpa, Gilberto. A culpa foi de quem te deixou viver tanto. E ainda dizem que Ele é infalível. Com isso, você deixou um traço cultural com raízes no massapê da cana de açúcar. Uns glorificando os outros. Esse traço é mais forte do que patriarcal. É macho, o instinto do macho do reino animal. A mesa das mulheres, a mesa dos homens. E botam o pau na mesa para medir qual o maior.

Desculpa, Gilberto, uma carta que principiou tão leve e termina assim, rude, mostrando a cru um dos lados do teu testamento.

Despeço-me à tua maneira. Sinta-se beijado e abraçado.

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