Segunda feira, 13 de abril de 2020
A Mulher do Sétimo Andar estava envergonhada de confessar em público. Como que, no meio de uma Pandemia, que andava matando tanta gente, ela, no recolhimento de seu lar, estava vivendo umas felicidades? E isso simplesmente porque, há muito tempo, não se sentia cuidada. Por circunstâncias da vida, até aquele momento, com setenta e cinco anos a completar talvez ainda trancafiada em casa, ela quem sempre cuidara dos outros.
Um dia, seu filho mais novo, quase a título de reclamação, perguntou-lhe, Mãe, quando é que você vai ser velhinha? A conversa era pelo telefone e não dava para ver no rosto do filho a expressão um pouco de brincadeira, um pouco na vera. Era como se ele estivesse dizendo, Mãe, quando é que você vai se aquietar, deixar de inventar moda? Ela lhe respondeu, sem pestanejar, Só no caixão, meu filho.
Era dona de uma inquietação interior que lhe impulsionava para todos os pedaços de vida que se apresentassem à sua frente. Nas comemorações dos setenta anos, em viagem com amigos pelas cidades históricas de Minas Gerais, conheceu, numa praça de Tiradentes, um artesão de bambu que acabara de arrematar a venda de umas tochas, ainda acesas enfeitando a praça. No outro dia, largou os amigos no hotel e subiu a Serra da Mantiqueira com esse senhor, com quem viveu uma intensa história de amor que durou o tempo de uma paixão, três anos.
E não parava de inventar moda, aquela mulher. Depois da Mantiqueira, foi difícil ficar longe da natureza. Então, na Serra da Borborema pernambucana, em pleno Brejo de águas e cachoeiras, ela alugou uma casa e lá viveu em um quase monastério por seis meses, o tempo de parir uma outra história de amor, agora com canetas e cadernos e computador.
O confinamento no Pina, foi como chegar ao porto seguro de seu lar, aquele que vinha sendo construído palmo a palmo, em cada espaço onde coubesse retalhos de sua vida pretérita nos objetos de artesanato, nos quadros e nos móveis. Da Borborema, ela trouxe o monastério para o apartamento no sétimo andar, aberto ao mar, à imensa claridade do sol que invade toda a sala desde o seu nascer, na madrugada, até o meio da manhã, pelas dez e meia. Escancarou para sol e chuva o terraço virtual da sala, de onde já retirara os tapetes, deixando nu o chão de pedras que o artesão do Várzea já não faz.
Só que agora, na quarentena, sozinha em seu monastério, as sextas feiras sem a prosa da empregada de dia e a música no boteco de noite (toda sexta feira é dia de festa), ela se alongou em espaços insondáveis em sua própria casa; como um hóspede que, chegando a um apartamento alugado para passar um par de semanas, sai especulando cada lugar da casa, onde ficam os pratos, os talheres, as panelas. E arruma o espaço à maneira mais cômoda para desfrutar o melhor possível das coisas que serão suas naquelas duas semanas. A Mulher do Sétimo Andar rearranjou à sua maneira cada material de limpeza, jogando fora uns inúteis e outros vencidos; a despensa ficou mais inteligente, com os menores na frente e os maiores atrás, ao contrário dos colegiais em desfile de Sete de Setembro, num tempo e num lugar em que não eram os quartéis, e sim os colégios das freiras e do padre que punham seus estudantes de todas as séries para desfilar ao som das respectivas bandas de música pela principal rua da cidade, comércio fechado, a prefeitura com a bandeira do Brasil hasteada e as autoridades municipais e o bispo diocesano postados na ampla varanda do primeiro andar. Ali, no desfile, a ordem era dos maiores aos menores. Na despensa, dos menores aos maiores, para que, num só golpe de vista, ela vislumbrasse o que estava guardado.
Ao fazer tudo isso, até então entregue ao que a dedicada funcionária arrumava segundo a lógica de outra classe social, foi como se se apropriasse de um espaço de sua casa que até então não lhe pertencia. E gostou. No começo. Depois, foi sentindo saudade daquele conforto do tempo em que não existia o confinamento e a sexta feira era um dia especial, como se o convento nesse dia da semana se abrisse para visitas. E sentiu saudade da empregada, que trazia para dentro de sua casa uma prosa do outro lado da vida, onde os vizinhos se conhecem. E trazia também uma cumplicidade que ultrapassava a casa limpa e a roupa arrumada nos armários. As vezes era um feijãozinho caseiro que fizera de véspera na sua casa para a marmita do filho, e que sabia com que gosto a patroa iria saborear aquele feijão bem temperado com carne de charque.
E quando, depois de semanas de confinamento, o filho da empregada, a caminho do trabalho, de moto, desviou a rota para lhe trazer uma marmita com o feijãozinho temperado com charque, foi nesse dia que a Mulher do Sétimo Andar se deu conta de que, mais do que a roupa limpa, mais do que a casa limpa, mais do que a comidinha preparada para aquele dia, o que havia entre ela e a empregada era uma cumplicidade feminina. Era na hora do almoço. A empregada, por hábito aprendido em muitas casas de família, onde fez impecável curriculum vitae, sabia que seu lugar ali era para servir e não para ser igual. Porém, sem infringir seu hábito da distância devida, naquela casa, com aquela patroa, quando sozinha, sem hóspedes nem visitas, entre servir a salada, a comida quente e a sobremesa, proseavam. Ela, a empregada, postada em pé à soleira da porta que separa a cozinha da sala. Os netos, uma vez perdida que viessem com a avó, estes sim, sentariam à mesa da patroa e seriam igualmente servidos por ela.
(Sérgio Buarque de Holanda classificaria a isso como uma manifestação de nossa Cordialidade – o Homem Cordial –, donde ele deduziu o impasse da nação brasileira: seria essa a sua contribuição ao mundo? Ou teria que perder a intimidade que dilui o público e o privado, para assim chegar à universalidade da democracia?)
Com o confinamento, voltou à lembrança da Mulher do Sétimo Andar aquela prosa que tivera com o filho, havia anos. Pegou do celular e mandou uma mensagem, Filho, estou velhinha. Os filhos, nessa Pandemia, estão tomando conta dos pais, mesmo à distância. Beijo da mãe.
E, talvez pela primeira vez na vida, sem que precisasse ficar doente, era velha. E saboreou, sem se sentir coitada, o gosto de se sentir cuidada; como as crianças que, ainda sem saber como é ser adulto, se entregam aos que cuidam de si e sentem que aqueles gestos lhe chegam carregados de amor.
Sexta feira, 17 de abril de 2020
Havia encomendado na feira orgânica o de sempre, e mais: “todas as frutas que houver”. Parou o carro, botou a máscara, desceu para dar uma verificada no que estava separado para ela, botou um rabo de olho nos outros produtos expostos e verificou que lá estavam pitombas. Uma frutinha tão besta que nem sequer havia sido ali considerada na categoria de fruta. Vendidas não por peso nem por unidade, mas por cacho. Os galhos secos amarrados por embiras, sem conter um cordão, um elástico, nada que houvesse passado por indústria. Exatamente iguais as de todas as feiras e até dos sinais de trânsito da Avenida Agamenon Magalhães.
Sábado era o dia da feira. O dia em que tudo acontecia. Ali pelos quinze, dezesseis anos, saía do colégio antes dos demais dias, depois da terceira aula. E riam, riam por tudo, ela e Luci. Poderia ser com Vera Lúcia, com Auxiliadora, ou todas de uma vez. Andando sem pressa. O tempo dos horários ficara no colégio. Lá iam elas de uniforme de saia de pregas azul marinho, blusa branca de mangas compridas, um lacinho ridículo no colarinho, arrancado fora e escondido na bolsa logo saiam de vistas vigilantes. Caminhavam pela calçada do lado nobre da cidade, pois nela havia um palácio. O palácio do Bispo. Quando já haviam alcançado a frente desse palácio, encoberto por frondoso jardim que não deixava ver a casa antiga, semelhavam duas crianças, uma andando com os pés pra dentro, a outra com os pés pra fora. Charles Chaplin rindo delas mesmas, vermelhas de tanta risada, felizes por não ter a freira para repreender, Muito riso é sinal de pouco siso. Depois do palácio do Bispo, passaram defronte do prédio da prefeitura, um prédio sóbrio de dois andares com pé direito alto, sem jardim, aparecido na sua republicanidade cinzenta. Até finalmente chegarem à feira propriamente, já afastada dessa calçada oficial e nobre, misturada às lojas de tecidos, farmácias, bodegas, bares, bêbados. E contaram o dinheiro. E continuaram com uma felicidade distraída, cada uma com seu cacho de pitomba, retirando dele, uma a uma, cada pitomba, cuja casca cor de terra cede a uma leve dentada e, com perícia, os mesmos dentes retiram de dentro da casca o caroço branco, viscoso, que vai derretendo na boca um azedinho, deixando a língua brincar voluptuosamente com aquele caroço indo de um lado ao outro da boca, sem carecer usar as mãos. Até que a cobertura macia que nasceu naquele brincar vai perdendo o gostinho, enrugando-se, envelhecendo e se transformando em uma espécie de nata sem gosto. Os mais avarentos ainda podem tirar com os dedos o caroço da boca, do tamanho de uma bola de gude, para roer até o último milímetro. Agora não mais brilhoso, mas recoberto por outra textura, aquela natinha, prazerosa ainda ao tato da língua e dos dentes. Caroços e cascas eram displicentemente jogados às ruas de paralelepípedos, mais tarde varridas com zelo pelos funcionários da prefeitura, que também lavarão com potentes mangueiras os cocôs de cavalos, de potrinhos e de galinhas vendidas vivas, levando junto o cheiro bom de estrume dos bois de carga, que farão o caminho de volta carregados de trocas nos carros de madeira rangentes feito violoncelos.
Sábado, 18 de abril de 2020
Às 4:30 a Lua Nova clara, clara, anuncia a madrugada. Às 5:00, nuvens cinzentas ameaçadoras. Já passava das 5:40 quando irrompeu o sol furando o último obstáculo, já com olho esperto, sem permitir mais nenhum minutinho de intimidade.