Diário do Pina – 26 de Abril de 2020

“O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.” (George Orwell)

 

 

– Hoje, camarada, conseguimos nosso troféu: quase tiramos a velha das pedras coloridas que margeiam o mar. Mas foi preciso mobilizar a turma da Lambreta.

– A turma da Lambreta?

– Você ainda não sabe? – Admirava-se Zeca. Magrinho, ágil, era dado a muita prosa – De uns anos para cá, os boys ressuscitaram essas motonetas, das quais ninguém mais recordava que existiram um dia e percorriam em grande velocidade as ruas estreitas de Roma. Lili, que, sem sombra de dúvida, é a mais inteligente e sagaz de nós todos, foi quem armou todo plano.

Zeca, nesse momento, tirava uma folga de sua incessante luta pelas ruas desertas de humanos. Conversava com seu maior comparsa, Monet, que lhe ouvia com admiração. Ambos fizeram parte da equipe que escreveu a Constituição com os princípios gerais da democracia, recém-criada em praça pública com pompas de festa e até bandeira.

– Pois é. Foi assim. Naquele tempo, Lili tinha uma dona, já meio velhota, que dormia cedo. A princípio queria que Lili dormisse com ela no mesmo quarto. Mas Lili tanto perturbou, que ela deixou que ficasse no terraço coberto, onde o filho de sua dona guardava a Lambreta, pois no prédio dele não havia garagem. Logo Lili ouvia o ronco da velha, depois da cachacinha que tomava todo dia antes de dormir,

– A velha era cachaceira?

– Para todos ela se apresentava como uma lady. Mas nunca dispensou seus goles. E não era bebida de rico que ela apreciava não. Era cachaça mesmo. Depois que caía no sono, o mundo podia desabar que ela não despertava. Era então que Lili saía, pés ante pés, e ia treinar na lambreta do boy filho de sua dona. Nesse tempo, as ruas já estavam praticamente esvaziadas dos humanos e ela tinha carta branca para circular à vontade. Tomou algumas quedas, chegou a arranhar o lombo, mas não sofreu fratura. E aprendeu a pilotar. Lili, amigo Monet, além disso, era chefe de uma turma grande. Começou a mobilizar as camaradas para fazerem o mesmo. Em reuniões secretas, traçaram estratégias especiais de furto de Lambretas de boys, que elas faziam questão de não chamar de roubo, mas desapropriação. Ela, Lili, ainda continuou por um tempo morando com sua dona. Mas então, já como parte de uma nova estratégia de luta: infiltrar-se entre os humanos. Era amável com sua dona. Aguentava o bafo de cachaça dela. Deixava que lhe afagasse a cabeça, até que beijasse sua boca, que, depois, disfarçadamente, corria ao quintal para lavar bem e tirar os micróbios.

– Eita, Zeca, que você é mestre em fazer arrodeios. Volta o fio à meada, camarada. E como foi que tiraram a velha das pedras coloridas que margeiam o mar?

– Calma, Monet, que você nem ouviu ainda a história toda e já está aumentando um ponto.  Pois bem, estava lá a velha. Noventa e três anos. Já não havia humanos nas pedras coloridas e os automóveis na avenida estavam reduzidos aos serviços essenciais para os confinados. Os passarinhos cantavam como nunca dantes nos pés de Castanhola. E a velha lá. Todo santo dia saía para caminhar. Nossos camaradas já não tinham meios de convencê-la a voltar ao confinamento. Usassem qualquer violência, seria um risco. Sabíamos todos muito bem do que era capaz aquela mulher. Tá vendo aquele prédio bem ali defronte? É lá que mora a velha, no sétimo andar. Acho que é a mais antiga daquele condomínio. Os do tempo dela, todos já morreram. Quando começou o nosso movimento, isso há quase duas décadas, nesse tempo essa velha ainda estava na casa dos setenta anos, ainda serelepe. Pois estava ela no sossego de seu apartamento, ora lendo um livro, ora escrevendo, ora ouvindo música, ou simplesmente tomando a maçaranduba do tempo na janela, observando um navio parado em alto mar desde o início do confinamento,

– Sim, mas chega de lero lero, Zeca. Como foi que tiraram a velha das pedras?

– Mas quanta impaciência, santo Deus! Como eu vinha dizendo, ela estava no sossego de seu lar, quando principiaram a quebradeira do piso de um dos apartamentos do prédio onde ela mora. Ela ligou então para o síndico, que tirou o time, dizendo que as leis do condomínio não proibiam obras, desde que dentro dos horários permitidos. E ela argumentou, Sim, mas estamos em uma situação especial, todos confinados. Quando viu que daquele mato não ia sair coelho, sabe o que ela fez? Tomou de um livro de capa dura, livro de arte, que serviu como uma prancheta de antigamente, uma caneta, duas folhas de papel ofício, e se sentou numa cadeira colocada num lugar nunca frequentado por cadeiras: junto ao interfone, que ficava numa prateleira acima da área molhada do balcão da cozinha, onde ficava o escorredor de pratos. Afastou este, enxugou o lugar e fez dali um improvisado escritório. E começou a interfonar para os habitantes daquele edifício de quatorze andares com quatro apartamentos por andar. Gastou quase uma manhã inteira nisso. Com cada vizinho, gente que ela não conhecia, pois, você sabe, né Monet? Esses humanos são muito estranhos mesmo. Moram em caixinhas separadas uma das outras por paredes, pisos e elevadores e ninguém conhece ninguém. Com cada um ela conversava sobre a obra. Quando estava pelo meio dos andares, de cima para baixo, já deu para fazer uma estimativa: metade daqueles moradores eram velhos. Os que ainda estavam na ativa, como uma professora que trabalhava em casa (como faziam todos naquele tempo, era o tal do home office), com essa proseou mais, que a jovem mestra era cheia de ideias. As sugestões de providências de todos foram as mais variadas.

– Puxa, vida, como você é impaciente, camarada! O fato é que a velha terminou descobrindo que existia um decreto, feito especialmente para aquele tempo de confinamento, que dava substrato legal para parar a obra. No dia seguinte, efetivamente, voltou a imperar o silêncio no prédio. Ficou provado que a velha sabia fazer agitação social, é ou não é? Agora você imagine se fôssemos comprar briga com ela, mais velha, mais encrenqueira … Foi aí que Lili entrou na jogada para tirar a velha das pedras coloridas que margeiam o mar.

– Finalmente, Zeca. E o que fez Lili?

– Mobilizou as lambreteiras. Antes, já haviam até tentado amedrontar a velha com a Cavalaria. Mas os cavalos, recém-chegados à nossa causa, muito embora fortes e trabalhadores, não são donos de grande inteligência, você sabe disso. Ainda não haviam se libertado dos humanos. Sorte que nós temos muitos humanos aliados, os que nada tinham a perder e ficaram de nosso lado. Os cavalos espalharam cocô de montão nas pedras coloridas, chegando ao ponto do cheiro daquela bosta suplantar o da maresia. Não adiantou. A velha se desviava do cocô e continuava sua caminhada diária, lenta, distraída. Num dia combinado, o esquadrão de Lili madrugou nas pedras coloridas que margeiam o mar. A velha já estava lá. Em grupos de quatro, cinco, as lambreteiras passavam bem próximas dela, tentando assustá-la com o barulho ensurdecedor daquelas máquinas. Mas a velha, já meio surda, nem ligava.

– E então, Zeca?

– E então? Lili se deu por vencida, com uma frase definitiva: Deixa essa velha em paz. Um dia ela morre.

 

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