Diário do Pina

07 de maio de 2020

A mulher do sétimo andar, confinada desde o início da quarentena, preservava duas exceções ao seu isolamento. Continuou a fazer as costumeiras caminhadas. Na areia da praia, quando o mar seco; no calçadão (ou no meio da rua, ao avistar alguma barreira policial), quando a maré cheia. E toda sexta feira saía de carro até a feira orgânica, a cerca de quinhentos metros de sua casa, onde Adriana e Mauro, seus jovens velhos fregueses, já deixavam suas compras acondicionadas em sacolas para colocar no porta-malas do carro.

Mas para ela, quando na maré alta, as barreiras policiais passaram a ser um tormento. Talvez nunca tenha superado o trauma de ser perseguida por policiais, quando fazia agitação estudantil na Avenida Guararapes e adjacências, no tempo em que o bairro de Santo Antônio, no centro do Recife, era local de comércio, negócios, terminais de ônibus, muita gente na rua. Não era exatamente os jovens e respeitosos policiais das barreiras do calçadão que temia. Era seus fantasmas. O medo de voltar um sonho quase pesadelo, tirando da bolsa as bolas de gude e jogando fora antes de enfrentar a cavalaria. Pois, por onde caminhava hoje, até cavalaria, motos, e carros da polícia que, de longe, avistando algum contraventor, já mandava uma sirenada.

Nessa quinta feira sete de maio, percebeu que as barreiras haviam diminuído. Ela até chegou a pensar: será que resolveram ser mais inteligentes e passaram a vigiar apenas se estão todos de máscara? Mas causou-lhe sobressalto, quando ouviu ao longe o soar da sirene do carro da polícia. Saiu do calçadão e passou a caminhar no cimentado feio da avenida, arriscando ser atropelada por motos e automóveis. Pelo menos era plano. Na calçada, o risco de queda, para quem anda no passo rápido que faz bem ao coração, seria o mais temerário de todos os lugares. E ficava pensando com seus botões: se algum prefeito tivesse a coragem de obrigar os condomínios da avenida, onde só moram ricos (aos prédios compete, lhe parecia, a atribuição da construção dos passeios em frente aos respectivos espaços por eles ocupado. Disso quem sabe é Francisco Cunha), obrigasse-os a fazer calçadas segundo um padrão definido pelo poder público? O que foi feito das pedrinhas, que diziam portuguesas, quando as substituíram, uma troca tão boa para os caminhantes, por pedras ecológicas de um suave colorido? Se não jogaram fora, poderiam muito bem ser reaproveitadas nas calçadas. Faria gosto aos conservadores. Dá um prazo, senhor prefeito. Não faz? Multa pesada, que será rateada entre os condôminos. Taí uma multa proveitosa. Ah, se houvesse prefeitos corajosos…

Mas hoje ela observou outra coisa. Lá vinha a mulher do sétimo andar caminhando sossegadamente pelo calçadão, quando ouve o barulho da sirene do carro da polícia. Um pouco à sua frente, um no calçadão e outro na pista de ciclismo, dois caminhantes proseando à distância. Também ouviram a sirene da polícia e olharam para trás, como ela. O que caminhava no calçadão, foi para outro local proibido, a pista de ciclismo. Os policiais abordaram a mulher, que estava no asfalto, com as recomendações de sempre. Aos homens, nada disseram. Ela pensou, Mas será que até aqui?

Porém a experiência mais inusitada do confinamento foi quando, pela urgência de um remédio que não estava conseguindo por telefone, foi até uma drogaria, sua velha conhecida. Essa é uma das primeiras coisas que aprende o velho: onde ficam as boas casas do ramo. Foi o primeiro dia em que fez um percurso mais longo de carro. Saiu do Pina, atravessou pontes e viadutos, e chegou à Avenida Agamenon Magalhães. Que emoção! A quanto tempo não via a cara dessa larga avenida, cortada ao meio pelo Canal do Derby! Ainda havia vendedores de pipoca e água. Poucos. Só uma pobre menina, que não alcançaria a altura de sua Pajero, oferecia serviços de limpeza de vidro. Todos, com raras exceções (a menininha era uma delas), usavam máscaras. Aos sinais fechados, a Mulher do Sétimo Andar observou ainda que, grande parte das máscaras era de tecido, feitas em casa, com cores variadas. Uma mocinha, muito elegante, usava uma combinando com as cores de seu vestido.

Já vira essa cena quase às centenas, nas telas, desde o princípio da quarentena ao redor do mundo. Ao vivo, era a primeira vez. A cena remetia a filmes de ficção. Para ela, contudo, trazia uma lembrança de menina. Quando seu pai, médico de província, sempre que não havia uma parturiente em dias de dar à luz, enfiava no Ford 51 mulher e filhos a caminho da fazenda do pai dele, em outro Agreste, que hoje, com as estradas asfaltadas, seria perto. Naquele tempo, era uma aventura digna de filmes do cowboy. A começar pela poeira, que saía das estradas esburacadas e entrava carro adentro. Foi quando o pai se informou do endereço da costureira que fazia as máscaras para o Hospital Dom Moura. Encomendou para todos em casa. Um dia, ele mesmo ouviu no consultório o comentário de um cliente, de que, a polícia rodoviária quase havia parado, para verificar se haviam saído do hospício, um homem, uma mulher, e meninos de várias idades, todos usando máscaras brancas cobrindo o nariz e a boca, só os olhos de fora.

Quando parou o carro em frente à drogaria, o nome Dom Moura já havia levado aquela mulher devaneadora a outra cena, não mais pelas estradas poeirentas no verão ou lamacentas no inverno, mas ao bispo. Não aquele, Dom Moura, que devia de ter sido importante porque nomeava o hospital e a praça mais florida da cidade. Mas outro, com cara de bonachão, baixinho, gordo. Quando esse novo bispo foi nomeado, a cidade o esperava em clima de festa, quase uma cerimônia medieval, quando a Igreja Católica era o centro dos acontecimentos, em lugarejos onde mal chegava a presença do rei. Os alunos do colégio do padre e as alunas do colégio das freiras, vestidos com uniformes de gala, esperavam a cerimônia de recepção ao novo bispo, organizados em filas, como fosse um Sete de Setembro. As mocinhas em flor, em discretos cochichos, só tinham olhos para os alunos internos do colégio do padre. E eis que chega o bispo, ao palanque improvisado em frente à Igreja Matriz de Santo Antônio. Com a batina preta abotoada de cima abaixo por botões roxos, da mesma cor do cinto largo em torno de seu largo ventre e do chapeuzinho grudado no cocuruto. As freiras redobravam os cuidados com a disciplina. Houve hinos, discursos, o sol quente em cima das cabeças buliçosas das moças, cobertas por boinas de lã. O bispo foi o último a falar. Deve ter dito muitas coisas sobre a Santa Madre Igreja, a Diocese, mas, de tudo, restaram seis palavras: Saí de Caicó; vim cair cá.

Na volta pra casa, não resistiu a pinhas, caquis e laranjas cravo vendidas na esquina da rua Joaquim Nabuco com a rua das Creoulas. São tantos a serem homenageados por ruas e pontes e viadutos, que os nomes antigos vão desaparecendo. Um dia, um prefeito de Salvador, na Bahia, baixou uma lei para voltar a valer os nomes antigos das ruas. Assim, da noite para o dia, Monsenhor Teodolino se viu destronado em favor do nome rua da Mouraria. Não Mouraria trazida pelos portugueses da metrópole, mas rua de ciganos mouros, que ali e no entorno faziam sua morada e seu comércio. Cada vez que aquela mulher passava pelo lado decadente do bairro da Boa Vista, no Recife, temia pelas ruas da Glória, do Jasmim, dos Prazeres…

Antes das pontes e viadutos para sair do Recife e chegar ao Pina, acionou o waze no celular. Não para saber o caminho, que conhecia de cor e salteado, mas para ouvir a gravação avisando, Seguir em frente na direção do viaduto Encanta Moça. Algum cronista da cidade já contou desse encanto e dessa moça.

 

09 de maio de 2020

Dormira mais tarde na véspera para ouvir a boa música dos Antiquarianos. No isolamento do coronavírus, sem o prazer do bar às sextas feiras, organizaram-no virtualmente. (Quanto dinheiro devem estar ganhando os que inventaram as traquitanas para os grupos se verem e se ouvirem sem sair de casa! E muito mais vão ganhar, porque essa moda veio para ficar). Quando olhou para fora, tomando a maçaranduba do tempo, a cavalaria passava pelo calçadão bem defronte de sua janela. Foi aí que pensou no que tinha sugerido seu filho budista, quando soubera dos fantasmas que lhe despertavam os policiais. Mãe, por que você não tenta a área da piscina do prédio? Demorou a seguir a sugestão de quem hoje vê o mundo com mais sabedoria do que nós, que somos levados por hábitos arraigados.

Desde que morava naquele condomínio, há treze anos, a Mulher do Sétimo Andar só deve ter ido àquela área de lazer umas quatro vezes, se muito. Para ela, era um espaço inútil. Não iria se contentar com um tanque e uma área confinada, quando havia a seu dispor o imenso Oceano Atlântico.

Foi uma descoberta. De seu apartamento, da sala, do escritório e do quarto, o mar se lhe oferecia quadros mutantes no decorrer de um dia, a cada dia, a cada estação do ano. Porém, do espaço aberto do décimo quinto andar, foi como se lhe abrissem novos horizontes. Viu de cima, em voo rasante de avião, ao fundo de seu prédio, o verdadeiro Pina. Aquele que levou o judeu aventureiro de sobrenome Pina, chegado ao tempo dos holandeses, a atravessar a Ilha do Recife para vir comerciar com os primeiros moradores do que hoje virou a favela do Bode. Viu do alto, à sua esquerda, o bairro de Brasília Teimosa, onde já caminhara, nas madrugadas, em quase todas as ruas, observando as moradias em casas, como antigamente. E viu, à sua direita, o quanto os arranha-céus feriam a paisagem.

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