Diário do Pina

Outono tropical – 19 de maio de 2020

Andava cansada de escrever sobre a quarentena. A bem da verdade, cansada de ficar trancafiada em casa. Já não saía às caminhadas nem no calçadão nem na beira da praia. Conformara-se em fazer os mesmos quarenta e cinco minutos entre sua sala de porta aberta e o corredor do sétimo andar. Mas infeliz não. Seria chorar de barriga cheia, quando tanta gente era obrigada a espaços apertados, em ruas estreitas, sem saneamento básico, sem o prazer dos livros que saiam das prateleiras das estantes e vinham lhe fazer companhia, sem músicas que andavam adormecidas e passaram a visitá-la, como faziam os bons vizinhos de antigamente.

Já não carecia correr a dormir cada dia mais cedo para acordar cada dia mais cedo, para chegar antes dos policiais ao calçadão. Espiava-os de cima, e tinha até pena de vê-los com roupas tão inapropriadas para o calor do Recife. Houvéssemos sido colonizados por ingleses, como os indianos, estariam eles de bermudas e camisas brancas, bonés protetores do sol que, aqui, o calor não obedece a inverno.

O final de semana, quando costumava escrever o Diário do Pina, havia sido chuvoso, cinzento. Era como se o sol fosse seu aliado na escrita. Como escrever sem o beijo matinal de seu amante esplendoroso, que podia tardar, mas não faltava? Porém, já na segunda feira, descobriu que acima do Equador também existe Outono. Não o do hemisfério Norte, da Nova Inglaterra, onde apaixonara-se perdidamente pelas cores vermelha, amarela e marrom das Maples leaves. Descobriu o Outono tropical em cima de uma esteira de palhas secas de bananeira comprada por doze reais no Mercado de São José.

Depois das chuvas intermitentes na sexta feira, no sábado e no domingo, eis que, ao primeiro dia útil da semana, o sol voltou a dar o ar da graça. Ainda fraquinho, ameaçado por nuvens ao longe. Sua legítima esposa em azul marinho e verde esmeralda estava com as cores esmaecidas. Até o debrum em renda branca não realçava, sem o verde a lhe contrastar um colorido vivo.

Com a janela da varanda, chamada pelos vendedores de cortina de vidro, aberta de par em par, a Mulher do Sétimo Andar deitou-se na esteira para fazer seus costumeiros exercícios e alongamentos. Deitada, não via o mar, apenas o céu. Foi então que descobriu o Outono: num céu limpo pelas chuvas invernosas, não vislumbrado no verão porque as cores vibrantes das águas do mar lhe tomavam a cena. Um azul reluzente, igualzinho a letra do Hino Nacional brasileiro. Nesse azul de anil, as nuvens eram brancas de Primeira Comunhão. Do mar, ouvia apenas o murmúrio intermitente das vagas. La mer, la mer, melhor nomeada no feminino. Nesse Outono Tropical, amiga, você passou a atriz coadjuvante do nosso céu risonho e límpido.

 

 

Ó Pátria amada, idolatrada, salve! salve! – 23 de maio de 2020

Para Haidée Camelo

 

Léo, desde menino, adorava jogar bola. Adulto, segundo grau completo, nunca lhe faltou emprego. Porém jamais deixou de jogar futebol nos campos improvisados de Barra de Jangada. Era sua paixão. Viu no sobrinho, Leandro, o mesmo gosto. Juntou mais meninos da redondeza e passou a treiná-los aos sábados ou domingos pela manhã, quando coincidia com sua folga de trabalho. Via nisso um meio de afastá-los da tentação que amedronta todas as famílias pobres que moram nos bairros de periferia: as drogas. O que era uma diversão, foi tomando vulto.

A mãe de Léo, Janeide Maria Palmeira, era uma mulher sem estudos e que aprendera somente a se assinar para tirar os documentos e votar; e aprendeu a fazer contas para não ser enganada no salário nem no troco. Ria desse gosto do filho caçula em ajudar os outros. Era da natureza dele, desde menino. E ela colaborava como podia. Com a patroa, com uma antiga patroa, com uma amiga da antiga patroa, ia conseguindo ajutórios: um botijão de água para mitigar a sede depois do jogo, chuteiras para os que jogavam de pés descalços, camisetas para distinguir um time do outro… No Dia das Crianças, o campinho de Barra de Jangada virava uma festa: cachorro quente que a dona Janeide preparava, refrigerantes conseguidos com uns e outros, até frutas.

Leandro se destacava. Na escola pública onde estudava, chamou a atenção do professor de Educação Física, que lhe propôs estudar no colégio particular onde também dava aulas, mediante uma bolsa de estudos, para que ele participasse do time de futebol da escola. Leandro entrava na adolescência. Melhorava cada dia, sobressaindo-se no time do colégio em competições. Mas, para manter a bolsa de estudos do colégio, a condição era passar de ano. Aí que o bicho pegava. Seu forte não eram os estudos, mas a bola. Porém, se arrastando, conseguia, ficando sempre em segunda época.

Morava, ele, a irmã e o pai na casa da avó. Quando os pais se separaram, Leandro tinha apenas dois anos. Sua avó foi a mãe que não teve. Um dia, depois de horas trancado no banheiro, apareceu com o topete dos cabelos pixaim coloridos de amarelo por água oxigenada e um brinco na orelha. Desconfiado, perguntou à avó o que ela achava. Janeide olhou para o neto, nem chegou a repreendê-lo nem a tirar o chinelo que tão bem conhecia aquela bunda. “Olhe, Leandro. Brinco e cabelo pintado em moleque rico é enfeite. Em pobre, é malandro, maconheiro”. Leandro desde pequeno sempre foi levado, briguento com a irmã e os primos. Uma psicóloga teria possivelmente diagnosticado uma criança hiperativa com dificuldade de concentração. Em família pobre, aquilo se resolvia na surra e no castigo. Mas não era respondão. Sempre respeitador. Voltou ao banheiro, raspou a cabeça máquina zero e nunca mais usou o brinco comprado por qualquer tostão.

Um dia Leandro chegou em casa eufórico com uma novidade: aparecera um senhor muito bem vestido no colégio, assistira ao jogo de uma competição, e mandou um recado para o pai. Queria levar Leandro, com todos os estudos a serem pagos em bom colégio, para ser treinado na Toca da Raposa, em Minas Gerais. Seus olhinhos miúdos brilhavam, pensando num sonho que acalentava, como a milhares de garotos de sua idade na ampla periferia de nosso país: ouvir e cantar o Hino Nacional, vestido com o uniforme de um grande time, antes do jogo de um campeonato. Conversa vai, conversa vem, o pai ponderou ao tal senhor que para ele, que aprendera o valor do estudo com a persistência da mãe, que deu escola a todos os filhos com o ganho de empregada doméstica, seria melhor esperar Leandro terminar o ano. Ele cursava o primeiro do Segundo Grau.

Naquele ano, Leandro não conseguiu ser aprovado. Perderia a bolsa. E foi então que a avó, cuja autoridade era respeitada e obedecida por todos, deu o seu veredicto. “Meu filho, Leandro ainda não criou juízo, é um meninão que só pensa em futebol. Ele tem que aprender a dar valor aos estudos em primeiro lugar. Vai para o colégio do governo, onde a irmã estudou e deu pra gente. Pois não é enfermeira?” Disse. Estava dito.

Esse é o país de Leandro, de sua família em Barra de Jangada. O mesmo dos moradores de Paraisópoles, uma cidade encravada no Morumbi, na imensa São Paulo, onde policiais não ousam entrar durante essa quarentena, como não o faziam antes, e no qual os bailes Funk rolam soltos nos finais de semana. Para esse Brasil, cujos valores passam ao largo dos nossos, que formamos apenas uma parte da sociedade, cujo sentimento republicano se melindra ao horror de uma reunião ministerial de baixo calão escancarada ontem no Jornal Nacional, o limite entre a vida e a morte é também diverso do nosso, assim como outra é a significação do trabalho. Decifrar esse Brasil, os poucos que o fizeram, não levaram o barco adiante. Um, porque deu um tiro nos miolos; outro porque, depois do exílio, sucumbiu à engrenagem perversa da máquina do Estado para se perpetuar no poder; outro ainda porque, mesmo sabendo na pele que país é esse, igualmente esbarrou de encontro à engrenagem dessa poderosa máquina, igualmente para se perpetuar no poder.

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