Roçado – 03 de junho de 2020
O prédio ainda dorme. Acorda primeiro pelos elevadores, que, desde ontem, cada um, no último andar onde parou. Dois nas áreas sociais, dois na área de serviço. Começam a se movimentar pela área de serviço. O porteiro da noite entregando os jornais. O ruído das máquinas, ainda que preguiçoso, é insuportável a seus ouvidos, que se confortam em cada volta junto à janela da sala, onde ouve o quebrar das ondas. Este também é perturbado, aos poucos, pelo ruído de outras máquinas, ainda mais poderosas que os elevadores: os motores dos automóveis.
A mulher do sétimo andar esquece a visão enquanto caminha no corredor. Só espia com prazer a aurora, quando dá a volta na sala com a janela aberta de par em par. Aurora que se anuncia na madrugada, mas hoje tarda a clarear o dia. O sol só apareceu às seis e meia, por entre nuvens que logo o cobriram com cobertores pesados, cinzentos. No lado sul não se anunciavam chuvas.
Escuta, no corredor do sétimo andar, como um rastreador escutaria animais na floresta. Os elevadores das áreas sociais ainda dormem; os ricos acordam mais tarde. Bom dia, Jameson. Ele afasta-se, para dar passagem àquela mulher, que faz a volta defronte à porta da área social do setecentos e três, a única do andar que recebe o matutino.
Quando aquela Mulher do Sétimo Andar ainda saía para caminhar na rua, deixava a chave do apartamento na portaria. Jameson tomava conta dela. Um dia, recomendou, A senhora não saia agora não, ainda está escuro, é perigoso. E regava as plantas do jardim do prédio, que não fazia parte de suas obrigações. Jameson é um homem bom. Negro retinto, cabelos e dentes brancos.
Enquanto caminha a passos rápidos, aquela mulher se concentra, agora, menos na audição do que no olfato. Sente os primeiros cheiros da manhã. O cuscuz no fogo sai pela porta do setecentos e um. O café coado, pela do setecentos e quatro. O dia está amanhecendo.
Quando morou na Serra da Mantiqueira, aprendeu a plantar milho e feijão. Com as sementes crioulas num saquinho amarrado na cintura, ia distribuindo, de três a quatro, em cada cova rasa cavada com a ponta do pé e coberta sem grandes cuidados. O trabalho de transformar uma daquelas sementes em um pé de milho, ficaria a cargo da natureza de chuvas e sóis por sobre a terra mãe. Nos dias de colheita, meses depois, o milharal verde, bonito, o milho na boneca, descobriu que só nascera uma espiga em cada pé. E soube, somente então, que as “vinte espiga em cada pé” não passava de um desejo de bom inverno, cantado pelo rei do baião.
Comer o que se planta é um prazer dobrado. O roçado de milho e feijão, casamento perfeito. Casamento na Serra da Mantiqueira. As espigas verdes, cozidas, às dentadas, passadas em manteiga que se derrete ao bafo quente do milho. E as espigas, secas? Lembrara do tempo de estudante no colégio das freiras. O despertador, às seis e meia da manhã, para dar tempo de tomar banho, se vestir, pentear os cabelos, tomar café, escovar os dentes, era a cozinheira ralando as espigas de milho seco, chec, chec, num ralador grande por sobre um pano de prato branquinho. Pediu então um ralador de milho ao artesão, que tudo sabia fazer com as mãos, acostumadas a tratar o bambu desde o corte, até tochas para alumiar noite escura, cadeiras e camas onde descansar o corpo e fazer amor, terraços sombreados. A mulher explicou o que era um ralador de milho seco, fez tosco desenho, suficiente para o artesão tomar de uma lata sem uso, parti-la ao meio, e, com prego e martelo, furar os buraquinhos, pregar uma talisca de madeira em cada lado e, finalmente, fazer a forma, encostando a lata furada e debruada com madeira à curvatura de um tronco de árvore.
A mulher tentou se lembrar como se fazia um cuscuz, daqueles que herdamos de nossos índios: sem salamaleques, somente uma pitada de sal e o pó do milho, úmido em água. Deixa descansar um pouco em uma vasilha, coberto com pano fino. Depois, será cozido ao vapor de uma cuscuzeira. E estará pronto quando o cheiro se espalhar porta afora.
E chega de conversa fiada, assunto predileto dos cronistas, para que os leitores se distraiam um pouco das notícias do dia. Saborear agora um cuscuz ensopadinho com leite de coco, uma boa rodela de inhame cozido, com queijo de coalho assado, uma xícara de café preto, uma baforada, que ninguém é de ferro, e enfrentar mais um dia de quarentena.