Conto de Quarentena – 13 de junho de 2020
Era uma vez um menino que vivia com a mãe, sendo o primogênito e o único filho. Morava em um morro com muitas casas ajuntadas sem ordem de uma cidade grande, cidade fadada pela História a se antecipar às grandes revoltas do reino. Quando nasceu, a mãe estava em dúvida sobre seu nome. E o pai, a quem compete nomear os filhos, determinou que seria chamado Miguel. Este nome, derivado do hebraico, Mi-ka-el, significa “quem é como Deus”. Nos livros sagrados, o Arcanjo Miguel se levantará durante um tempo de aflição que nunca aconteceu antes, como um grande guerreiro que defende o povo de Deus.
No dia de seu nascimento, vieram vizinhos, amigos, e duas ciganas.
– Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
– Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
– E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
– E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
– E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas. (João Cabral de Melo Neto)
Em 2 de junho de 2020, o menino Miguel, com cinco anos, acompanhou a mãe ao trabalho. Vestia short e camiseta de seu último aniversário, comemorado com motivo de jogador de futebol, seu projeto de ser grande: jogador ou policial. Dois sonhos de meninos pretos nascidos e criados na periferia daquele imenso reino.
Antes de sair de casa, a mãe prevenira o pequeno Miguel: seria castigado se estirasse a língua para a patroa. Mas ele, travesso, desobedeceu. Ficou de castigo. Não acompanhou a mãe, quando esta desceu no elevador, no quinto andar, para levar a cadela da patroa para fazer xixi e cocô no andar térreo do prédio.
Miguel tomou-se de uma infante revolta: a mãe trocara-o por uma cachorra. A cadela foi passear. Ele ficou confinado. Chorou, esperneou, mostrou a língua mais ainda. Foi levado ao elevador pela impaciente patroa, que não queria ser importunada no trabalho de sua manicure a lhe fazer as unhas. Sozinho no elevador, Miguel vai apertando os botões, em uma brincadeira irresistível às crianças.
Desce no nono andar. É então que vê um coelho correndo apressado, dizendo, “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais”. Quando viu o coelho tirar um relógio do bolso do colete, olhar as horas, e depois sair em disparada, Miguel imaginou que ele sabia o caminho para descer e encontrar a mãe. Qual Alice, a do país das maravilhas, vai atrás do coelho. Primeiro, anda por intrincados corredores do nono andar, sempre seguindo o coelho. Depois, sobe à casa de máquinas dos elevadores. Dali avista a mãe embaixo passeando com a cachorra. Mãe! Mãe! Ela não ouve.
Continua seguindo o coelho, que entra numa toca e vai descendo, descendo, e depois se afunda de repente, tão de repente que Miguel não teve um segundo para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito fundo. Ou o poço era muito fundo, ou ele caía muito devagar. Tentou olhar para baixo, a ver de novo a mãe, os braços da mãe para lhe aparar. Mas a vista escureceu e ele não viu mais nada. Caindo, caindo, caindo.