Emília

  1. Emília espiava o mundo pela janela

 

Ao segundo dia Emília se acordou antes de Pantélia. Ainda ouvia a cantiga da noite, com os sapos, as jias, os grilos… Chegou bem junto do nego tição que dormia ao seu lado. Ele cheirava à mistura de óleo diesel com poeira de estrada, e esse cheiro não lhe desagradou. Com pouco, ao bafo quente de Emília no seu pescoço, Pantélia despertou. Foi até a cozinha, trouxe uma quartinha e um caneco de flandre, que pousou na única mesinha ao pé da cama. Depois, tirou do bolso um cigarro enrolado à mão. “Fuma, Emília?” – Emília fez que sim com um gesto de cabeça, mas logo ponderou, “Quer dizer… mais ou menos. No meu tempo de faculdade, filava cigarro vez por outra.” “E maconha?” “Nunca.” “Quer experimentar?” “Quero.” “Segure mais tempo a fumaça no pulmão.”

A mesa onde Pantélia colocou a quartinha e o caneco estava coberta com um pano grande de chita, como fosse a colcha da cama. Depois de algumas baforadas, Emília viu as grandes flores do pano de chita se destacarem e começarem a levitar. Queria tocá-las no ar, mas logo voltavam ao plano da mesa. “Está vendo, Pantélia, as flores flutuando?” “Não, Emília. Só vi essas coisas com ácido.” Ela ria e se deliciava com aquelas flores coloridas imitando as papoulas e os girassóis do caminho. Ouviu distante o galo, outros respondendo, noite escura. Depois, já com os primeiros clarões, o sabiá.

Sem o constrangimento da aeronave, o corpo de Emília estava lânguido, solto, aquecido pelas cobertas. Ainda embaixo das cobertas, principiaram a se beijar. Os beijos pareciam infindáveis… uma saliva doce… As mãos percorrendo os corpos um do outro… Emília se ouviu pedindo, em ânsias, mete, meu amor, mete. E, de suas entranhas, ouviu por fim um grito, quase o mesmo que saíra de sua garganta na dor de parto, mas que agora brotava de um sítio desconhecido de sua alma fêmea. A boca estava seca e Pantélia lhe serviu canecos de água fresca da quartinha. Aconchegaram-se de novo nas cobertas, até quando ele se levantou para preparar o café da manhã. Antes de sair, abriu a janela de par em par, e a brisa da manhã entrou num quarto envolto em nuvens.

O dia clareava, mas o sol ainda estava escondido atrás dos morros. Emília espiava o mundo pela janela. Viu as nuvens escuras cedendo à claridade do sol, que dava vida aos verdes da mata próxima, longe, longe, até outro pedaço da Serra da Borborema. Uma rolinha veio pousar no galho de um limoeiro. “Essa janela que nos separa, rolinha, me deixa do lado de cá, aquecida no meu conforto… E você, que nem precisa de agasalho, aqui tão perto a me dar os bons dias? Você, rolinha, é a alegria passarinha do Brejo”.

A Emília coube, unicamente, arrumar a cama após os desalinhos do amor. Não era tarefa de pouca monta, pois nesse, como em todos os demais dias, a cama foi desfeita muitas vezes. Antes de tirar todos os lençóis e cobertor e coberta e travesseiros para arrumá-los de volta, ela gostava de ficar um tempo deitada para ouvir a sinfonia de fora, numa cama tão alta que careciam de escadas de navio para subir. A cama balouçava como rede, segurada ao teto por grossas correntes de ferro.

Uma revoada de andorinhas passou voando. Uma delas se desviou do grupo e entrou por descuido pela janela. Emília teve medo e gritou por Pantélia. Com mãos grandes e cuidadosas, e com um assobio, ele apanhou a bichinha, que, assustada, voava de um lado para o outro.

Emília voltou a dormir e sonhou. Sonhou que aquela cama era um tapete mágico. O dia já amanhecera, porém o sol ainda estava escondido pela montanha e os pássaros cantavam chamando o sol. O tapete sai flutuando pela janela e entra dentro de uma nuvem, por sobre umas árvores que ela só vira num livro de geografia do terceiro ano ginasial – cedros, araucárias…

Em cima do tapete voador, Emília pousa no galho de um cedro, igual fazem os passarinhos. Eles se assustam quando veem tão grande figura, como o povo se assustou quando viu deslizar do alto da montanha uma imensa pedra, uma história que ouvira na venda, no dia em que chegaram e Pantélia lhe apresentou aos que ali proseavam.

A pedra foi caindo, rolando morro abaixo, e seu barulho era de fim de mundo. O povo todo do lugar, com medo, foi ver. Quando finalmente parou de cair, ainda próxima ao cume da montanha, era ver um ípsilon de cabeça para baixo.

Isso aconteceu logo após a morte de uma velha, que vivia mais o marido há muitos e muitos anos, no alto da montanha. Alimentavam-se do que plantavam e da ajuda dos caminhantes de trilhas. Quando a velhinha ficou doente, os vizinhos de baixo do morro quiseram leva-la ao hospital da cidade. Mas ela não consentiu. E avisou, sem nenhuma tristeza nos olhos, que brilhavam dentro de órbitas fundas, rodeados de vincos formados de muitas luas, muitos sóis e muitas ventanias, “Me deixem morrer aqui. Já tenho a mortalha que costurei e o caixão que José fez com madeira dessas matas. Voltem depois de amanhã para ajudar ele a cavar a cova e colocar a cruz. Não carece de escrever nada em riba.”

Foi depois do enterro da velha que desabou a pedra. Uns diziam que fora castigo, porque o padre usou o dinheiro dos paroquianos para comprar um anel de ouro. Outros, que havia sido feitiço da velha, que tinha poderes de bruxa. Porém, ela sabia: voltava a ser pó com grande estardalhaço, como queria que tivesse sido sua passagem pela vida.

No caminho para o cemitério, a velha apossara-se do tapete voador.

“Encontrei esse tapete jogado na estrada no dia de meu enterro. Nesse dia formou-se uma romaria no povoado. Morta, voltei a ter feições de moça nova. Lábios rosados, corada de sol, mãos carnudas cruzadas embaixo dos peitos fartos e oferecidos. A mortalha que me vestia era de algodãozinho branco. Por baixo, dava para ver o escuro do meio de meu corpo e umas pernas roliças de quem muito cavalgou.

“Os homens, em grande disputa para segurar as alças do caixão que seguia sem a tampa, foram advertidos por meu marido, ‘O caminho é longo. Haverá tempo para todas as mãos desse povoado’.

“Deitada de barriga para cima, já estava cansada de olhar o céu. Deixei lá a minha figura e pulei fora do caixão. Já ninguém me via. Saí voando à frente do cortejo. Acho que fiquei do tamanho de uma sabiá. Mas me sentia igual sempre fui: gente, mulher. Bastava abrir os braços, balança-los suavemente, voava.

“Só vez por outra olhava de esguelha para os lados ou para a frente. Com o rosto voltado para baixo, fui espiando cada pedaço da estrada de terra. A lama. Os buracos. As cores em tons infinitos de marrons, cinzas e vermelhos. Choveu chuva fina. Senti os pingos nas minhas costas nuas e tive todo o gozo dos banhos de chuva de menina.

“Margeando o rio, seguia à frente de meu cortejo. Olhei para trás e o caixão vinha longe. Umas velhas cantavam latomias de igreja, outras rezavam o terço… Para mim, aquilo se parecia mais era um bloco de carnaval. Já estava ficando cansada de voar, quando encontrei esse tapete mágico jogado na estrada. Sentei nele e tomei outro rumo.

“Não assisti a meu enterro. Não sei nem para qual cemitério me levaram. No conforto do tapete voador, dormi. Estava cansada da luta contra a morte. Ninguém pense que morrer é fácil. A gente reluta. E tem medo, porque a morte é desconhecida e a gente só sabe da vida na terra.

“Acordei com o tapete pousado nos galhos desse cedro, que José meu marido plantou quando éramos jovens. Igual aos homens que seguravam as alças de meu caixão, os passarinhos que estavam nesse pé de pau também me viram como moça nova. Espreguicei-me de um sono profundo. E foi então que uma sabiá me trouxe uma trouxinha com comida e uma garrafinha de água, dizendo que eu deveria continuar a viagem por terra, pelas matas – aonde ainda as houvesse –, disputando rodovias com caminhoneiros, até chegar ao Oceano Atlântico, a um lugar chamado Pina, onde o povo de santo se reúne todo dia oito de dezembro para levar presentes à rainha do mar. ‘Hoje – avisava-me a sabiá – já estamos em sete de dezembro. Se apresse para chegar ao Pina até a noite do dia oito. Lá, escolha a mais bela jangada, e siga junto com as flores e oferendas até o fundo do mar, onde sua mãe Iemanjá lhe espera.’”

Emília se benzeu ao acordar desse sonho. Teve o pressentimento de ser a premonição de sua vida, depois que renascera de uma perigosa cirurgia cardíaca no Massachusetts General Hospital em Boston.

(continua no próximo domingo)

 

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