- Doutor Juvenal
Se o leitor retroceder ao início dessa novela, vai recordar que em outubro de 1965 Emília desembarcava no Aeroporto Internacional dos Guararapes, acompanhada de um negão, e, de longe, fazia sinal para Maria guardar segredo do que via. Maria era grande amiga desde o colégio das freiras. A única a quem Emília escrevera sobre a verdade da internação, pois, aos outros correspondentes – a mãe e o pai –, disse da geografia de Boston, das linhas de metrô, das municipalidades agrupadas, às vezes em uma mesma rua, como na Comonwealth Avenue, o Harvard Square com a animação juvenil dos fins de tarde. Com Maria, Emília havia comemorado o dia da alta no hospital, com peixes e vinhos no Leagal Sea Food.
Desde a despedida no aeroporto, perdera contato com a amiga. Estivera envolvida com a missão confiada a ela pela avó moribunda, através da tia Nenê, de empreender longa jornada para ir buscar recados dos Orixás. Quando se viu com a decisão tomada, tendo como mapa e guia um caderno velho com as palavras África, Cachéu e Alabi, Emília ressuscitou nela a mulher racional. Era hora de procurar Maria.
Viúva fresca, Maria andava flauteando por reuniões literárias, festinhas, saraus musicais. Foram naquela noite a um sarau. Só que o músico propriamente, um que tocaria violão para todos ou cada um cantar, não apareceu. Então. Bebia-se, comia-se, fumava-se, conversava-se. Na hora em que Emília foi apresentada como alguém que estava indo à África para cumprir um mandado dos Orixás, e precisava decifrar três palavras – como quem decifra uma grafia diversa da que conhecemos -, aqueles jovens advogados, engenheiros, professores, chegaram ao entorno dela como insetos atraídos pela luz.
– Sim, vamos ver, traz o mapa… onde fica Cachéu? Uuumm, mas logo a Guiné Bissau, Emília? Essa orixá não podia ter escolhido outro pais que nesse momento não estivesse em guerra? – Era daqueles que, pela vida afora, nunca vão perder o espírito de militância. Por um acaso, que Emília logo entendeu não como acaso, mas como caminhos que principiavam a ser traçados para ela pelos deuses que habitam no Orum, aquele jovem advogado estava justamente naquele momento acompanhando de longe, por rádio e pelas parcas notícias da imprensa, os desdobramentos das revoluções de libertação nacional de países da África. Guiné Bissau e Cabo Verde eram a bola da vez. Emília teve uma aula de história. Ao final do sarau, madrugada alta, muitas garrafas vazias, já dispunha de uma estratégia de guerra: Paris-Dakar de avião; dali atravessar a fronteira, clandestinos, ela e algum guia que carecia conseguir lá; e cruzar a fronteira perto da nascente do Rio Cachéu, tomando dali, já no lado da Guiné Bissau, uma embarcação até a cidade do mesmo nome. Sobrava para ela o enigma principal: descobrir quem era Alabi.
Porém, antes de partir para a aventura, Emília carecia resolver dois assuntos de ordem prática: com quem deixaria José; e quem bancaria os custos da viagem. A solução para o filho já estava dada desde antes, quando Emília deixara José para a avó tomar conta pelo tempo que durasse seu curso fora do país. A essa altura da vida, com vinte e quatro anos, Emília já sabia que o filho seria mais bem criado pela avó do que por ela. Sabia que as pessoas carentes de mãe na infância guardam na alma uma lacuna que nada preenche. Não tendo aprendido em pequena o que é amor de mãe, não sabem o que oferecer ao filho. Portanto, tudo continuaria como já estava, José aos cuidados da avó.
Até então, a fonte de sustento para Emília havia sido as cabeças de gado das fazendas do pai. (Com a única exceção do curto período, de menos de três anos, em que viveu casada, morando e trabalhando no Recife.) Mais uma vez, iria beber nessa fonte. Na viagem ao Velame, abriu a janela do ônibus ao passar pela mesma cerca de arame onde, há menos de quinze dias, fizera Pantélia parar o jeep. Agora, mesmo de longe, à terra molhada por uma chuva ligeira e a um ventinho fresco que entrava pela janela aberta, sentiu aquele cheiro de infância.
No Velame encontrou o pai mais abatido. As prescrições médicas após o enfarto lhe haviam roubado alguns quilos. Ele tomou um susto ao ver chegar Emília. De pronto, com uma alegria saindo pelos olhos claros, realçados por uma testa que parecia maior, os cabelos rarefeitos e grisalhos concentrando-se perto da nuca, não quis saber por que ela ali, quando deveria estar em aulas. Falava das cartas de Emília, com o entusiasmo com que defendia uma causa no foro. Ria da comparação do rio Charles com o rio Capibaribe. E Emília pensou, Ele nem sequer imaginava que essa carta eu escrevi recostada na cama inclinada de uma enfermaria, à luz da réstia de sol que iluminava os trinta centímetros pelos quais aquele rio chegava à minha retina pela janela.
Proseavam, cada um em sua rede, no mesmo terraço onde ela soubera um dia a verdade da adoção. Naquele dia, 21 de maio de 1954, Emília havia completado 13 anos. Foi também naquele dia que ficou moça. Calados, se balançando, que era como o doutor Juvenal gostava de ficar um bom tempo, antes de prosseguir uma prosa. Emília recordava aquele dia. Como uma premonição, acordara com um trovão ao longe. Com pouco, a água escorria pelo telhado. Abriu a janela para sentir o cheiro de terra molhada. Nessa hora, viu o clarão do relâmpago cortando o céu, antes de ouvir o estrondo de outro trovão ainda maior. Teria caído algum raio? Teve ímpeto de fechar a janela. Mas não resistiu ao cheiro da primeira chuva do inverno. As rosas de abril ainda rescendiam em maio. Fechou os olhos para sentir melhor os cheiros e ouvir os pingos d’água, que formavam uma cortina de cristal pelo lado de fora da janela. A madrugada chuvosa e úmida esfriou seu rosto e braços. Foi até a escrivaninha, abriu o estojo de lápis e voltou com o terço na mão. Ajoelhou-se de novo no colchão, as mãos recebendo respingos da cortina de chuva; rezou o terço.
Depois, fechou a janela, os postigos, e, embalada por um pingo monótono em uma lata velha num canteiro de rosas, adormeceu, para só acordar a tempo de se arrumar para ir ao colégio.
Após o almoço meio festivo daquele 21 de maio de seu aniversário de treze anos, lia um romance deitada na rede. Voltara a chover. Chuva e sol. Concentrada na leitura de M. Delly, quase não percebeu quando Natércia chegou junto dela, segurou o braço da rede, balançando-a um pouco.
– Ói, Emília, eu vou te dizer uma coisa que ninguém até hoje teve coragem. – Natércia estava em pé, vendo de cima para baixo quando Emília interrompeu a leitura e olhou para ela, que mostrava um sorriso desconfiado. Fez cara de mistério, olhou para os lados, a ver se não havia ninguém por perto. Baixou a voz. – Você promete guardar segredo?
– Sim, Natércia, prometo. Conta logo.
– Minha mãe conhece tua mãe de verdade. Ela é casada com um pescador e mora no Recife.
Emília pulou de um salto da rede e se sentou numa cadeira. Chamou a arrumadeira para se sentar na cadeira ao lado. Ficou um tempo sem falar nada. Depois disse,
– Você está brincando comigo, Natércia?
– Não, Emília. Foi minha mãe quem pediu para eu te contar. Tua mãe de verdade quer te ver.
– E meu pai?
– Teu pai não é o marido dela. Foi-se embora pra São Paulo e nunca mais voltou nem deu notícia.
Natércia ficou assustada quando Emília principiou a chorar. Mas não desdisse. Foram até a cozinha e a cozinheira, Carmem, confirmou. Era verdade.
Trancada no quarto, Emília não viu mais os pais naquele dia. No dia seguinte, Quinta Feira Santa, alegando lições do colégio, não os acompanhou à fazenda do avô. Sozinha em casa, sob os cuidados vigilantes das duas cúmplices de sua mãe de sangue, vagava pelos cômodos daquela casa espaçosa e confortável, que agora lhe parecia estranha.
Filha adotiva… Martelando na cabeça.
O doutor Juvenal, na rede dele, lembrava de um dia invernoso de julho, três meses atrás, quando Emília o procurou para dizer que havia sido aprovada em Harvard. Lembrava daquele como um dos dias mais felizes de sua vida. Também naquele dia ela chegara de surpresa. Com aquele constrangimento de pedir o que para ela era muito e para ele tão pouco, botando na balança gastar o que um dia seria mesmo dela, em troca da filha realizar o grande sonho dele – maior, muito maior do que simplesmente ser advogada. Jurista formada em Harvard!
Ao baixarem ao presente, Emília contou do desmaio no guichê da secretaria da universidade, onde acabara de receber a carteira de estudante, da cirurgia no coração, repetindo a mesma história dita à mãe. E o pai reagiu com o mesmo conhecido ditado, de que Deus escreve certo por linhas tortas: “A crise de coração deixou para acontecer quando você estava no lugar certo, Emília, com a medicina que podia te curar.” E Emília, balançando a rede com o calcanhar na pilastra do terraço, criava coragem para dizer o motivo principal da visita. Ao ouvir os planos da África, foi a vez do doutor Juvenal dar impulso de balanço na rede e dizer, com a voz um tanto impaciente, “só não entendo, minha filha, você, uma moça tão inteligente, resolver seguir a maluquice dessa tia catimbozeira.” Ficaram mais um tempo se balançando. Até que o juiz de direito interrompeu o silencio e, levantando a voz, pediu para Carmem coar mais um café. Chamou Emília para a mesa de jantar.
Emília observava o pai, que sorvia goles estalados do café preto muito quente, pousava a xícara no pires a intervalos, as mãos cruzadas sobre a mesa, rodando os polegares um no outro. Olhou para a filha com um ar desolado e disse sério, quase como um padre num sermão de missa, “Quem somos nós, Emília, para julgar desígnios misteriosos da vida? Nessa última estiagem morreram muitas cabeças de gado. A cobra picou outras tantas, na conta feita pelo administrador, sem o olho do dono. Mas ainda tem muito boi no pasto que paga muitas viagens tuas, minha filha. Para a África. Para os Estados Unidos. Para a China…”
O pai falava agora com uma tristeza na voz, um olhar distante, que não parecia ter nada a ver com o projeto interrompido de Harvard e o plano maluco da filha de viajar para Guiné Bissau. Alguns anos depois, quando Emília veio de São Paulo para os momentos derradeiros e o enterro do doutor Juvenal, compreendeu que, naquele último encontro dela com a lucidez do pai, na fala que se seguiu, ele já mirava, com mais medo do que esperança, a indesejada das gentes.
– Emília você é muito jovem. Vinte e quatro anos é o começo da vida adulta e você já viveu tanto! Já é mãe. Tem sido uma filha exemplar, que nunca me deu nenhum motivo de desgosto. Se alguém aqui já deu esse motivo, fui eu. Mas tudo nessa vida passa, minha filha. Como dizia Goethe, a vida é curta. E muito longa a arte. Vá, Emília. Vá para a África. Na volta você retoma sua vida, que já teve tantos recomeços.
No dia 7 de novembro de 1965 Emília partiu. Achava que era branca quando morou no Velame, “bonita e inteligente, puxou ao pai”. Nos Estados Unidos descobriu-se negra. Agora, vestida com as cores vivas dos tecidos do Senegal no corpo e na cabeça, via-se diferente das mulheres africanas.
Deixou-se guiar por Braima, um jovem de 22 anos que falava português e crioulo, refugiado da Guiné Bissau depois de quase ter sido assassinado pelo exército português e que, disso Emília não tinha dúvida, devia ter sido enviado pelos Orixás.
Atravessaram a fronteira em São Domingos e tomaram a primeira embarcação com destino a Cachéu, junto com homens, mulheres, meninos, galinhas, porcos, verduras, sacos de carvão, de amendoim, sal, pescados. O cheiro de peixe lhe lembrava a praia do Janga. Às vezes, chegava a sentir a presença da avó ali perto dela. Moleirão, o rio Cachéu atravessava a Guinéu Bissau sem pressa, demorando-se em portos menores, embarcando e desembarcando gentes, animais e mercadorias. Sentada em um caixote vazio, Emília espiava as margens de um verde luxuriante: por trás dos manguezais ladeando o rio, imensos campos cobertos de mangueiras, cajueiros. Trocasse as palmeiras de Dendê por coqueiros, as casas de taipa cobertas por palhas de Colmos pelas dos coqueiros, era ver a paisagem do Janga. Com uma majestade: os imensos Baobás, a árvore sagrada, que logo Emília ficaria conhecendo de perto, no Quimbo onde morava o Pai Alabi, o mais velho Babalorixá de Cachéu, cego e doente, e que ainda comandava o terreiro de Oxum.
Era de tardinha quando desembarcaram em Cachéu, uma cidade de onde outrora embarcaram muitos negros escravizados para o Brasil. Não havia pousadas. Braima conseguiu hospedagem na casa de um conterrâneo seu de Quinhamel. Ouviam tambores à distância. Enquanto Emília tentava descansar, mal acomodada em uma esteira e fazendo da mochila travesseiro, Braima saiu para tomar informações sobre as guerrilhas, como fez em cada porto onde parou a embarcação. Na volta, já sabia onde ficava o terreiro do Pai Alabi. E contou para Emília de onde vinha o toque dos tambores: um velório, onde o defunto, deitado num catre, envolto em coloridos panos tecidos só por homens para a cerimônia da morte, era velado com danças ao som de rústicos tambores feitos de troncos de árvores.
(continua no próximo domingo)