A frágil vida humana

26 de agosto de 2020

Ontem a morte bateu de novo à minha porta. Morria meu cunhado, Plínio, tão irmão quanto meus irmãos. Chorei no telefonema de Rosa, de Brasília, como se estivéssemos abraçadas uma à outra, inconsolável ela, o choro de uma tristeza que só sabem as viúvas de casamentos duradouros. Ontem foi dia do Soldado e minha irmã lembrou disso. E até rimos, à recordação de Plínio recruta, ela ligando de um orelhão perto da Casa da Universitária, doença em família, uma mentira que rendera uma noitada recifense para os namorados, no tempo em que as praças do Brasil eram abertas.

Ocupei-me o dia de ontem com a morte, os avisos, os retornos dos amigos, da família, a nota de falecimento para a imprensa, as lembranças. Do que se passou com minhas emoções, a ausência do contato físico em nada alterou o que sentiria se estivéssemos todos juntos nas cerimônias do velório e do enterro. Como se a palavra escrita se revestisse de mais força.

Hoje não consegui ainda retomar o novo episódio de Emília. A morte dormiu e acordou comigo. Penso mesmo que ela tem sido uma companhia antiga na minha vida.

  1. Meu pai deitado numa cama trazida do Hospital Pedro II, onde fizera residência na segunda metade dos anos trinta do século passado. Os dois filhos mais velhos se ocupavam das providências médicas; o do meio, na força dos braços jovens de dezoito anos, enfermeiro; as duas mais novas, minha irmã e eu, nas tarefas comezinhas de ajudar nas arrumações de uma casa movimentada pelo entrar e sair de médicos, familiares, amigos. Alguma dessas tarefas eu fazia no quarto de meu pai, quando adentra o dr. Hindenburg Lemos, primo de minha mãe, companheiro dele de antigas venturas médicas, meu padrinho. Permaneci sentada na cama que ficava perpendicular ao leito do paciente. O colega médico postara-se de pé, encostado à janela aberta. De onde eu estava, via-o impecável em seu terno branco, o jeito brincalhão com que sempre os via quando se encontravam. Puxava assuntos triviais.

– É, Bubu. Você aí disfarçando tão bem. Já fiz muito isso. E sei que é o momento mais difícil na vida de um médico, quando toma tento de que não é Deus – Quando deu fé de que eu ouvia, olhou-me com um ar pesaroso, mas tentou rir e, com carinho na voz, – o que você faz aqui, minha lourinha? Ande, vá continuar o que estava fazendo.

A crença na vida eterna certamente foi o bálsamo para que meu pai olhasse a morte de frente, deixando um diário, que conservo, escrito numa cadernetinha onde misturou anotações médicas, reflexões sobre a vida e a morte, contas de seu recente empréstimo no banco Lar Brasileiro para comprar a casa do Recife na rua professor Edgar Altino. Os dois outros moribundos que acompanhei até a hora derradeira, lutaram como quixotes contra aquela que chega sem dó nem contemplação na hora certa. Tão certa, segundo crença popular, como a hora em que se chega ao mundo.

Mais uma derrota da frágil vida humana para o destino inexorável do homem.

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