Emília

  1. Mãos de lavadeira

 

Naquela noite Emília não conseguiu conciliar o sono. Dormia cochilos, com sonhos que fugiam de sua lembrança, logo acordava com os roncos da avó da casa, com quem compartilhou um quarto apertado. Um calor abafado. Insetos picavam e zuniam. Emília levantou-se e foi para o terracinho do tamanho de sua esteira, um metro e setenta ao comprido.

Sem lâmpadas de eletricidade perto ou distante, espiava o céu africano. Uma brisa forte cheirando a mangue, vinda do rio Cachéu, espantou o zunido dos mosquitos. Ouvia agora a noite profunda da África. Não podia ler, um hábito das insônias. Mirava as estrelas cintilando como em noite de festa, que ali pareciam lhe dizer: sempre existe alguma festa dentro de você, moça.

Lembrou-se do aniversário de quinze anos na casa da avó no Janga.

 

  1. Eu cursava o quarto ano ginasial. Desde o fatídico aniversário de treze anos, o dia 21 de maio não foi mais motivo de comemoração para mim, até muitos anos depois, quando minha vida já se afastara do Velame, do Pina, do Janga. Porém, nas férias de verão daquele ano, a avó quis me fazer uma surpresa. Depois do almoço, “Traz o bolo, Ceiça.” “Mas vovó, o aniversário já passou.” “Eu sei, minha filha. Mas você tem quinze anos até 21 de maio do ano que vem. É somente mode não passar em branco uma idade tão bonita. Não sei quanto tempo de vida vou ter pela frente, Emília. Faça esse gosto para a sua avó.”

A tia trouxe um bolo de massa de mandioca com quinze velinhas brancas. Depois dos parabéns, “Vamos lá no meu quarto, minha xará.” – Lá entregou-me, quase solenemente, o presente de aniversário: o adereço de cabeça usado por ela nas cerimônias sagradas. Fora a derradeira tentativa de minha avó, em vida, de me transmitir a descendência africana da religião negra.

Nas férias grandes de dois anos atrás, em que deveria me tornar abiã e fazer o noviciado para ser filha de santo, eu havia pedido permissão à avó para adiar a decisão. Ela foi tranquilizada naquela ocasião por uma mensagem de Ifá pelos búzios. O recado dos deuses era para ela ter paciência, que um grande futuro estava reservado para aquela Casa de Santo.

Depois do almoço, do bolo, dos parabéns e do presente, fui ajudar Maria Emília a lavar a louça. Acabada a limpeza da cozinha, fomos para a fresca da Castanhola em frente de casa, onde já estavam as tias e algumas primas. A avó, na rede da varanda, ora cochilava, ora ouvia a prosa e palpitava. Era um dia quente de verão.  Quando o sol principiou a encompridar as sombras para o lado do mar, Maria Emília me chamou para uma caminhada. “Deixe as alpercatas aqui, Emília. Vamos descalças. A areia da praia a essa hora não queima mais a sola dos pés.”

A maternidade de Maria Emília comigo era distante. Eu nunca havia me sentido à vontade como filha. Os trinta dias de convivência no Pina, a perversidade das irmãs, o estranhamento das refeições, da casa, da vizinhança… No Velame, eu era uma menina mimada por duas empregadas e um pai que me faziam todas as vontades. Nunca havia lavado um talher, um copo. Não sabia o que era forrar uma cama.

Nos primeiros dias, Maria Emília parecia Carmem, como se fosse ainda a empregada doméstica do doutor Juvenal e dona Heloísa, cuidando da princesa que não vira crescer. No primeiro dia em que me ofereci para ajudá-la nas tarefas de casa, esse gelo começou a ser quebrado pelas beiradas. Fazer junto as tarefas comezinhas de varrer casa, preparar comida, lavar louça, favorece uma proximidade que a gente experimenta em poucas situações na vida.

Quando Maria Emília me chamou para caminhar, eram mais ou menos três e meia da tarde. Até às cinco, o mar de esmeralda desses nortes esplandece em tantas cores e tão rápido, que deixaria um Manet, acostumado aos lentos entardeceres europeus, desnorteado com suas tintas. Caminhamos quase meia hora sem pressa e sem pronunciar palavra. A maré estava a meio caminho entre o mar cheio e seco. Havia chovido na véspera, e num trecho de praia andávamos por sobre sargaços, um tapete verde e marrom macio aos pés. “Cuidado, Emília, para não pisar nessa caravela.”

Descalças, as ondas molhando os pés e as pernas, às vezes a barra da saia, chegamos às margens do rio Doce. Ali esbarramos. Até então, Maria Emília vinha entretida com seus pensamentos, como alguém que estivesse preparando um discurso de improviso. Sentamo-nos num pedaço de areia no encontro do rio com o mar. O lugar do encontro das águas doces com as águas salgadas é sempre sítio sagrado, onde Oxum vem tomar a bênção à sua mãe Iemanjá. Ali ficamos ainda um tempinho caladas. O sol caminhava para o crepúsculo. Alguém que espiasse de longe, diria, duas amigas.

Segurei a mão de minha mãe. Igual ela fazia comigo quando me levava ao ponto de ônibus no Pina. Mãos de lavadeira. Ela teve um sobressalto, quase imperceptível. Estávamos distraídas uma da outra, num silêncio só cortado pela disputa do rio com o mar, o encontro magnífico das águas.

Ela olhou-me, sorriu, e disse, sem preâmbulos.

– Minha filha, seu pai é seu pai. – Será que eu sempre soube? Desvendava-se o último segredo. E Maria Emília abriu o coração, como uma amiga confidente. – Quando a barriga começou a aparecer, voltei para o Janga. E você, minha filha, nasceu numa noite de lua cheia. Comecei a sentir as dores do parto no meio de uma festa de santo. Baixou meu orixá e dancei, dancei, até uma contração forte. Dei um grito e me levaram para a camarinha de sua avó. Não dava tempo de chamar a parteira. Foi pelas mãos de minha mãe, tua avó, que você viu a luz do dia que começava a clarear. 21 de maio de 1941.

 

Deitada no terraço da pequena casa de taipa dos conterrâneos de Braima, Emília viu as estrelas se recolhendo às primeiras claridades do sol, e ouviu distante o primeiro galo da madrugada. Dentro de casa ainda reinava o silêncio. E ela continuou entregue aos pensamentos trazidos pela brisa do rio Cachéu. Parecia que sua avó estava ali, ao lado dela, como sempre esteve, mesmo depois de morrer.

 

O ano de 1954 foi tão longo na minha vida quanto estava sendo esse, de 1965. Nas férias grandes de verão daquele ano, faria o noviciado no terreiro da avó para ser Filha de Santo. Ah, quantas dúvidas me assaltaram o espírito naquela ocasião! Enquanto arrumava as malas no colégio para ir ao Janga, “Será que quero mesmo ser Filha de Santo? Perpetuar uma tradição que só fui conhecer aos treze anos, e é tão diferente de tudo o que foi minha vida até hoje?”

Perdi a fé católica no angustioso dilema entre abraçar a religião africana ou permanecer naquela onde fora criada. Já não tinha significado para mim os diálogos com o Padre Carício, que, à minha confissão sobre o dia em que havia sido incorporada por Oxum, impusera-me pesada penitência de muitos terços e até uma pedrinha no sapato para expiar o pecado. Encantavam-me os rituais do terreiro, a conexão dos deuses com os elementos da natureza. Deuses que baixavam do céu (Orum) à terra (Oiá) pelo corpo de seus devotos em transes espetaculares. Na religião católica, Cristo se dá a comer e beber aos fiéis na hora da comunhão, em contrição. Nos ritos do Candomblé, ao ritmo dos tambores, das músicas, das danças, a comunhão é de cada filho com o seu santo, que se incorpora nele em festa. Tudo tão bonito, colorido, alegre… Descobri por que eu era tão atraída pelas águas doces dos rios e das cachoeiras, Oxum, e pelas águas salgadas do mar, Iemanjá.

Porém, quando fechei a mala com a decisão de passar as férias com a família no Janga, não sabia ainda se lá seria ou não Abiã. Com minha indecisão (isso o leitor já soube), a avó ouvira o oráculo e me dispensara das obrigações do noviciado naquele momento.   

 

E assim se passaram onze anos. As voltas que a vida dá. Estava ali Emília, deitada numa esteira no terracinho de uma casa estranha, ouvindo os primeiros ruídos de pessoas se levantando e abrindo a porta dos fundos para ir buscar água na cacimba. Levantou-se. Chegara a hora de ir com Braima consultar o Pai Alabi.

O velho babalorixá os recebeu em seu Quimbo, onde morava com quatro esposas, cada uma na casa dela, e muitos filhos. O quimbo é um agrupamento de palhoças de taipa cobertas de palha, ao estilo das que Emília vira pelo caminho na viagem de barco de São Domingos a Cachéu. Nesse, onde morava o Pai Alabi, as palhoças situavam-se em torno de um pátio central, semelhando nossas habitações indígenas. A cozinha ficava nesse pátio e era de uso coletivo para todas as mulheres. Ali, as crianças brincavam; as moças conversavam, trançavam os cabelos; as mulheres abriam mariscos, preparavam comida. Uma mãe catava piolhos na cabeça de uma menina.

Foram recebidos pela mulher mais velha do Pai Alabi, uma mulher de porte altivo, alta, magra. Usava um vestido comprido, solto no corpo, com estampas esmaecidas de um tecido que devia ter sido muito colorido em rosas, verdes, amarelos e branco. À cabeça, portava um pano do mesmo tecido, menos desbotado. Dirigiu-se a Emília com um sorriso discreto de bem receber, sem fazer perguntas, como se soubesse já o motivo da visita. E cumprimentou-a com um abraço de cada lado, como costuma fazer o povo de santo. Pediu para Braima permanecer na entrada da casa e levou Emília para dentro. O que Emília viu primeiro foi um fogareiro aceso ao fundo da sala. Lá estava o Pai Alabi.

A mulher deixou Emília numa esteira ao rés do chão, ao lado de outra, onde estava sentado o Pai Alabi. Com o contraste da claridade tropical de fora e o escuro de dentro da casa, ela não vislumbrou a princípio a fisionomia do pai de santo. Pela maneira como a mulher se dirigiu a ele, percebeu que era cego. Ela falou com ele em crioulo. Ele nada respondeu. Apenas assentiu com a cabeça.

A vista de Emília ia se acostumando à meia luz e, aos poucos, distinguia um homem baixo, magro, de grande serenidade no rosto. Fosse branco, seria a figura de Dom Helder Câmara. Emília não careceu contar dos últimos dias da avó Emília, do sonho da tia Nenê, do caderno com o nome dele.

O Pai Alabi pediu que Emília repetisse o nome dela de pia. Ao ouvi-lo pela segunda vez, ele teve um ligeiro sobressalto. Tateando, procurou a mão de Emília. Levou-a à boca e beijou. Em torna, Emília beijou a dele, como fosse a bênção aos mais velhos que aprendera em menina. Naquele momento, o sentimento de Emília foi de que, há muito, estava sendo esperada como alguém especial. O velho babalorixá chamou a mulher e pediu a ela a presença do neto.

Dirigiram-se os três a uma árvore que ficava a poucos metros de distância do Quimbo, um Baobá, que tinha um pano branco envolvendo o tronco. Ordenou ao neto para ir buscar a tábua de consultar Orunmilá. O sol das dez horas da manhã estava forte. Soprava, contudo, uma brisa agradável embaixo do Baobá. O Pai Alabi vestia uma calça de tecido cru, folgada no corpo magro e amarrada na cintura por uma embira, cujo nó aparecia embaixo da túnica branca que descia até quase os pés. Portava um turbante branco. De pés descalços, procurou pelo tato dos pés determinada raiz daquela árvore, onde se sentou com a ajuda de Emília e do neto. Mandou que Emília se assentasse na raiz em frente à dele. O neto permaneceu ao lado do avô, em pé.

O Pai Alabi pediu para que Emília fechasse os olhos e se concentrasse no motivo de tê-lo procurado, o motivo da avó. Que fizesse alguma oração e depois ficasse em silêncio até ele começar a jogar os odus. “Eu me afastei do povo de santo, meu Pai. Dediquei-me a estudar. Só me lembro de rezas do tempo do colégio das freiras católicas.” “Pois reze essas, minha filha”.

Com a leitura dos dezesseis odus, que Emília conhecia no terreiro da avó como búzios e que lá eram nozes de dendê, o Pai Alabi revelou, primeiro, o que Emília já sabia: que o ori dela era de Oxum, no centro da cabeça, sendo o ajuntó (os lados da cabeça) de Iemanjá. Depois fez outras invocações em yorubá e jogou as nozes de dendê muitas vezes. Pelo tato, o Pai Alabi sabia se caiam no tabuleiro virados para cima ou para baixo. Por fim, falou em crioulo, pedindo ao neto para traduzir tudo para Emília assentar no papel. Ela tirou da mochila o caderno velho de Josué. Com a solenidade de um ritual, o Babalorixá transmitiu a Emília o recado dos orixás.

– Emília, você volta para o seu país e vai procurar Josué aonde ele estiver. Com a morte de sua avó, a grande Yalorixá do terreiro do Janga, o assentamento de Oxum carece de ser retirado de lá, e levado por você mais Josué do Janga para São Paulo. Em São Paulo, Josué carece de procurar um terreno perto de um rio, aonde plante todas as nossas ervas e tenha bom lugar para construir a casa e o terreiro. – “Vigie depois, menino, para sua avó entregar a Emília as sementes que ela vai levar”, disse ele ao neto. – Essa, minha filha, é a sua missão na terra. Oxum quer levar o conforto espiritual para seus filhos, que das terras do Norte fugiram de grandes estiagens para trabalhar nas construções do Sul.

Emília não tinha notícia de Josué desde que ele abandonara o Janga, naquele mesmo ano em que se apaixonaram, 1954. O primo havia ido com um tio para São Paulo e nunca mais dera notícia.

Se encontrara o Babalorixá Alabi em Cachéu, Emília não tinha dúvida de que acharia Josué em São Paulo.

 

(Continua no próximo domingo)

Deixe um comentário