Emília

  1. Gerânios floridos

 

Emília desembarcou em São Paulo numa primavera incerta de 1965. Precisamente, 14 de novembro. Com a certeza de que os Orixás continuariam segurando sua mão. Agora, mais ainda, pois a busca em São Paulo seria mais difícil: sem guia, guardava apenas a lembrança de um garoto de 13 anos, seu primeiro amor. Mas sabia também que carecia usar razão e lógica para ajudar os Orixás nessa busca. Ora, se o Pai Alabi mandou encontrar Josué para ele ir buscar no Janga o assentamento de Oxum, significava que, em São Paulo, ele possivelmente estaria ainda ligado ao Povo de Santo. Tal como no Recife, também naquela grande e desconhecida metrópole, Emília começaria sua busca pelos intelectuais.

Tomou informações no aeroporto e foi direto para uma pousada, espécie de pensionato, na Vila Madalena. Nesse tempo, o bairro era o comércio da rua Teodoro Sampaio e imediações, e o resto, moradias tranquilas em ruas, vilas… Sobrados minúsculos de vizinhos lavando a calçada. Um ou outro restaurante, serralheria… A pousada ficava numa rua onde passavam ônibus, porém, o quarto de Emília, no andar térreo, dava para os fundos do prédio de dois andares e não era barulhento. Tudo muito simples, mas limpinho, boas toalhas de banho. A janela do quarto se abria para um pequeno pátio cimentado, com dois vasos de gerânios floridos. Para sempre São Paulo ficou sendo para Emília a vista dessa janela para dois vasos de gerânios floridos. Chegou à pousada tão cansada, que somente tomou um banho morninho (ah, que maravilha!) e caiu na cama para só acordar no outro dia, que era o feriado de 15 de novembro. Sozinha numa cidade onde não conhecia ninguém. A padaria estava aberta e era vizinha ao pensionato, no outro lado da rua. Primeira lição de São Paulo: essa cidade não fecha.

No dia 16 de novembro, uma sexta feira, tomou um taxi às nove horas da manhã com destino à rua Maria Antônia. Começaria sua busca pela USP. Através de algum professor de antropologia, localizaria talvez os terreiros de candomblé de São Paulo, possível caminho para encontrar Josué. Ao chegar ao saguão de entrada do prédio da Faculdade de Filosofia, a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi um imenso quadro mural com recortes de jornal, avisos sobre atividades no Campus, etc. Afixado em um cantinho meio escondido desse quadro, havia o anúncio de uma seleção para trabalhar em uma organização de direitos humanos. Emília anotou o telefone no verso de seu talão de cheques. E ficou por ali, olhando as várias portas, indecisa para onde se dirigir… quando um estudante lhe perguntou se precisava de ajuda. Ele estava junto com outros, eram três rapazes e duas moças. Para eles, Emília disse apenas que precisava encontrar um primo, que fugira de casa aos treze anos, teria vindo, possivelmente, para algum terreiro de candomblé em São Paulo, e a família queria saber o paradeiro dele. Talvez um professor de Antropologia pudesse informar sobre os candomblés de São Paulo.

Uma mulata nordestina, elegante, bonita, perdida em São Paulo à procura de um improvável primo. Pressentiram nela uma futura militante. Alguém com o perfil certo para ser nucleada na luta por um país igual e justo. Compraram a busca de Emília como fosse mais uma das tarefas revolucionárias do Partido. Eram todos muito branquinhos e Emília se destacava no meio deles. “A pessoa certa para te conduzir ao caminho das pedras – dizia um -, é o nosso professor de Antropologia. Mas nesse momento está participando de um congresso em Lisboa”.

Apresentaram Emília à secretária do departamento e deram uma volta com ela pela biblioteca. Aproximava-se a hora do almoço. Convidaram-na para acompanhá-los, e foram a um boteco próximo, onde pediram um PF básico, feijão, arroz, bife e salada. Emília fez o mesmo pedido. Reclamaram da comida. “Paulista reclama de barriga cheia”, pensou ela. Comparava com o que era servido nos botecos próximos à sua faculdade. Aquele Prato Feito de São Paulo era um banquete! E ela refletia, “É. O Nordeste é pobre mesmo.”

No almoço, conversou mais com uma moça de cabelos castanhos amarrados num rabo de cavalo, magrinha, risonha. Ela estava curiosa a respeito de Emília, que disse rapidamente do curso de Ciências Sociais no Recife. Levou menos tempo percorrendo os quatro anos do curso, do que a moça para falar de uma única disciplina. “Sabe Emília? Isso é graças ao entusiasmo com que nosso professor, um dos mais jovens aqui da Maria Antônia (esse, que você vai conhecer quando ele voltar do congresso), fala das tribos africanas, da religião dos Orixás, de nossos ancestrais indígenas. Ele dá aula com vida, não tem quem não preste atenção. O professor Josué, é uma figura!”. Quando a moça de rabo de cavalo falou o nome, Josué, Emília tomou um susto. E ela percebeu. “Por que você fez essa cara, Emília?” “É que esse também é o nome do primo a quem eu procuro.” A moça magrinha e risonha dirigiu-se aos outros, que discutiam outros assuntos, “Pessoal, o primo da Emília, a quem ela procura, se chama Josué.” Descreveram os traços do professor: mais ou menos da altura dela, mais preto, cabelos penteados ao estilo rastafári. E até no maior inverno, vem dar aulas sempre com umas sandálias de couro parecendo as de vaqueiro sertanejo. “Não, não fala com teu sotaque tão carregado.” O que disse isso, corou um pouco e tentou consertar elogiando o professor, “Às vezes, em sala de aula, se sai com alguma palavra engraçada, desconhecida para nós, e ainda goza da nossa cara. ‘Vocês são uns italianos que não conhecem a riqueza da língua portuguesa.’”

Agora acrescentava-se um ingrediente excitante ao trabalho de detetive do grupo. Seria o professor Josué, o mesmo Josué que fugira de casa aos treze anos?

 

 

No pensionato, Emília tomou banho, passou creme hidratante no corpo, ficou mais tempo do que o costumeiro em frente ao espelho, arrumando os cabelos, em dúvida se punha ou não batom. “Será? Não é melhor ir de rosto lavado, cabelos ao vento, sem nenhuma pintura? Como será Josué de cabelos rastafári? Será que vou reconhece-lo? E ele?” Só conseguia ver o rapazinho de treze anos e meio, os olhos de jabuticaba, os ombros largos de pescador, uns braços e um peito que um dia acolheram seus medos.

O dia amanhecera ensolarado e quente, abafado. Talvez fosse prenúncio de chuvas. “Chuva é um elemento da natureza que carregamos dentro de nós, talvez porque somos mais água que sólido. A minha chuva é no inverno. Em São Paulo a chuva é no verão. A gente se acostuma com a comida, com o sotaque, com a pressa do povo… até com a estranheza deles com nossa fala, quando nos perguntam, ‘e você, é de onde mesmo?’. Mas chuva no verão? Chuva é a que a gente carrega da infância.”

Chegou em frente à Faculdade de Filosofia às nove horas em ponto. A secretária informou que o professor só chegaria às dez. Voltou para rua e foi na direção da Igreja da Consolação. Desde que chegara a São Paulo não entrara ainda em nenhuma igreja. Aquela era bonita, mas sem os rococós de ouro das de Olinda e do Recife. Umas mulheres rezavam o terço nos bancos próximos ao altar. Ajoelhou-se no último, fez o sinal da cruz e rezou as três ave marias costumeiras à primeira vez em qualquer igreja. Saiu para o dia de sol e foi procurar um banco sombreado na praça. Voltava a imagem de Josué no Janga.

Está assim em devaneios, quando vê descendo do ônibus um negro de cabelos rastafári e calçando alpercatas de vaqueiro. Enquanto ele aguardava para atravessar a rua, Emília disparou correndo em sua direção. Ele deve ter pressentido algo porque, de onde estava, com outros pedestres esperando o sinal abrir, olhou para trás. Viu aquela moça correndo em sua direção. “Para mim, Emília, você foi uma aparição. Eu tinha sonhado uns dias antes com uma figura poderosa, como se fosse um leão. No sonho, não sabia se era eu esse leão ou alguém que iria aparecer na minha vida. Você foi essa aparição, Emília.” “E como você soube que era eu, Josué?” “Ora, minha prima, por causa do sonho. Não tive dúvida.” Porém, o que Josué disse a Emília muito tempo depois, recordando aquele encontro, foi outra coisa. “Lá vinha correndo para mim aquela moça linda, linda como até então só havia visto uma mocinha medrosa e envergonhada de treze anos, que me fizera sentir a primeira sensação de homem. E quando chegou perto com aquele vestido de florzinhas que mostrava as pernas perfeitas, os braços luminosos pelo sol, o colo bronzeado e o começo dos seios fartos … quando chegou perto com um sorriso que mostrava os dentes brancos e perfeitos, um sorriso que escondia um pouco os olhos verdes da cor do mar das nove horas da manhã na praia do Forte de Pau Amarelo, já não tive dúvida. Aquela é Emília”.

O mundo parou. Os outros atravessaram a rua quando o sinal abriu. Emília e Josué caminharam na direção contrária, ao banco da praça onde ela estivera sentada. Só então se abraçaram de novo, agora sem o ingrediente do espanto. Inundava Emília uma alegria menina, das primeiras férias na praia do Janga. Se sentaram. Josué esqueceu a mão em cima da mão de Emília. Virada para ele, contra o sol, Emília observava os traços do rosto do primo. Era um rosto mais cheio, com barba espessa, bigodes. Viu o sorriso dela refletido nos olhos de jabuticaba dele. E não conseguiu prestar atenção ao que ele dizia. Ouvia o timbre da voz, um pouco mais grave do que no tempo do Janga. Uma voz que a embalasse ao colo.

Josué havia perdido muito do sotaque pernambucano em troca de uns esses e erres paulistas. “Ossos do ofício”, dizia ele. “Trabalhei muito em Construção Civil, prima. Nunca fiquei desempregado aqui em São Paulo. E aprendi que, enquanto não sabemos a língua da terra, melhor ficar calado. Eu via nos ônibus, nos trens, quando o camarada começava a falar arrastado, “anda logo, baiano, que a fila está grande”. Aí eu passei a imitar a fala dos companheiros das construções. Naquele tempo São Paulo não parava de crescer para cima. Ainda peguei casarões da Avenida Paulista sendo derrubados, uma judiação! E você, Emília? A última que soube tua, você tinha ido morar nos Estados Unidos para estudar em Harvard. Ah, minha prima, não sabe como fiquei orgulhoso de você!” “Oxente, Josué, como você soube? Lá ninguém tinha notícia tua. Você é tido como desaparecido.” “É uma longa história, Emília. Eu tenho de chegar na universidade, que minha aula é daqui a pouco, às 10 horas.”

Marcaram para se encontrar ao meio dia e meio no mesmo banco. O resto da manhã Emília conheceu o Mappin e o Viaduto do Chá. “Vá lá, Emília. Ali é um pedaço de nossa raça negra em São Paulo”.

 

 

Enquanto o ônibus descia a rua da Consolação, Josué vinha calado, a mão ainda esquecida na de Emília, como se pousada por distração em cima de um móvel. O olhar distante… Ao chegarem defronte à pousada, Josué puxou Emília para o outro lado da rua, aonde estava a padaria. Sentaram-se numa mesinha na calçada sem vizinho ao lado. Josué chamou o garçom, “Sílvio, essa é minha prima, Emília, conterrânea nossa e que está hospedada aqui na pousada vizinha. Emília, Sílvio é o melhor garçom de São Paulo. Sabe a bebida favorita de todos os fregueses. Vai tomar o que, Emília?” “Eu te acompanho, Josué. Cafezinho?” “Não Emília. Acho que estamos precisando quebrar um gelo de onze anos.” E, dirigindo-se ao garçom, “O de sempre, Sílvio. Para dois.”

Novo silêncio. Emília tomou a iniciativa e voltou à pergunta que ficara sem resposta no banco da praça Roosevelt. “Josué, como você soube dos Estados Unidos?”

O garçom chegava com dois chopes com colarinho e duas cachaças em copinhos. Brindaram. “Ao reencontro”. Josué tirou do bolso um maço de cigarros Continental sem filtro. Emília não aceitou. E disse, mais para provocar, “Só fumo maconha, Josué”. “Trouxe?”. “Não. Estou em abstinência desde a viagem à África.” “Viagem à África? Dessa eu não sabia”.

Emília aprendia com Josué a misturar goles de cerveja e um de cachaça, à maneira de Noel Rosa. A geladinha caia bem no calor da tarde. Alguns cigarros depois, Josué sabia do pedido da avó, da viagem à África, tudo ainda pulsando no coração de Emília. Quando parou de falar, tomando mais um gole da branquinha de Minas Gerais, Emília pensava, “Escutou-me como fosse eu uma aluna em seminário. Não fez nenhum comentário sobre a missão a ele conferida pelos Orixás. Ouviu como se esse Josué de minha narração não fosse ele.”

“E Harvard, Emília? A última carta que recebi de tia Ceiça dizia que você havia viajado para os Estados Unidos e lá ficaria por alguns anos, até virar doutora de Harvard” Ao riso de mofa de Emília, ele completou, “Foi essa mesmo a expressão usada pela nossa tia. Não disse qual curso você faria lá, nada.” “Ah, não, Josué. Antes de eu te contar de Boston, quero saber dessa tua correspondência com tia Ceiça. Até quando eu saí do Janga, já disse, você era tido como desaparecido.”

Muito chope, muito Continental sem filtro, uma pizza, uma urgência de falar, falar, numa tarde com o sol da Vila Madalena já batendo nos pés dos dois na calçada da padaria. Falar pelos onze anos distantes um do outro. Da viagem de Josué como ajudante do tio, que abandonara o ofício de pescador pelo de motorista de caminhão. “E você trabalhou até como Calunga, Josué? Como chegou a professor da USP? Essa tua história, como costumam dizer, dá um livro.” “E a tua, Emília? Veja o mote: uma futura doutora por Harvard, que abandona a fama e a glória, para obedecer a desígnios misteriosos que escapam ao nosso entendimento com as ferramentas da razão.”

“E na correspondência com a tia Ceiça, Josué, até onde você soube de mim?” “Sei que você se formou em Contabilidade no colégio das freiras, foi trabalhar em um escritório na avenida Guararapes, casou-se com um tal Luizinho, que numa festa de ciranda havia se encantado com a Oxum que te habita. Sei que com ele você teve um filho, e que esse marido, branquelo de merda, te abandonou com o filho pequeno. E que depois você deixou o menino com tia Maria e foi estudar em Boston. Estou certo?”

No quarto do pensionato, o dia seguinte amanhecia. Emília e Josué não se saciavam da palavra. Outros desejos, quase dormiam ao lado deles numa cama de solteiro. Emília soube de Dolores, a moça protegida da tia Ceiça, que veio com Josué e o tio na primeira viagem, hoje Filha de Santo num terreiro de Cotia; e que essa Dolores foi o esteio seguro, para Josué percorrer todos degraus da via sacra até chegar ao sacrossanto templo da Maria Antônia.

 

 

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