Emília

10. Encantador de serpentes

Josué estava ao lado de Emília, quando ela ligou de um telefone público para o número que havia copiado do quadro mural da Faculdade. Haviam tomado o café da manhã no balcão da padaria vizinha: suco de laranja, pão na chapa e café com leite. Atendeu uma voz com sotaque estrangeiro. Emília anotou o endereço para onde deveria levar um curriculum vitae em inglês, e esperar ser chamada para uma entrevista. “Não tenho a mínima chance, Josué. Imagina! O curriculum daqueles alunos da USP, dos professores… E preciso arrumar algum emprego, meu primo. Tenho um filho para sustentar. Não quero mais depender das cabeças de gado de meu pai, a moeda que até hoje me deu arrimo.” “Também não exagera, Emília. Você deu um duro danado naquele escritório de contabilidade. Ou não?”

No curriculum vitae, além do curso de Ciências Sociais, da experiência no escritório de contabilidade, da aceitação para cursar Direito em Harvard, Emília relatou, em poucas palavras, a cirurgia em Boston e a recomendação do médico para continuar sendo acompanhada pelo Doutor Zerbini em São Paulo. Tudo verdade. Meia verdade, pois não caberia nenhuma referência ao motivo real que a trouxera a São Paulo: encontrar Josué.

Foi uma das dez chamadas para entrevista. “O nome Harvard é tão poderoso”, pensava Emília, “que bastou ter pisado nos seus parques, para conseguir passar à frente de outros, que portavam muito mais títulos do que eu.” A única exigência que lhe fizeram, depois de classificada, foi trazer um documento assinado pelo Doutor Zerbini, atestando estar apta a exercer uma atividade profissional que implicava em muitas viagens.

Na entrevista, Emília fora percebendo que os dois gringos estavam mais interessados em sua vida do que nas informações acadêmicas. Uma intuição (ou teria sido um sopro de Oxum?), sugeriu-lhe continuar falando dela própria, vender o peixe conforme o gosto do freguês. Sem querer, escapuliu algum detalhe da viagem à África. Na hora, Emília se saiu com um “Valha-me Deus!”. Eles riram, perceberam que ela saíra do script, e insistiram, “go ahead”. E Emília pensou com seus botões, “perdida por cem, perdida por mil”. Disse tudo. Do pedido da avó transmitido pela tia Nenê; da aventura pelo Senegal até chegar a Cachéu, na Guiné Bissau, e lá encontrar o babalorixá Alabi; da missão de encontrar o primo em São Paulo; de como conseguiu chegar a ele pelos estudantes que conheceu no saguão da Maria Antônia, onde anotou o telefone do quadro mural; e finalmente, ali estava, pronta para o que o destino lhe reservasse. Percebera que os olhinhos azuis de um deles brilhavam à proporção em que ela falava com entusiasmo, pensando que acabara de perder um emprego, certamente um bom emprego, mas não perderia uma boa história, a sua história. Muitas vezes, a gente só se dá conta dela ao contar para outrem.

Não fora, portanto, a grana dos jardins de Harvard, mas a pobreza árida da África (e a capacidade de Emília de enfrentar desafios, de que ela mesma não se sabia), o que levou aqueles dois entrevistadores a aprovarem seu nome para ocupar o cargo. Mantiveram, contudo, a exigência do exame médico. Afinal, igualmente era verdade ser ela portadora da Tetralogia de Fallot no coração.


Josué também estava com Emília na semana seguinte, como fiador do aluguel de um sobradinho numa pequena rua próxima à feira da Vila Madalena. Era um imóvel velho, com pequeno quintal cimentado e ladeado de canteiros de azaléas.

A rua era silenciosa. Aos poucos, Emília ia chegando. Já gostava da cidade, especialmente daquele bairro. Ao primeiro sábado depois de estar morando no sobrado, comprou um carrinho de feira e saiu pela Mourato Coelho, rua acima, rua abaixo, numa alegria de manhã de sol. Tudo tão limpinho, tão arrumadinho! As barracas, quase todas com toldos novos. Não havia frutas ou legumes espalhados pelo chão em lonas improvisadas, como na feira do Velame. Ouviu com atenção o pregão dos vendedores, muitos, japoneses. No Velame de seu tempo, não havia um só japonês. Nem na feira, nem em lugar nenhum. Na banca das folhas, só de alface, Emília contou mais de três ou quatro variedades. Umas laranjas cravo grandes, cheias de vento, com o engraçado nome de mexericas. Umas frutas que Emília não conhecia. Os caquis, comprou a primeira vez achando que fossem tomates maduros. As alcachofras, colocou em um imenso vaso ao chegar em casa. “E alcachofra não é flor de enfeitar, Josué? É flor de comer?” Foi seguindo o cheiro de fritura até chegar aos pastéis. Pediu um de palmito. Pastel acompanhado de caldo de cana. No Velame, o que acompanhava o caldo de cana era pão doce.

Josué ia ficando. Não falava em Cotia. Talvez para preservar a ilha de felicidade, Emília nada perguntava. De meados de novembro a meados de dezembro daquele 1965, São Paulo era uma festa! E Josué sabia aonde acontecia a festa. A cada noite. A cada final de semana. Nas noitadas paulistanas, Josué parecia um encantador de serpentes.

Como cabia tanta vida em vinte e quatro horas? Era o que Emília se perguntava, quanto mais conhecia Josué. Ele foi trazendo, sem alarde, a cada semana, peças de roupa e livros, que iam ocupando o quarto de hóspedes. Pregou cabides na parede daquele quarto; improvisou uma estante baixinha com tábuas e tijolos. E foi chegando. Por derradeiro, trouxe um violão velho. No dia em que chegou com esse violão, era tarde da noite, Emília já dormia. Levantou-se assustada, “meu deus, Josué vai acordar os vizinhos!” Cantava, com seu vozeirão, “Fascinação”, embaixo da janela da sala. E fez questão de entrar em casa por essa mesma janela, na qual ele dera a última demão de tinta verde há três dias.


Em todas as ausências de dois, três dias, Emília nunca se perguntou nem perguntou a Josué de onde ele vinha, com quem dormira. Supunha ser com a mulher. Mas não tinha certeza. Para aplacar a ansiedade, principiou a escrever um diário.

Há menos de um mês, vivi a tórrida aventura brejeira com Pantélia. Josué não sabe desse africano e não tenciono dizer. É assunto meu, e a ninguém mais importa. Onde estará Pantélia nesse momento? Continuará bebendo? Terá arrumado outra mulher? E eu? Gostava daquele homem?

Sim. Gostei. Mas foi muito diferente de como gosto agora de Josué. Eu e Josué nos cabemos inteiros um no outro. As nossas conversas noite adentro, comentando uma peça do teatro de Arena… Diário é coisa íntima, que não será publicado. Aqui posso dizer o que não direi nunca a Josué. Pudesse a gente separar as partes do corpo humano… Pantélia ganha, Josué. Você é filho de pescador, tem um corpo perfeito, braços e peitos fortes e acolhedores. Mas teu pau não é lá grande coisa.

Já ouvi dizer que isso não tem nenhuma importância. E não tem mesmo. O que interessa é que permaneça rijo, que aguente firme, gozando, o gozo da mulher, no tempo dela. Bom, não vou negar. Embora o tamanho não conte, é bonito de se ver. Nada a ver com as esculturas clássicas dos deuses gregos. O corpo de um negro sem roupa é de uma beleza estonteante. E Pantélia, de brinde para meus olhos, ainda portava em volta da cintura, à altura do umbigo, uma tira fininha, gasta pelo tempo, que um dia deve ter sido branca. Ele não tirava nunca essa tira do corpo. À minha curiosidade, apenas sorriu e nada disse.

Contudo, se me fosse dado escolher, tipo um sorteio, não pensaria duas vezes. Josué tem o mesmo cheiro meu. Com ele, estou em casa. Não carecemos nem falar para saber um do outro. E faz tão pouco tempo que estamos juntos… Menos de duas semanas. Será que Josué vai abandonar a mulher e vem morar comigo?


Emília trouxera da África uma calça e uma camisa folgadas de madapolão, uma espécie de tecido grosso, de algodão cru. Um dia, com a janela do quarto aberta, ao ventinho da madrugada, Emília experimentou essa roupa para dormir. Ao acordarem, Josué pediu, “Você me empresta, Emília? Quero passar o resto do dia sentindo teu cheirinho.” “Pra onde você vai assim, Josué? Parecendo um pescador, com essa calça de pular cerca?”. Sem querer, Emília antecipava uma cena que presenciaria algumas horas depois.

Josué estava vestido com essa roupa quando saíram de casa para a estreia da peça Morte e Vida Severina, no teatro da PUC. Antes, iriam encontrar os atores numa cervejaria na rua Monte Alegre. Ele conhecia todo o elenco, formado por estudantes daquela universidade. Um dos alunos de Josué estudava Ciências Sociais de dia, na USP, e História à noite, na PUC. Por sugestão desse aluno, Josué aproximara-se do grupo quando discutiam em seminário “Geografia da Fome”, de Josué de Castro. Ficou conhecendo o diretor artístico da peça.

“O diretor é uma figura extraordinária, Emília. Para ele, o poema de João Cabral faz alusão a uma história que poderia ocorrer na África, na Ásia, em qualquer país da América Latina. Trata-se do dilema do homem perante a vida e a morte, qualquer homem, não necessariamente o retirante nordestino. Na concepção do espetáculo, esse dramaturgo imprimiu sua concepção filosófica aprendida com os frades dominicanos, mola mestra dos primórdios da Ação Popular: a centralidade do homem como sujeito da história.

“Você vai ver isso, Emília, em várias cenas do espetáculo. Por exemplo, quando Severino retirante avista a paisagem da cana-de-açúcar. O que ele vê ao fundo do palco? Os trinta e três atores balançando o corpo em sintonia com uma música dolente que imita o vento no canavial, eles próprios representando o canavial. Tive alguns diálogos com esse diretor artístico muito enriquecedores para mim. Ainda sem compreender bem toda a concepção que estava por trás da encenação, argumentei que a história narrada por João Cabral só se sustentava no espaço físico onde fora ambientada, o percurso do rio Capibaribe. Hoje dou minha mão à palmatória. A obra de arte, afinal, é isso mesmo: será sempre reescrita por quem aprecia, quem lê, quem assiste.”

“Pode ser legal conhecer esse grupo, Josué. Mas, pensa bem. Lá, vou me sentir peixe fora d’água.” “Não, querida. Lá você será apenas a minha mulher.”

Emília tomou um susto. Sua mulher? Para ela, a mulher de Josué era Dolores, para quem ele voltava em dias incertos, trazendo de lá peças de roupa e livros. Ouviu calada. Enquanto tomava banho e depois escolhia à dedo a roupa com a qual o acompanharia, ficou se deliciando com a ideia de ter um marido.

“Marido é coisa boa”, pensava. “O meu não foi. Luizinho era um horror! Mas eu observava como Maria se referia a José Carlos, quando o apresentava a estranhos, ‘esse é meu marido’. Enchia a boca.” Emília se lembrou das histórias de trancoso de Carmem, ela sentadinha no chão da cozinha da casa do Velame. Naquela noite, iria brincar de marido e mulher.

Estavam ainda na cervejaria, quando passa apressado, segurando um guarda-chuva numa mão e uma pesada pasta na outra, o próprio diretor artístico. Josué apontou-o para Emília. Um homem comum, em torno dos cinquenta anos, nem gordo nem magro, olhos castanho escuros, cabelos pretos já com muitos fios prateados e bem penteados para trás, barba aparada, e um sorriso aberto de bons amigos. Um dos estudantes convidou-o para um chope. Aceitou. Sentado em frente a Josué e Emília, olhou primeiro para ela e depois para Josué. Aproveitou que o ambiente era descontraído e perguntou, com cara de quem quer apenas puxar conversa, “Rapaz, você não faz parte do elenco, faz?” “Não, senhor diretor – os outros riram da ironia – sou apenas o professor de antropologia do Márcio, no curso de Ciências Sociais da Maria Antônia. Estou aqui na qualidade de curioso.” Nessa hora, Josué se levantou de um estremo da mesa e, estirando o braço na direção do diretor, como se ambos estivessem se vendo pela primeira vez. “Josué, seu criado.”

O diretor mirou Josué e quis saber de onde ele trazia o sotaque. Emília viu o sorriso estampado no rosto do “marido”, iluminando todo o seu semblante. “Sou natural de Pernambuco. Nasci numa praia deserta chamada Janga. Desde menino trabalhei em roçado, trepei em muito coqueiro alto para tirar coco, e acompanhei meu pai em pescarias.” “E essa roupa, pescador?” Os outros riram novamente. Nesse momento, Josué sentiu-se na pele de seu pai. Ser chamado de pescador lhe trazia o Janga de volta. Em casa, à noite, falaria horas a fio sobre essa paternidade recuperada para ele ali, por um homem que mal o conhecia.

“Quer mesmo que eu diga? É de minha mulher, Emília, essa morena bonita que acaba de chegar da Guiné Bissau.” Emília percebeu nessa hora que Josué ficara com ciúmes do olhar cobiçoso do diretor na direção dela, e aproveitara para botar as cartas na mesa. “De lá ela trouxe essa roupa, que aqui usa às vezes como pijama.” “Posso aproveitar esse pijama de tua mulher como modelo? Não estou nada satisfeito com o nosso figurino atual. Esse pijama de Emília casa como luva para expressar a ideia de homem universal que quero transmitir na peça, mais do que o figurino atual, ainda lembrando um retirante nordestino. Aliás, esse que você defendeu um dia como o verdadeiro personagem do poeta. Veja que ironia, pescador. Justamente você, com esse pijama africano de tua mulher, acaba de me dar a brilhante ideia de ser esse o nosso figurino.” E, dirigindo-se ao cenografista, “O que você acha? Daria para repensar o figurino já para as próximas apresentações?”

Josué ia ficando cada vez mais tempo no sobradinho. Frequentavam cinemas, teatros, exposições, bares. O entorno da Maria Antônia se acendia todas as noites. E eles estavam sempre juntos. Viraram uma entidade: o casal nordestino. Ser nordestino em São Paulo pode ter sentidos opostos. Josué vivera o primeiro, como peão de obra: o baiano, que calava a boca na rua para não ser identificado pelo sotaque; e que tentou aprender o novo idioma da terra com a companheirada da construção civil, cuidar de desaprender o tempo subjuntivo dos verbos. Professor da USP, tratou de recuperar – e Emília estava ali a seu lado reforçando isso – o português mais ibérico, que, ainda diferente, era apreciado, junto com a cor da pele, os cabelos, a roupa descontraída. O intelectual e o artista paulistanos engajados em uma grande frente a favor de mudanças sociais, tinham em Josué um símbolo do Nordeste brasileiro. Ser dele amigo, era sinal de não ter preconceito. E ele sabia tirar bom partido disso.

A festa durou até o sábado em que Josué sumiu de casa e deixou Emília desesperada.

Beiço de negro. Os beiços de Marcus Roberts, de óculos escuros, tocando ao piano Rapsódia in Blue de Gershwin. Os beiços de Pantélia. Os beiços de Pantélia nos meus grandes e pequenos lábios… Girassóis rebeldes ao sol; as pedras, as estrelas, uma cama quase beijando o telhado e um amor sem governo. Ah, Pantélia! Foste o rio de águas mais profundas onde mergulhei.

 E agora, Josué? Você dorme em outros braços. Minha única ventura é fazer de conta que estou te escrevendo nesse diário. Quem sabe, você o lerá um dia? Mesmo que eu já tenha morrido, saberás do meu desespero desta noite, caçando no meu corpo um passado efêmero com outro homem pelo qual jamais te trocaria.

São quase quatro horas da madrugada. E se você não gostar mais de mim, Josué? E se tudo foi apenas um sonho, desses que a gente acorda e ainda guarda naqueles segundos do acordar uma doce sensação, que logo se esvai com a luz do dia? Meu amor, tenho medo. Tenho muito medo. Você entrou de novo na minha vida, ou talvez dela nunca tenha saído. Reencontrar você alumiou um caminho ladeado de velames cheirosos.

Então vou tomar banho, tomar o café da manhã, qualquer rotina da vida, e lá está você. E dói não ter você. Como se houvéssemos vivido juntos a vida toda. Você continua me povoando. Acordo e tua lembrança é a primeira do dia, que faz o sol brilhar mais, faz a música mais bonita, faz a ameixa roxa doce e carnuda do café da manhã parecer jambo do Pará. Nunca te disse isso e digo agora: eu te amo. Te desejo na cama, na cozinha, na rua, debaixo do sol, debaixo da chuva, na sombra do cajueiro, no correr das águas da cachoeira, no banho de mar, no banho de rio, no céu, no meio dos infernos com os seiscentos milheiros de diabos.

Um dia ainda escrevo algo tão bonito pra você, como o poema de Cora Coralina que você leu para mim numa madrugada. É só você continuar ao meu lado, dentro de mim, me embalando como filha e me possuindo como mulher de um jeito, que ninguém fez até agora e nem fará nunca. Só a tua claridade, sol das três horas da tarde na praia do Janga, para fazer desabrochar em mim uma paixão que quer a beleza, a arte, a natureza, o universo.

Na tristeza de tua ausência, sei que nas quatro semanas em que invadiste meu sobradinho, vivemos a felicidade das brincadeiras dos meninos pequenos. Nosso sentimento de entrega foi tão intenso, que já não sabíamos onde começava o meu corpo e terminava o teu. Se estávamos juntos, e estávamos quase todo o tempo juntos, nossos desejos se misturavam e não careciam sequer da palavra para tomar decisões comezinhas da vida. Precisávamos da palavra, sim, para contar uma história que fora interrompida por onze anos e agora começava a ser recontada com as mesmas tintas coloridas. Porém, às vezes, também chorávamos pelo tempo que ficáramos separados, pela Maria Emília que você não plantou no meu útero, pelos ombros um do outro para acalentar os sofrimentos da vida.

Sonho em criar poderes de ficar invisível e voar até junto de ti em Cotia. Me deitar a teu lado para alimentar-te com leite doce, mel das flores de jasmim. E te tirar da escuridão da noite para o sol do dia despontando em nossas praias desertas.

Voltarás segunda feira, Josué? Em cada ausência tua a dor é mais funda. Hoje, porém, um mal presságio ronda minha insônia. Pressinto que não retornarás segunda feira, nem terça, nem quarta. Nem sei se voltarás. E se tu morreres, Josué? Não, isso não. Morrerei antes de ti, nos teus braços. Não sei até quando irá a sobrevida prevista pelo cirurgião de Boston, quando supunha que eu, em coma, não o estivesse escutando. Esses médicos não sabem mesmo é de nada. Sou mais os chás e banhos de ervas de minha tia cabimbozeira.

Sabe, Josué? Não consigo te ver nos braços de Dolores. Não depois de nosso reencontro aqui em São Paulo.

O dia já amanhecia quando Emília parou de escrever, exausta, suando, com a janela do quarto fechada. Abriu-a de par em par e deixou entrar o vento da madrugada. Fazia silêncio. Foi até o quintal e colheu azaleias para colocar em um vaso em cima da mesa. Preparou um café preto e tomou com torradas.

A ferida continuava sangrando. Olhou o vaso de azaleias brancas e cor de rosa. Sem pensar muito (quem pensa não casa), pegou o telefone e ligou para um número que estava escrito em um pedacinho de papel marcando o poema de Cora Coralina no livro. Arriscou (quem não arrisca, não petisca). “Alô? Josué?” Ouviu do outro lado da linha uma voz fraca, falando baixo, acuada. Sem a arrogância do encantador de serpentes das noites paulistanas. Permaneceu calado depois que ela disse, “É Emília”. Quarenta segundos de silêncio é muito, ao telefone. Teria acabado tudo? As únicas palavras que Emília disse, antes de desligar o aparelho sem se despedir, “Sai dessa quaresma, Josué. Vem pro carnaval”.

Na semana seguinte, encontrou um bilhete embaixo da porta, “Aonde é o carnaval?”

Josué aparecia e sumia da vida de Emília, ora com pequenos intervalos de tempo, ora grandes. Dizia, brincando, “Você, Emília, é o meu Lítio”. Emília, castanhola plantada em terreno firme. Josué, coqueiro de folhas que voavam aos ventos fortes da vida. E assim se passaram mais de trinta anos… Até o dia em que resolveram cumprir os desígnios dos Orixás e partir juntos para buscar o Assentamento de Oxum na praia do Janga.

(continua no próximo domingo)

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