11. Um quadro de Braque
Emília comemorou a passagem do milênio no Pina. Bem acomodada num voo direto da Varig, pensava a que vinha nessa viagem. Aniversário de trinta e oito anos de José, em 27 de dezembro. Naquele ano, ele pedira que a mãe viesse. Esse pedido do filho vinha martelando na cabeça de Emília. (A propósito, qual a última vez que os leitores dessa novela ouviram falar dele? Lembram? Estava no colo da avó, com três anos incompletos, no dia em que Emília chegara de volta de uma semana com Pantélia no Brejo de Gravatá. No dia em que precisou desembrulhar três presentes para ter o filho de volta ao colo).
Até a aeromoça passar servindo o almoço, Emília deu um cochilo. Depois de almoçar, colocou a bandeja com os pratos usados no apoio da poltrona do lado, que estava vazia, e aproveitou para fazer o que ela mais gostava em avião: escrever.
Quantos vezes nos encontramos, desde aquele dia, em outubro de 1965? Essa é a terceira. Estranha maneira de ser mãe e filho. Contudo, essa estranheza não me perturba. Sempre achei que José seria mais bem criado pela avó. E até Marcelino, aquele turrão, aliado das duas filhas para me torturar no purgatório daquele junho de 1954 no Pina, lembram? Com meu filho, parecia que o neto era dele. Vovô Celinho…As crianças detêm esse condão de apagar mágoas e tristezas passadas.
Não, não vou me gabar de ser uma mãe sem culpa. Será que faz parte da natureza de ser mãe? Minha culpa é de não ter amamentado José. Tanto que eu queria! Quando voltei para casa com um filho nos braços e não a desejada filha, minha mãe estava a postos para os tempos do resguardo.
“Deixa o bebê sugar”, dizia. A mesma ladainha da enfermeira na maternidade, “Por enquanto é o colostro. Mas vai chegar leite”. Não chegou. Ou eu não tive paciência. Luizinho parecia um ator coadjuvante de filme de chanchada, atrapalhado, arranjando mais motivos ainda para estar ausente de casa. Já dera o desejado neto para o pai dele. O resto era comigo. Até hoje não sei por que me casei com aquele homem, a quem nunca amei. Talvez porque era chegada a hora de fazer pelo menos esse desejo de minha avó, continuar a corrente das Emílias e Marias. Calhou de ser Luizinho quem apareceu na minha vida naquele momento. Depois ficaria claro para mim: também ele nunca me amou. Procurava apenas uma mulher para lhe dar descendência.
Desse Luizinho nunca mais soube. Desde o dia em que descobri seu pequeno studio, numa travessa da avenida Conde da Boa Vista, para onde ele ia, em dias incertos, vestir-se de mulher. Como é possível, passado tanto tempo, ainda doer a imagem do camarim, das roupas colombinas espalhadas pelo chão? Liguei para Maria, a amiga das grandes alegrias, das maiores tristezas. Ela veio me encontrar no Parque Treze de Maio. José Carlos iria fazer um PHD no MIT e ela se preparava para fazer a seleção para o curso de Direito de Harvard. Era um princípio de tarde e o parque, lugar de passagem dos que retornavam ao trabalho, dos estudantes chegando para as aulas, aquele calor recifense do sol quase a pino. Um flamboyan florido nos dava sombra benfazeja. “Para fazer a seleção de Harvard, Maria, carece ser formada em Direito?” “Não, Emília, qualquer curso superior”. Quando retornei para casa no final da tarde, deixei as lágrimas no chão batido do Parque Treze de Maio, e trouxe comigo esperanças novas no coração.
Desembarcando no aeroporto dos Guararapes, Emília sabia que ninguém estaria à sua espera. Sempre gostou de chegar sozinha ao Recife. Antes de sentir a primeira baforada quente em contraste com o ar condicionado, como era bom ver do alto a cidade cortada pelos rios! A Recife que tanto amava!
Já no taxi a caminho do apartamento da mãe (não sem antes recomendar ao motorista, pela beira mar, por favor), pensava mais uma vez, por que, naquele ano, o filho fizera questão da presença dela numa comemoração, à qual sempre estivera ausente? Os parabéns até então haviam sido um telefonema e um presente enviado pelo correio.
A festa foi na antiga casa de Maria Emília. A não ser pelo mesmo endereço, quase nada mais restava daquela casa na qual Emília fora morar em 1954, com treze anos de idade. O próprio Pina fora praticamente incorporado à vizinha Boa Viagem, através dos prédios de luxo da avenida. A parte de trás dessa avenida conservara, contudo, aos trancos e barrancos, vestígios do antigo bairro.
A casa de Maria Emília e Marcelino ficou irreconhecível à primeira vista, por causa de um bonito jardim de flores tropicais. Por dentro, não sobrou parede da antiga casa. Porém, o velho quintal, este permaneceu com as mesmas Mangueiras, Cajueiros, Coqueiros e Castanholas. A casa era agora a morada e o atelier de José. Os avós, ambos com oitenta anos, moravam em um belo e confortável apartamento à beira mar, próximo à velha casa.
Todos os artistas da roda de José estavam no aniversário dele. E deram o tom da festa: músicas de jazz e caribenhas, comandadas por um DJ; comidas, bebidas e outros prazeres da fantasia à fartura. Afora essa tribo, a família: os avós, a um canto da sala, qual fossem mobília velha que tivesse sobrado da antiga casa. De vez em quando alguém se achegava a eles para trazer um petisco, dizer uma palavrinha carinhosa…
Emília foi à festa vestida de vermelho. Assim se apresentou a mãe de José no aniversário do filho: uma mulata de cabelos grisalhos bem curtinhos, brincos enormes nas orelhas, e discreta maquiagem, realçada apenas pelo batom vermelho. Mesmo que quisesse, e queria, ficar igual aos avós de José, uma peça do mobiliário a quem os jovens se dirigem vez por outra para dar uma esmola de atenção, seu vestido e seu batom não permitiram.
Ao chegar, deixou Maria Emília e Marcelino sentados na sala e dirigiu-se direto para o quintal. Queria sentir o cheiro dos seus treze anos: cheiro de manga e de caju maduros no pé. Foi a primeira a ocupar uma das mesas, embaixo de um pé de Castanhola. Permaneceu embaixo dessa árvore frondosa que ela mesma, junto com Maria Emília, haviam plantado numa manhã invernosa. Era uma plantinha de nada. Embaixo dessa Amendoeira, que os da terra também gostam de chamar Coração de Negro, havia agora uma escultura em bronze feita por José: a figura de uma mulher segurando a mão de um menino pequeno, ambos rindo um para o outro, com os pés afundados na areia.
O céu estava limpo, sem lua. As árvores do quintal, iluminadas de baixo para cima, lembravam um parque europeu. As primeiras pessoas que se sentaram à mesa onde estava Emília, vinham de um balcão, cada uma segurando um copo na mão. Depois de cumprimentarem cerimoniosamente aquela desconhecida senhora, voltaram à prosa entre eles. Emília estava atenta, mas sem participar. Um, percebendo seu interesse, quis ser gentil e lhe perguntou, Bebe? Sim. Bebia.
O carro chefe da noite foram as caipirinhas. Um balcão de bebidas havia sido improvisado num telheiro entre a cozinha e o quintal, no qual muitas frutas estavam arrumadas em belas naturezas mortas. Lá, os dois garçons, no auge da festa, já não davam conta em servir as caipirinhas e caipiroscas preparadas na hora, e os pedidos de outras bebidas, que eram servidas nas mesas do quintal.
Emília não se fez de casa. Quem sabe, fosse aquela a casa de uma filha? Da filha que não teve? Que se chamaria Maria Emília? E daria sequência à corrente das Emílias e das Marias? Aquele pensamento lhe trouxe uma tristeza esquecida.
Numa festa, há pessoas que não param quietas. Trocam de lugar, de rodas de conversa, como um sedento que quer beber de tudo um pouco. Há outras, que se acomodam em um grupinho e com ele passam a noite. Emília se acomodara numa das cadeiras embaixo da amendoeira, um lugar privilegiado, de onde podia assistir a um espetáculo de muitos atores, que se revezaram, ora sentados na sua mesa, ora circulando pelas outras. Até rolar um fumo. Aí entrou na roda, na conversa, e na dança, na sala dentro de casa.
O DJ atacava de blues da pesada, quase rock. Com o copo de caipirosca de caju na mão, entrou no salão de dança sozinha. Nessa hora, não viu quem mais dançava. Seu corpo cabia nele próprio em cada movimento. Xangô, fogo encarnado, vinha encontrar Oxum. Já não era a mãe de José, nem a filha de Maria Emília – com essa, trocou um rasgo de olhar numa dos volteios do corpo, deixando com ela o copo de bebida. José, Emília não lembra de tê-lo visto enquanto dançava. Talvez estivesse no quintal.
Às tantas, os jovens fizeram uma roda em torno dela, como para apreciar sua dança. Nessa hora, Emília viu José passando em direção à cozinha, seus amigos querendo que ele viesse se juntar a eles, sem saber ser aquela mulher a mãe do dono da casa. Emília viu nele um menininho com medo da mãe. Teve ímpetos de parar de dançar, mas era tarde. Sua deusa, poderosa e sedutora, já havia tomado conta de seu corpo.
Enquanto dançava, rolou um filme na cabeça de Emília: o primeiro e único transe na festa de Oxum, no terreiro da avó; Josué, com a guia vermelha trespassando seu corpo de pescador, atravessando o coração, batendo na cintura, sua dança rápida aos agitados tambores tocados para seu santo. Emília temeu pela sua sanidade. Estava na casa do filho. Melhor voltar a ser móvel velho.
Paciência. José teria que pagar análise de divã para encarar aquela mãe, que era a dele. Uma mulher do mundo. Os pais verdadeiros de José eram aqueles velhinhos sentados num canto da sala, que o teriam colocado no colo, se pudessem, na hora de seu profundo embaraço quando foi convidado a entrar na dança em torno de uma Oxum.
Parecia até que o DJ entrara em contato com Emília em espírito, quando mudou repentinamente a agitação do blues de Muddy Waters, para um dolente trompete de Wynton Marsallis com o piano de Marcus Roberts. Emília se sentiu então conduzida ao Peji, as Akedes fossem acalmando seu corpo.
Pediu ao garçom uma jarrinha de água de coco e voltou a seu lugar, à mesa junto da escultura onde se via representada na primeira memória do filho: ela brincando com ele nas areias do Pina, a mesma brincadeira aprendida com Josué nas areias do Janga. Recordou-se dos domingos em que ia com José tomar banho de mar na praia do Pina, a maré cheia, os dois rindo muito na aposta de quem aguentaria mais tempo sem cair, a cada vaga do mar que ia enterrando os pés dos dois na areia molhada.
Após a euforia da dança, sentada de volta ao seu ponto de observação da festa, sorvendo em curtos goles a água de coco, como quem toma glicose na veia, Emília teve um pressentimento: não chegaria aos sessenta anos. Já estava no lucro. Lembrou, não da fisionomia, pois estava de olhos fechados, mas do timbre de voz fanhoso e desagradável do cirurgião de Boston, arrodeado de estudantes residentes em cardiologia. Algo lhe dizia que aquela era a sua despedida da mãe e do filho.
José veio até a mesa onde estava Emília. Ela reparou como se parecia com Luizinho. Em pé junto de Emília, passou a mão nos cabelos da mãe, como fosse pai, e não filho. Puxou a cabeça da mãe para junto de si. Emília passou o braço em torno da cintura dele. José ficara um moço bonito, elegante, mais alto do que o pai, de pele morena clara queimada de sol, barbas e cabelos pretos. Uma mecha dos cabelos caía na testa e ele tirava com a mão, com o mesmo gesto paterno (com quem ele só convivera, assim mesmo com muita distância, nos primeiros oito meses de vida), sacudindo com uma certa graça a cabeça para trás.
Quando os garçons já recolhiam os restos da festa, a moça lavava a louça e arrumava a cozinha, ficaram, à mesa da sala, a família. José foi providenciar um chá inglês, um dos presentes que a mãe lhe trouxera. Marcelino cochilava na cadeira. E Maria Emília havia se levantado para ajudar José na cozinha. Emília observava tudo. Estes são os pais de José, pensava. Vejam a cena: o filho quer ser gentil com a “visita” que lhe presenteou o chá; a mãe logo acorre para ajuda-lo; e o pai cochila.
Emília não se mexeu do lugar onde estava. Na parede da frente, José havia colocado um único quadro, uma reprodução. A princípio, ela não entendeu o lugar de destaque para uma simples reprodução, na casa de um pintor com tantas obras suas e de outros bons artistas. Aquela reprodução pertencera a Luizinho. Já existia no apartamento dele quando se casaram e foram morar lá. Como teria vindo parar aqui na casa de José? Quando Emília desocupou o apartamento para alugar, antes da viagem aos Estados Unidos, que fim ela teria dado a esse quadro? De certeza, sabia que não tinha ido para a casa de Maria Emília no Pina, junto com o berço, o carrinho e os brinquedos do filho.
O mais fácil seria perguntar a José, ele bem ali na frente, servindo uma xícara de chá. Por que não perguntou? “Não sei. Estranho. Como se, perguntando, estivesse devassando algum segredo.”
José afastou-se de novo com a avó, dessa vez para mostrar um armário do seu atelier, do qual estava querendo se desfazer, para colocar no lugar um gaveteiro de telas. Marcelino acordara apenas para tomar o chá e voltara a cochilar sentado, cabeceando. Maria Emília havia lhe oferecido para se deitar na cama de José, ou mesmo no sofá, mas ele respondera que não estava com sono e não queria dormir.
Emília gostou de ficar de novo sozinha mirando a reprodução de Braque. “Aonde ficava esse quadro no apartamento de Luizinho… Um apartamento onde na verdade nunca me senti em casa?” Foi passando na memória aquele apartamento, de espaço em espaço, até localizar a reprodução na sala, também em lugar de destaque, na parede em cima do guarda-louça. Com a câmera que não chegou a usar durante toda a festa, tirou a única foto da noite: queria ficar com as cores daquele quadro guardadas, como a única lembrança de um casamento fracassado.
Esse diário está recheado de cartas que nunca foram enviadas. Hoje escrevo mais uma. Querido José. Não conhecia a casa depois que passou a ser tua. Ficou linda, meu filho! Vocês, a família, devem ter estranhado meu comportamento. O certo, sei disso, teria sido eu ter ficado sentada ao lado de minha mãe e Marcelino, recebendo os cumprimentos de quem chegava. Mas não. Enfiei-me quintal a fora e não saí daquela cadeira a não ser para dançar. Isso lá é comportamento de uma mãe? É estranho mesmo, meu filho. Mas essa é a tua mãe.
Agora, que a festa acabou e dela sobram as crônicas, vou te passar a minha. Na noite de teu aniversário, o que mais me tocou foi a reprodução de Braque na tua sala. Só fui descobrir no fim da festa, quando todos já haviam ido embora e ficou a família em torno da mesa tomando um chá. Foi somente nessa hora que meus olhos bateram naquele quadro, e me levaram a reminiscências. Talvez eu tenha ido à tua casa mais para o passado do que para o futuro milênio, que seria comemorado em grande estilo dali a alguns dias. Foi só botar os pés dentro da casa, e saí, quase correndo, direto para o quintal. E sabe por que, meu filho? Ali eu poderia ainda abraçar as minhas velhas árvores. Ah, José! Você não pode imaginar a minha alegria em ver teu trabalho mais premiado, a escultura da mãe com o filho, plantada embaixo de minha castanhola.
Sentada na confortável cadeira embaixo daquela árvore, poderia ter ficado a festa inteira igual aos teus verdadeiros pais, Marcelino e Maria Emília. O problema foi que misturei álcool com maconha. Aí, meu filho, aí ninguém me segura, até a dança aplacar todos os meus medos. O garoto que comandava a música pode nunca ter ido a uma festa de Xangô, mas sabe de tambores. O santo dele conversou com o meu, e combinaram mudar o ritmo da música na hora certa.
Aquele quintal era meu refúgio de chorar sozinha, sentindo um aperto no coração… uma dor que doía mais do que todas as dores do coração de verdade. Era uma dor no coração de minha alma de treze anos.
Para mim, a casa era aquele quintal, as velhas árvores, que naquele dia me receberam sorridentes, iluminadas. Até a hora do chá na mesa da sala, não sabia ainda que ali estava reservada para mim a maior surpresa da tua casa, o quadro de Braque. Daí por diante, distanciei-me de tudo o mais que aconteceu. Dos cochilos de Marcelino. Da cumplicidade de mãe e filho entre você e Maria Emília.
Esse quadro foi a única lembrança que ficou do teu pai. Quando nos separamos, você tinha oito meses. Mas, com essa natureza morta, você conviveu até eu me desfazer do quadro, quando aluguei a casa, deixei você com Maria Emília e viajei aos Estados Unidos. Você tinha então dois anos e sete meses.
Esse quadro ficava à tua vista de bebê, quando passávamos pela sala, você no meu colo. Talvez até tenhas mirado ele de perto, num certo dia em que me demorei acertando tarefas da casa com a empregada, você sentadinho no meu braço, teu rostinho olhando diretamente para o quadro, tua cabecinha tentando se equilibrar. Nesse dia, lembro que choraste sem motivo, quando de lá me afastei para te trocar no quarto. Terá sido porque tirei teus olhos das cores de Braque?
Mirando o quadro no dia de tua festa de trinta e oito anos, te vi bebê e te segurava no colo. E foi tão bom te segurar no colo, meu filho! Talvez seja por isso que as avós gostam tanto de ser avós.
Sou capaz de jurar: o azul forte foi a primeira cor que chegou à tua retina. Tu, meu filho, bebê, já atento às cores que irias explorar vida a fora. Ao tempo em que engatinhavas, perdeste a visão do azul anil de Braque. Foi o tempo em que caçavas meticulosamente pequenos insetos entre as tábuas do assoalho.
Tinhas pouco menos, pouco mais de um ano, quando deste os primeiros passos. Naquele dia, saindo do banheiro para teu quarto, você enroladinho na toalha, quiseste descer de meu colo. O dia estava quente, era verão. Coloquei você em pezinho, nu, segurado na borda da mesa de centro. A pouca distância, baixei-me e passei a te chamar, incentivando-te a caminhar sozinho até onde eu estava. Tu me viste. Olhaste, contudo, em outra direção, onde eu havia colocado o quadro de Braque no chão, escorado no guarda-louça, enquanto não o colocava de volta na parede com um prego mais resistente. Foi nessa direção que você deu os primeiros passos, José.
Nesses passos trôpegos, terás te encantado com as outras cores? Das uvas azuis e dos pêssegos se esparramando pela mesa? O cinza, o marrom, o branco muito branco da bandeja e do cálice. Terá nascido naquele instante, meu filho, a tua centelha criativa?
Tua avó sempre recebeu de mim a recomendação de nunca economizar dinheiro para te comprar qualquer artigo das melhores papelarias. Quando nossa correspondência por correio já era de amor, eu trazia de minhas viagens tudo que me encomendavas das papelarias especializadas de Nova York, de Paris, de Florença… Dei muito lucro aos correios de entregas internacionais.
Morrerei antes de ti, meu filho, como morrem as mães abençoadas. Herdaste de tua mãe a coragem. Contudo, ainda não alcançaste idade para usar essa coragem em favor de tua liberdade. Esse sentimento de liberdade a gente vai apurando quanto mais fica velho. Se um dia tiveres filhos, meus netos, serão criados em uma família diferente da que conhecemos e nos aferramos a ela, porque a sociedade é assim mesmo, meu filho, mais conservadora do que as pessoas, e se apega ao conhecido por medo do desconhecido. Mas tu, meu filho, és corajoso como tua mãe. Criarás teu filho, meu neto, que não conhecerei, com a liberdade que é inerente ao ser humano. Com a tua liberdade. Numa família única, como única é cada família no mundo.