12. Esse rio é a primeira porteira de casa.
Emília se dava conta que há onze anos Josué sumira de vez de sua vida. Para não sofrer, acostumara-se a viver como se ele não existisse. Mas nunca o esqueceu – por mais aventuras amorosas que tivesse tido na vida. E teve. Quando a gente sente muita saudade de uma pessoa, dessa saudade que dói, o que a gente faz? Procura estar perto de alguém que nos lembre essa pessoa.
Sílvio continuava garçom na mesma padaria. Desde que viera morar em São Paulo, em 1965, Emília criara vínculos com esse garçom que ultrapassavam o ambiente da padaria. A mulher dele, Mariazinha, era a fiel faxineira de Emília todos os sábados, o dia da feira. Além da limpeza da casa e das roupas, arrumava com perfeição folhas, legumes, frutas e peixes nas bandejas e na geladeira.
Há mais de um ano Emília não via a cara de Sílvio. Era um princípio de maio de céu muito claro – o outono paulistano. Saíra mais cedo do escritório. Pelo meio da tarde, chegou à padaria. A mesa da calçada onde costumavam sentar ela e Josué estava desocupada. Nem careceu Sílvio entabular diplomacia, como de outras vezes, para cedê-la a Emília. Naquele ano de 2001, aos 70 anos, cabelos e bigodes brancos em uma cara que parecia a mesma, porque o mesmo era o sorriso aberto com que atendia à freguesia, Sílvio desfrutava de privilégios de antiguidade com os patrões da padaria.
Quando viu Emília chegando, já conhecia aquela tristeza estampada no rosto dela. E, mesmo constrangido, mas sabendo da cumplicidade dos colegas, aceitou o convite dela para sentar-se à mesa. Tirou o avental, o pano do braço, e se sentou. Emília era para Sílvio quase como uma pessoa de sua família, que acompanhava com palavras de estímulo, ou até mais que isso, cada filho no colégio, o casamento da filha, depois os netos… Para ele, “Dona Emília é uma pessoa ‘sem bondade’, que trata igual ricos e pobres. É do mesmo time de Josué.”
Enquanto Sílvio bebia água mineral com gás e uma rodela de limão, Emília entrou de sola na mistura Noel Rosa – cerveja e cachaça mineira. E ainda pediu um maço de Continental sem filtro, que detestava, e do qual fumaria apenas um cigarro, em memória do “falecido”. Compartilhou o réquiem com esse amigo velho. E Sílvio lhe explicou que já não havia cigarros sem filtro, e assim mesmo ela quis, e lembrou que, na última vez em que estivera nessa mesma mesa com Josué, ele havia cortado o filtro do cigarro para fumar como antigamente, o que ela também fez agora. Foi nessa mesa da padaria que Sílvio soube que dali a poucas semanas Emília completaria sessenta anos. Soube do sonho que ela tivera na noite anterior, o mesmo de sua tia Nenê a trinta em seis anos passados; soube que há onze anos Josué sumira de vez da vida dela; e que agora ela resolvera ir sozinha buscar o assentamento de Oxum no Janga, no terreiro da avó. Quando as outras mesas começaram a ter freguês, Sílvio levantou-se, deixou Emília sozinha, e encomendou ao companheiro do balcão uma tortinha de morango e uma garrafa de água mineral. Discretamente, quase cochichando, enquanto lhe servia a sobremesa de um almoço que não houve, “Come tudo, cumade. A senhora passou da medida. Carece de glicose e de água antes de voltar pra casa”.
Mal abriu a porta de casa, Emília viu o bilhete no chão: “aonde é o carnaval?”
Josué só chegou na madrugada do outro dia. Com pão quentinho da padaria numa mão, e na outra uma mala grande. Deixou Emília segurando a porta, com cara de besta, e, como se nunca tivesse ficado um dia ausente daquela casa, foi direto à mesa, na qual colocou o saco de pão e deixou a mala no quarto de Emília. Veio então na direção dela, sorrindo apenas com os olhos de jabuticaba, quase cerimonioso. E carregou-a nos braços, como fazem os noivos ao entrarem no quarto de hotel no dia do casamento.
“Te amo, Emília. Você é a mulher da minha vida. Para sempre.” Emília não fez declaração de amor. Disse apenas, “Vamos nos preparar para ir buscar o Assentamento de Oxum no Janga e trazer para São Paulo. Essa é a missão que nossa avó nos confiou.”
Josué acabara de se aposentar. Como funcionário público, o salário sofrera até um pequeno acréscimo, de quinquênios acumulados. Já Emília, se aposentada, receberia a ninharia do INSS. Porém, de seu curto período morando num Bad & Breakfast de Brookline, na região metropolitana de Boston, aprendera duas lições para a vida: nunca mais teria empregada doméstica “brazilian style”, como na casa dos pais adotivos no Velame; e acumularia dinheiro para a velhice. A dificuldade dela não foi conseguir a melhor negociação de demissão, mas sim convencer os diretores de que realmente a decisão era irrevogável. Não se conformavam em perder alguém que, até então, e desde o começo, estivera junto com eles dois nas decisões estratégicas, à frente das negociações mais difíceis, sem nunca ter perdido uma sequer.
Os preparativos para a viagem demandaram mais tempo do que imaginavam os dois pombinhos. Antes de tudo, careciam de um carro potente para enfrentar as estradas, logo saíssem de São Paulo para as rodovias brasileiras. Na compra da caminhonete, Josué fez uma economia desnecessária para o rico dinheirinho de dona baratinha.
***
– Por que, Emília, ficamos afastados esse tempo todo? Onze anos é nossa maldição? Você se lembra? Antes? Nunca mais de um ano. Dois, se muito. Você sempre foi meu porto, Emília, para onde eu retornava dos desencontros da vida, das noites escuras…
– Algum laço se rompeu e somente agora conseguimos reatá-lo. Coisas da vida, Josué. Não lamentemos. Onze anos é o tempo de envelhecer um vinho bom. Também eu te procurei em momentos de precisão. Ou você se esquece que esteve comigo na Ponte de Safena? No Marcapasso?
Josué e Emília chegaram à Rodovia Dutra cansados, pois haviam ficado em arrumações infindáveis até o último momento. Saíram de casa já com o sol a pino, contrariando o plano de madrugar na estrada. Escolheram para dormir o primeiro motel que apareceu. Lá serviam lanche no quarto. Pediram os únicos sanduíches disponíveis da lista do cardápio, uma garrafa de água mineral com gás, dois copos e duas taças. O vinho, traziam no farnel da caminhonete, meticulosamente preparado para a viagem. Não havia taças no motel. Tomaram o vinho em copos de plástico descartáveis. Desligaram o ar condicionado e abriram a janela que dava para a Dutra. Melhor o barulho dos motores de caminhão e o ar poluído da rodovia do que o barulho e o ar poluído daquele velho aparelho que nada esfriava.
Depois que a lassidão tomou conta dos corpos saciados, o ombro de Josué fez Emília esquecer até o cheiro dos lençóis curtos de uma cama mal forrada. Estava ali com Josué, para os agrados do depois, pelas mãos calosas de Maria Emília e o cheiro de sabonete Phebo do doutor Juvenal. O murmúrio de Josué nesse depois… Ah! Como era bom ter de volta!
Emília não lembra a hora em que pegou no sono. No meio da noite, levantou-se para ir ao banheiro. Estava nua.
– Emília?
– Te acordei, meu amor?
– Meu amor… Que delícia ouvir estas palavras da tua boca! Vem cá, meu amor. Deita aqui, embaixo das cobertas.
– Estou indo fazer xixi e lavar os restos do amor, Josué.
– Tá certo. Mas volta. – “Por que diabo essa mulher não se aquieta e fica comigo para o resto da vida? Por que foge, a danada? Por que nenhuma das outras que passou em minha vida preenche o lugar dela?”
– Já te disse isso, Emília?
– Espera aí, querido. Com o barulho da água correndo da torneira, não te escuto.
– Pronto, Emília? Boceta limpa? Lavou, tá nova.
– Eu estou é descadeirada, Josué. Não vou entrar debaixo dos lençóis, nada. E você, você vai é fazer uma massagem nas minhas costas. Mas não é massagem de safadeza não, viu? Aqui, Josué, na lombar. Assim, aí mesmo.
Acordaram de madrugada com os gritos de uma mulher no quarto vizinho. “É fake, Josué”.
Já eram nove horas da manhã quando tomaram café num daqueles restaurantes ascéticos, que iriam sumir da estrada logo saíssem de São Paulo. Pão de queijo, suco de laranja e cafezinho. Dentro de Emília habitava uma felicidade que passava ao largo do feio daquele restaurante de plástico. “Viajar com Josué, caminhar com Josué, estar com Josué, é a felicidade”, pensava. Depois, no carro, já atentos à saída à direita da Dutra que daria em Volta Redonda, onde pegariam a BR 116 (a Rio-Bahia), Josué retomou a prosa que duraria por toda a viagem.
– Sabe, Emília? Ontem eu olhava teu corpo nu, quando você deixou a cama indo para o banheiro. Você caminhando sem pressa, na passarela daquele motel vagabundo. Fiquei apreciando de camarote teus quadris se balançando, se mostrando como Deus criou. A tua cintura de pilão, para quem Luiz Gonzaga e Zé Dantas compuseram uma música. Essas mãos delicadas de quem nunca precisou pregar um prego na parede. Essa barriguinha que não saiu do lugar depois de ter abrigado um bebê. Essa floresta de prazeres onde tantos já se perderam…É engraçado, Emília, como você não se dá conta do teu poder de encantar os homens. Você às vezes passa distraída, e eu observo os olhares dos homens. Ainda hoje, naquele restaurante da Dutra…
– Ali só havia motoristas de caminhão, Josué. Eles espiam para qualquer rabo de saia.
– Você não sabe o que é homem, Emília. Aliás, não só você. Mulher nenhuma entende de homem.
– E vice-versa, não é meu primo?
– Sim, e vice-versa. Homem é bicho safado, Emília. Quando olha para uma mulher, vê a fêmea. No teu caso, como não ver? Você caminha lânguida, como quem desfila numa passarela. Mesmo num restaurante self service como aquele. Pernas bem torneadas, como gostava de dizer tua tia.
– Tia Nenê falava isso?
– Minha mãe tinha muito medo que a gente se apaixonasse, se casasse. Era a paranoia de nossa família: filhos de primos sairiam com algum defeito ou, pior, doidos. Mas ela era doida por você; acho até que gostava mais de você do que de minhas irmãs.
– Não exagera, Josué. Mas o que mais ela dizia de mim? Agora estou curiosa.
– Ora, Emília, ela constatava o óbvio, não era cega. Nem precisa dizer que, no fundo, comparava você com as filhas. Você mais bonita de rosto e de corpo, tal qual tia Maria, a mais bela das quatro irmãs.
– Josué, tia Nenê não era invejosa. Não diga isso de sua mãe.
– Não, Emília, entenda. Ela não tinha inveja de você nem da irmã. Filha de Iemanjá, minha mãe sempre foi a grande mãe que a todos acolhia em seu colo generoso. Mas isso não a impediu de reconhecer e, digo mais, até se regozijar, com a beleza tua e da tia Maria. Vi pelos olhos daqueles homens do restaurante onde tomamos o café da manhã. Você é a mais legítima mulata brasileira, Emília. Bunda redonda, grande, que se mexe com perfeição a cada passo. E, como se tudo isso não bastasse, ainda tem a boceta capô de fusca.
– Capô de fusca, Josué?
– É o que já te disse, querida. Homem é bicho safado. Aprendi isso numa prosa regada a chope na padaria do Sílvio. Passava uma mocinha com calças compridas muito justas. Um deles comentou: lá vai uma capozinho de fusca. É dessas bocetas salientes, sabe, Emília? Que se mostram através das calças compridas que hoje em dia se usa muito para caminhadas e academias. A boceta capô de fusca é a mais valorizada.
– Credo, Josué!
– E você, Emília, mesmo que esteja envolta em um capote, os homens adivinham essa bunda pelo teu andar manso. Já te vi comer depressa, até trepar depressa. Mas nunca te vi, Emília, andar depressa. Você sempre caminha desfilando numa passarela. Agora pense, Emília, essa mulata com um vestidinho de alça… Sem sutiã…
– Tira a mão daí, Josué! Você está dirigindo! Em velocidade!
– Sem sutiã. E você é safada, Emília. Nisso, você não perde para os homens. Ou você pensa que eles não imaginam que, assim como está, sem sutiã, também não estará sem calcinha? Ah, Emília, como eu queria ser o dono dessa mulher, prendê-la em meu quintal, fora de todos os olhares, de todos os desejos, só minha!
– Sai pra lá, Josué! Não quero ouvir essa prosa. Costuma nos afastar.
***
Emília e Josué já haviam percorrido mais de dois mil quilômetros de estradas. Desde que entraram na Rio-Bahia, haviam enfrentado alguns trechos péssimos. De repente, o asfalto sumia. Perto de Jequié, ônibus, automóveis, caminhonetes, caminhões, tratavam de se livrar de buracos, alguns, verdadeiras crateras, cheios de água de chuva barrenta. Nesses trechos, não se obedecia a mão nem a contra mão; era um salve-se quem puder.
Viajavam há cinco dias e não tinham pressa em chegar ao destino. Quando entraram em Sergipe, começaram a contar quantos quilômetros até chegar a Propriá, às margens do rio São Francisco, limite com o estado das Alagoas. O Velho Chico é orgulho de todo nordestino. Ao avistá-lo, Josué parou a caminhonete num acostamento. Desceu, arrodeou o carro e veio dar a mão para Emília descer. Ali se abraçaram. “Esse rio é a primeira porteira de casa, Emília”. Ao atravessarem a cidade, Emília pensava, “Por que não seguimos por essa estradinha, fora das grandes e péssimas rodovias? Assim sem destino, até encontrar um pouso minimamente decente onde dormir? Por que não amanhecemos espiando esse mundão de água doce?”
Josué adquirira há muito o mau hábito de adivinhar os pensamentos de Emília. Tomou uma estradinha secundária e seguiram sem mapa. O primeiro povoado que encontraram era de uma pobreza de Jó. Uma única rua calçada de paralelepípedos, terminava em uma pracinha sem cimentados, sem gramados, em chão batido, com canteiros floridos e bancos sombreados por árvores. Dessas praças em que o prefeito ainda não tivera verbas federais (de alguma emenda parlamentar de deputado) para estragar. Nessa rua, algumas lojas, uma bomba de gasolina, e uma igreja de telhado alto e bancos duros. Ali Josué parou a Toyota, adivinhando que Emília iria querer rezar as três Ave Marias. Uma velhinha de véu na cabeça rezava o terço, ajoelhada no banco da frente. O chiado de seus lábios era ouvido até no terceiro banco, onde Emília também se ajoelhou. Depois, aproximou-se dela para as primeiras informações. A velhinha falou primeiro da igreja, com o orgulho de um guia turístico que mostrasse a Catedral de Notre Dame em Paris. Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, tinha a ela dedicado o altarzinho do lado direito, enfeitado com flores de plástico coloridas e sujas de cocô de mosca. No altar do lado esquerdo, outra imagem de santa, que Emília não reconheceu, e soube ser da segunda padroeira da cidade. “Sim, dona, porque essa cidade, em outros tempos, foi só essa igreja, construída em pagamento a uma promessa à mimosa Santa Terezinha do Menino Jesus. Por isso a cidade ficou sendo chamada de Terezinha do Menino Jesus”. E Emília pensou, “esse minúsculo povoado, com duas padroeiras”.
Enquanto Emília interrompia o terço da velha, Josué abastecia o carro e se informava com o bombeiro onde poderia encontrar uma oficina. Era inacreditável, mas havia sim, uma. Depois de abastecida, a Toyota só pegou no tranco. Foram dali direto para a oficina. Mal Josué freou a caminhonete, como adivinhando que chegara ao lugar certo, a amarelinha morreu de vez. Emília deixou Josué conversando com o dono do pequeno estabelecimento e foi dar uma volta a pé pelas treze ruas da cidade. Quando retornou, já havia o diagnóstico: problema no motor. Teriam que mandar buscar a peça em São Paulo, sem previsão de tempo para chegar. “É o que dá comprar carro de segunda mão”, pensava Emília. Mas agora era tarde. A Toyota, aparentemente em bom estado, possivelmente teria sido usada previamente para participar de rallies, conforme supôs o esperto dono da oficina. Um senhor de uns cinquenta anos, que falava todo o tempo com um tique nervoso de levantar o ombro direito, como se quisesse levantar voo com uma única asa.
Vendo as bagagens, informou que a hospedaria da cidade era precária, e sugeriu a pousada de um estrangeiro meio amalucado, mas num lugar aprazível, distante dali três quilômetros. Emprestou o carro dele para Josué colocar as tralhas e ir até lá deixar a patroa arrumando as malas.
Não foi difícil encontrar o local, com as indicações do muro pintado de verde e coberto de Bougainvilleas. A campainha não funcionava. Bateram palmas. Nada. Emília empurrou o portão, que estava apenas encostado. Deixaram o carro na estrada e foram entrando. Não havia cão de guarda, felizmente. Depois de um terreno de uns quinhentos metros, com alguns restos de grama, coqueiros, palmeiras, pés de jambo, seguiram na direção de onde vinha o som de um bandoneón tocando La Cumparsita. Só ao chegar perto da casa onde tocava o tango, viram, à direita deles, cinco pequenas construções, parecendo casinhas de bonecas, com telhados apropriados para receber neve.
Pablo era o nome do moço que os recebeu à soleira da porta, com uma cara de quem, a última coisa que gostaria de fazer, era receber um hóspede. Já devia estar adiantado nas doses de whisky, porque cambaleava quando conduziu os dois à primeira das minúsculas casinhas. Teto de madeira alto no topo, baixinho nos lados, cabendo apenas a cama de casal. “E onde colocamos nossas malas?” Ele olhou com má vontade para Emília, caçou no bolso o molho de chaves, e conduziu-os à casa de bonecas vizinha. “Cá podem baixar as vossas bagagens.”
Aos poucos, ficariam sabendo um pouco da história do dono dessa pousada. Argentino, legítimo portenho, meio hippy. Apaixonara-se por uma baiana, numas férias em Itapoã, na Bahia. Largou tudo em seu país, e fora com ela tentar a sorte nessa terra que a baianinha herdara do pai. Em Buenos Aires, trabalhava como engenheiro civil. Junto com a mulher, resolveram abrir a pousada. E deram com os burros n’água. Primeiro, porque nenhum dos dois tinha experiência prévia no ramo nem gosto pelo negócio. Pablo entendia de construção. E segundo, porque a baianinha separou-se dele em menos de um ano de casados, fugindo com o trapezista de um circo que se hospedara com toda trupe na pousada. O portenho já havia investido muito na construção da casa onde moravam, nas cabanas, na infraestrutura de banheiros e cozinha. Enquanto a família da sua mulher não viesse reclamar a propriedade, ele ia levando, curtindo uma dor de cotovelo que atacava principalmente nos finais de tarde, aplacada com whisky e jazz de primeiríssima, permeado por tangos dolentes.
Na verdade, a pousada foi um achado. Josué voltou para devolver o carro e Emília ficou arrumando as malas na cabana que funcionou como closet. Haviam chegado a essa pousada no dia 15 de junho. Em estradas boas, teriam avançado mais. Porém, até ali, haviam conseguido apenas uma velocidade média de 400 quilômetros por dia, a Toyota farrapando aqui e acolá. Esperou apenas chegar às margens do Velho Chico, para pifar de vez. Menos ruim. Estavam em um lugar lindo! A pousada, projetada inicialmente para ser área de camping, tivera seu tempo áureo, malgrado a incompetência dos donos, quando Pablo resolvera empregar parte dos lucros para construir as cinco casinhas para casais mais velhos, que reclamavam do frio à noite. O muro era apenas o que dava frente para a estrada. Toda a área do lado esquerdo, onde estavam as casinhas de boneca, situava-se às margens do rio, sem outra visão que o correr das águas. Enquanto Emília se movimentava de uma cabana a outra, forrando a cama, separando as roupas em cima dos dois beliches do “closet”, viu que Pablo armara uma rede entre dois coqueiros. Parou tudo e fui se deitar lá. O estômago começava a reclamar. Já passava das duas horas da tarde e Josué não chegava. Ali, naquela pousada, certamente não teriam refeição alguma. Nenhum cheiro de comida. Nenhum serviçal à vista. Pablo não era dado a prosa.
Chovera muito nos dias precedentes e o rio estava cheio, as águas turvas. Balançando-se na rede, Emília espiava o São Francisco de largas margens, caminhando apressado ao seu destino, o destino dos rios: o encontro com as águas salgadas do mar.
Na volta da oficina (“Mas o pobre vê nas estradas, o orvalho beijando a flor. Vê de perto o Galo Campina, que quando canta muda de cor. Vai andando pelos riachos, que riqueza, Nosso Senhor! Vai olhando coisa a grané, coisa que pra mode ver, o cristão tem que andar a pé”), Josué encontrara uns pescadores. Puxara conversa. Chegou na pousada de volta, com dois pequenos peixes para o almoço. Nunca antes Emília vira Josué limpando um peixe, tirando as vísceras.
– Aprendi com meu pai, Emília. A melhor peixada era a de dona Nenê. Mas era seu Bartolomeu quem trazia o melhor peixe, que não iria para os fregueses, mas para aquela grande família de dez filhos; Antes de entregar à patroa, lavava, limpava, cortava em postas grossas para o cozido, a cabeça separada para o pirão. – Emília olhava séria para Josué, a recordar o Janga. – Só não me peça, Josué, para fazer aqui a peixada de minha tia, a melhor que comi até hoje. Concorrer com tua mãe seria covardia.
As pequenas Traíras cheias de espinhas foram um fiasco. Na cozinha da pousada, haviam encontrado apenas pratos, talheres, panelas em estado deplorável, um resto de sal, e só. Porém, nos dias que se seguiram, fizeram daquela pousada sua casa. De manhã, Josué ia caminhando até a cidadezinha para acompanhar os serviços da caminhonete. Na volta, trazia ingredientes para prepararem as refeições: os parcos produtos de uma venda em Terezinha de Jesus; e, da pequena colônia de pescadores, o peixe e a fartura do rio São Francisco – couve, alface, tomate, coentro, cebola, cebolinha, inhame, macaxeira, banana da terra, banana prata. Até uvas!
O almoço do segundo dia foi mais caprichado: peixe temperado com limão, cozido com bastante coentro, cebolinha, cebola, tomate, e azeite de dendê, que haviam acrescentado ao farnel na caminhonete, quando passaram em Feira de Santana, na Bahia. Comeram uma moqueca acompanhada de farofa de dendê, pirão e arroz branco.
Próximo às cinco casinhas, havia um banheiro masculino e outro feminino. Apossaram-se dos dois e lá colocaram os artigos de toalete e as toalhas de banho. Ficaram por donos de todo aquele grande terreiro, para inteiro desfrute só deles. À sombra dos coqueiros, palmeiras e pés de jambo, duas redes e cadeiras espalhadas. Como não havia outros hóspedes, podiam fumar à vontade, cada um a seu gosto. E ainda desfrutavam da boa música que dava para ouvir do potente som da casa do portenho.
Nesse segundo dia, principiaram uma prosa que se espichou, feito conversa de pescador, até o dia em que tiveram a boa nova de que a Toyota estava pronta para seguir viagem. Antes da noite de São João, daria tempo de chegar à fazenda Baraúna, pertencente a Francisco, o irmão mais velho de Josué. Foi somente nessas prosas de beira de rio que Josué contou a Emília dessa fazenda, e do desejo de rever esse irmão, de quem Emília tinha a vaga lembrança de um sorriso paternal no dia do primeiro almoço na casa da tia Nenê.
(continua no próximo domingo)