Emília

13. A terceira margem do rio

Não existe nada melhor para uma boa prosa do que preparar uma moqueca, aos golinhos de uma fina cachaça. Na falta de um tacho de barro, usaram uma frigideira velha. Josué trouxera um pedaço da cabeça e postas de Dourado, o peixe mais bonito e mais saboroso do rio São Francisco.

O filho do pescador Bartolomeu voltava às suas origens. Fez amizade com Seu João, que morava com a mulher e uma enfieira de meninos. Um caboclo atarracado, musculoso, ombros largos, a pele branca esturricada pelo sol e uns olhos azuis que não se mostravam à primeira vista. Grande contador de histórias do rio São Francisco. Nunca saíra daquele fim de mundo para lugar nenhum. Conhecia a “rua”, como se referia a Terezinha de Jesus.

Nos sete dias que passaram hospedados nas casinhas de boneca, Josué foi duas vezes pescar com Seu João.

– Eu, por mim, Emília, não saía mais daqui. Gostei dessa vida. Quem sabe, compramos essa pousada do Pablo e reabrimos em grande estilo?

– Como compramos? Você não se lembra da conversa com ele? Nada disso pertence a Pablo, Josué. Ele pode, sim, é levar um belo chute na bunda a qualquer hora em que a mulher, com o trapezista, resolver voltar pra cá. Já pensou? E eu acho é pouco. Com essa arrogância portenha, foi passado pra trás por uma baiana.

Emília fazia tricô, Josué pescava… Nunca haviam conversado tanto. Josué soube de Gabriel e de Pantélia. Deste não guardou rancor. Mas de Gabriel…

– Eu só não entendo, Emília, como você não se deu logo conta de que esse maloqueiro não passava de um malandro. Não houve uma santa alma para te alertar sobre isso, minha prima?

– Um dia, Maria, que estava em São Paulo, foi jantar conosco. Gabriel caprichou em uma receita de tagliatelle alla crema di limone e pepe verde.

– Além de malandro, o maloqueiro ainda era metido a besta.

– Para, Josué, deixa o coitado em paz.

– Você não soube mais dele, Emília?

– Graças a Deus, não. Sumiu na poeira. Pois bem, nesse jantar lá em casa com Maria, Gabriel se desmanchou em agrados, foi super gentil, como sabia ser quando queria. Conversamos sobre jazz, sobre a vida noturna em Nova York, foi uma noitada e tanto. No dia seguinte, Maria me ligou no escritório e fomos almoçar juntas.

– Maria é teu alter-ego. O que ela disse?

– Ela foi curta e grossa. “Você não está vendo, Emília, que esse sujeito está se aproveitando de você?”

– E o que você respondeu?

– Respondi que sim, ele estava se aproveitando de mim. Mas eu também estava me aproveitando dele. O que era verdade. Mas, verdade verdadeira, eu estava era apaixonada. Hoje sei, a paixão é como qualquer outro surto de loucura. Enquanto dura, se assemelha à magia de Mefistófeles: ferro brilha que nem ouro. Foi preciso aquele o ciúme doentio dele ficar insuportável, para eu me afastar de vez. Mas não pense você, Josué, que alguém se deixa enganar assim à toa. Não sou santa. Só eu sei o quanto fiz daquele Gabriel gato e sapato.

– Você é uma pessoa afoita, Emília. Ainda bem que sabe entrar e sabe sair. Esse Gabriel é malandro sim. Mas, nesse ponto do ciúme, não tiro a razão dele. Eu te conheço, Emília, sei do que você é capaz. É só você tomar umas biritas, fumar um baseado, e quem quiser que se cuide. É ou não é?

– Josué, não vamos estragar nossa prosa com esse assunto de Gabriel, de quem você criou raiva sem nem saber da missa um quarto. Se um dia eu morrer antes de você, quando tudo vira história, aí você está autorizado a cascavilhar nos meus diários todos os meus segredos. Como eu já terei morrido mesmo, faça deles o que bem quiser.

– Sai pra lá, Emília, com essa história de morrer. Agora, livres das obrigações que jogamos nas águas do rio Tietê em São Paulo, agora é que vamos viver, meu amor. Espera aí. Vou ao banheiro. Na volta, trago meu cigarrinho.

Emília ficou se balançando na rede e pensando nas palavras de Josué, que a conhecia tão bem, melhor que qualquer outra pessoa. Lembrou-se de uma prosa com a avó, as duas se balançando na rede do terraço da casa do Janga. “Você é de Oxum, minha filha, a deusa da sedução”.

“… eu estava vestindo uma saia justa e uma blusa decotada. Saio para a noite. Sozinha. Escolho a mesa mais próxima aos músicos. Peço uma Cuba Libre e uma pasta, especialidade da casa. Naquela noite, um sujeito de extrema timidez veio se sentar à minha mesa. Já o vira outras vezes naquele clube de jazz. Feio, baixinho, magro, cabelos ralos, cara raspada e um olhar de melancolia. Desses que usam camisa de mangas compridas abotoada na frente, por dentro de calças largas, e, preso ao lado direito do cinto, um molho de chaves. Eu reparava sua boca, que fazia uns vincos para baixo ao falar. Prestava menos atenção ao que dizia do que aos poucos movimentos da boca, como se envergonhada de se mostrar. ‘Seriam seus, aqueles dentes?’ Ele conta de uma festa em que dançava com rosto colado, e logo se desculpa, ‘Por que fui me sair com essa agora? Deve ser por causa dessa música’. O whisky vai abrindo seu sorriso. Sorri, como se tivesse medo de rir. Conhece quase todos os frequentadores, e diz que vários já o tomaram por confidente. Adivinho: foi seminarista. Sente legítimo prazer em me contar a intimidade dos outros, apontando discretamente. ‘Aquele ali é um grande fotógrafo. Sempre o vejo com mulheres fodonas do mundo da moda’.

“O fotógrafo era o homem mais bonito da noite. Nunca o tinha visto antes. Parecia desembarcado de uma temporada de surf no Havaí. Ao fotógrafo, que circulava pelas mesas de câmera em punho, não passei desapercebida. Posta-se em frente ao meu sorriso e ali fica, encoberto pelas lentes da máquina de fotografia. Homem gosta de cheiro de homem. Bastou o fotógrafo se insinuar, o tímido propôs, ‘Vamos?’ Ao que respondi, ‘Bora’.

“De onde menos se espera, daí que não sai nada mesmo. O pau dele não subiu. O mesmo sorriso contido, sem graça. Voltamos a prosear. Deixou os assuntos de confessionário dos outros. Confessou-se. A primeira tentativa de penetrar uma garota mais velha e experiente, ele adolescente, o pau entortava, e a mulher se ria, apontando e dizendo, meio falando, meio cantando, ‘ficou nó pró, ó’. Ficou nó pró, ó’! Tomei a mão dele, pousada ao lado de meu corpo nu, levei seu dedo indicador à minha boca e me pus a chupar. Ele quis dizer algo e eu tapei a boca dele com a outra mão. Depois, levei o dedo todo babado ao meu grelinho. Ele sabia fazer isso. (Uma arte que poucos dominam.) Ao cheirar o dedo impregnado de boceta com um sorriso de satisfação, vi um pedaço de sua dentadura.” 

– E Pantélia, você também se apaixonou por ele?

Emília tomou um susto. Estava em tal devaneio, depois da provocação de Josué, “sei do que você é capaz”, que não percebeu que ele já chegara de volta, com o cigarro aceso e se acomodando na outra rede.

– Não, Josué. Pantélia foi outra coisa. Uma espécie de tratamento de choque, para fazer nascer de minhas entranhas a Emília mulher, sufocada desde o princípio da adolescência por uma camisa de força da religião e do sentido de obrigação.

– Como assim, Emília?

– Conheci Pantélia, Josué, como você bem sabe, no avião da Varig, voltando para o Brasil, depois de semanas e semanas internada em um hospital entre a vida e a morte. Eu vi a morte de perto, Josué. Hoje sei por que todo mundo teme essa indesejada das gentes e faz qualquer negócio, vive mal, se priva de um bocado de vida, contanto que continue vivo. A vida pode não ser boa, pode ser uma merda, mas a gente conhece. A morte é o mergulho no escuro. Mesmo para os que acreditam na vida eterna. Quando chega a hora, não poupa o medo nem dos crentes no paraíso.

– Eu venci a morte, Josué. O cirurgião que me operou também venceu a minha morte, à maneira dele. A vitória da ciência, de sua perícia em aplicar os conhecimentos científicos para salvar vidas. Já salvara muitas criancinhas, os meninos azuis, cianóticos. Meu caso era mais grave: uma jovem adulta. Uma estudante do curso de Direito da mais prestigiosa universidade americana. Mais um título para a carreira. Eu vi a fisionomia de satisfação dele ao apresentar meu caso aos médicos residentes do hospital.

– Para mim, era a vitória contra a minha morte. Eu renascia. O primeiro fio de luz do sol que entrou na enfermaria compartilhada com duas mulheres que só dormiam, deu-me a luminosa sensação de vida. A morte, Josué, é escura. É um corredor escuro que vai levando a gente para mais escuridão.

Josué saiu da sua rede dele e veio para a de Emília. Abraçou-a forte. Emília sentiu as lágrimas escorrendo do rosto dele para o dela. Lembrou-se das lágrimas da avó, no dia em que foi a ela apresentada no Janga, aos treze anos de idade.

Porém, rápido, Josué se recompôs, e disfarçou a fraqueza com uma gaiatice:

– Tá certo, minha ressuscitadazinha. Mas onde fica o negão nessa história?

– Até tinha me esquecido dele, Josué. Voei longe. Como acredito que minhas orixás estão sempre do meu lado, como assegurou minha mãe no dia em que cheguei de volta do Brejo à casa dela no Pina, acho que foi Oxum, a deusa da sedução, quem botou aquele negão em meu caminho. Pantélia não foi paixão, Josué. Foi sedução. Um tesão do tamanho do mundo, para despertar uma Emilia, filha legítima de Oxum, que um dia se encantou pelo primeiro Xangô que apareceu na sua vida, sumido na poeira das estradas com destino a São Paulo. Pantélia também devia ser de Xangô. O fogo que nos envolveu durante aqueles dias no Brejo…

– Por favor, querida, poupe-me dos detalhes.

Foram dormir naquela noite mais amorosos do que nunca. Viver o amor é sereno, sem os arroubos da paixão. E foder com amor é a grande ventura dessa vida.

xxx

– Josué, meu nego, você levante as mãos para o céu, que até hoje nenhum médico ainda inventou de tirar fora tua próstata.

– Emília, você a vida inteira careceu dessa raça por causa de teus problemas do coração. Mas eu? Qualquer coisa, procuro aquele médico homeopata a quem te apresentei, ele manda eu tomar as mesmas bolinhas, pronto, tá resolvido. Na última consulta, recomendou-me ir a um especialista, por causa da idade. Fui. E fiz aquele exame que os homens dizem detestar, certamente por medo de gostar. Taí, um medo que não tenho. Meu negócio é bo ce ta. Mas um colega meu fez essa cirurgia e disse, numa roda de amigos, que em nada afetou sua sexualidade.

– Mentira, Josué!

– E como é que você sabe? – Josué fez aquele sorrisinho no canto da boca que Emília conhecia bem – Vai, conta logo, minha prima. Você, heim? Lá no Janga se dizia de gente assim, “rede de arrasto”.

– Houve um que adorava falar, contar seus feitos de um passado que ele considerava glorioso. Enrolou enquanto pode, sem ir às vias de fato. Quando finalmente fomos para a cama, ele me fez gozar rápido com a língua. Depois, quando olhei, cadê? Aí ele me confessou da cirurgia, mas com a mesma prosa de teu colega. O caralho, que não afetou!

– Nossa, Emília! Nunca te ouvi dizer palavrão. Bom, esse pelo menos está no contexto apropriado da frase. Sim, e depois?

– Depois ainda ficamos namorando uns meses. Ele era um sujeito de mente aberta, topou até usar brinquedinhos junto comigo, e, de outras formas, eu gozava.

– E ele?

– Ele dizia que gozava para dentro.

– E você acreditou?

– No começo, sim. Depois, fui percebendo que, na verdade, ele fazia sexo mais para me agradar. Quanto mais fomos ficando próximos, mais ele perdia o interesse pela brincadeira. E, você sabe, não é Josué? Ainda não inventaram brincadeirinha melhor para gente grande.

– Houve outros, Emília? Já que começou, agora vai até o fim.

– Deixa eu me lembrar… Ah, sim! – e Emília ria – Um que resolveu dar continuidade a uma conversa principiada na negociação de um projeto. Marcou um dia para ir à minha casa. Percebi que era apenas um motivo para outras intenções. Era um homem atraente, inteligente… Topei. Estávamos mansamente tomando café com pão de queijo, quando ele se levanta e me taca um beijo na boca, assim, de repente. Eu sentada, com um livro aberto em cima da mesa. Disse então da atração que sentiu por mim desde o primeiro momento, mas que tinha uma promessa de fidelidade com a esposa. Uns três ou quatro encontros depois, depois de muita conversa, troca de livros, de textos, ele propôs cama. Não foi algo que aconteceu naturalmente, como teria sido após o beijo. No dia daquela proposta de cama, não falou mais do tal pacto de fidelidade. Mas foi um desastre. Quando perguntei, escolada que já era, ressaltou: “mas levo uma vida sexual normal com minha mulher”. E ainda tive que ouvir, “você não sacou meu corpo”. Não fosse por comiseração, teria respondido, “Não é isso, querido. Faltou caralho”.

– Que coisa, Emília! E por que não disse? Caralho nessa frase senta ainda melhor. Bem que esse safado merecia ouvir isso. Bom, digo assim… mas eu acho é pouco, para você não ser tão devassa, Emília! Bem feito! Que coleção, heim? Dá pra escrever um tratado sobre o assunto. E não faça essa cara sem vergonha, Emília. Tenho dó desses coitados.

– Mas não são todos coitados não, Josué. Na minha seara também apareceu um judeu inteligente (O que é redundante. Já viu judeu burro?), mais velho que eu, de uma conversa irresistível, escritor, meio louco. Conhecemo-nos em uma viagem minha fora do Brasil. Ir para a cama com ele, foi a decorrência natural de um jantar num daqueles restaurantes maravilhosos de Lisboa, daqueles cujo prato do dia é afixado numa folha de papel de embrulho na vitrine de peixes e crustáceos. Era um Xangô irresistível a Oxum. Fomos para a cama ao primeiro dia em que nos conhecemos, depois desse jantar regado a muito vinho do Alentejo. Esse não fez mistério nem tentou uma desculpa esfarrapada. Quando toquei no seu sexo em posição de descanso, retrucou, “não espere dele grandes feitos”. Sua libido estava para além do membro sexual, que, para grande parte dos homens, é um fetiche.

– Que história é essa, Emília, de “membro sexual”? Agora você fala dele toda cerimoniosa, usando termos médicos… Eu, heim? Fetiche? O meu não. O meu é só caralho mesmo.

– É. Você até que é bem normalzinho, Josué. Mas já namorei um cara cujo pau tinha nome. Se pudesse, daria até sobrenome. Bom, esse foi o mais exagerado, nesse culto ao pau. Porque dar nome próprio ao caralho, não foi só esse. Você já viu alguma mulher nomear a boceta, Josué? Isso é coisa de homem.

Josué mantinha aquela concentração professoral que Emília já conhecia de longa data, de ouvir atentamente um assunto, como se estivesse em seminário dos alunos. Não percebeu nele nenhum ciúme. Ou ele disfarçou bem. A prosa era filosófica, existencial, e, nessas, tinham longa estrada, desde as noitadas no entorno da Maria Antônia.

– Você sabe o que penso sobre isso, Emília? Sou suspeito, porque não gosto dessa raça de médicos. É muito triste o que a medicina anda fazendo com os homens, com essa fixação em câncer de próstata. E estamos apenas principiando um novo milênio. Escreva o que vou dizer, Emília: isso interessa à indústria farmacêutica, como outros tantos cânceres. É prato cheio para as radioterapias, as quimioterapias. Essa febre de cirurgia de próstata vai se alastrar como praga, como vírus, ouça o que estou dizendo. Esse é o verdadeiro mundo cão: os laboratórios mandando nos destinos da pesquisa científica, da medicina… Pois não são eles que financiam os faustosos congressos médicos? Vai ver como é um congresso de sociólogo… Eu, por mim, não tenho dúvida: prefiro viver menos tempo, fodendo; do que viver mais tempo, broxa.

– E sabe o que mais, Emília? Isso deve ser um complô das igrejas com a medicina, depois da grande descoberta do Século XX, o Viagra. Essa azulzinha veio para ficar. Voltou à ativa um monte de pica que andava fora de uso. Antes, uns diziam, para se consolar, “enquanto existir língua e dedo, de mulher não tenho medo”. Conversa pra boi dormir. Têm medo sim. Qual homem não tem medo de mulher? Então as igrejas, que fazem de tudo para evitar que a humanidade desfrute do prazer, junto com a indústria farmacêutica, que quer lucrar a qualquer custo, espalharam a cirurgia de próstata.

– Meu Deus, Josué! Quanta profecia! E tudo isso cheira a um maniqueísmo… Não é de hoje que você inventa teorias, tiradas da cartola, assim, de repente. Seu encantador de serpentes!

Josué já pulara da rede e estava em pé. Emília levantou-se também e voltou com um pedaço de pau encontrado embaixo de um coqueiro – Fica aí onde está, Josué, não se mexa. Assim. Fazendo discurso, levantando os braços. Pega esse pau e repete a tua previsão catastrófica para o século XXI, com esse cajado na mão.

– Filha da mãe! Você está querendo me fantasiar de Pantélia no lajedo da tentação de Cristo? E tem mais, Emília. O novo milênio, que mal principiou, trará na sequência o século do medo. Medo do câncer. Medo da doença. Medo de ser assaltado na rua. Medo de perder o dinheiro. Medo dos imigrantes. Para os desvalidos das periferias, medo de ser assassinado. Os meios de comunicação em redes sociais, em livre expansão, serão o veículo ideal para difundir a civilização do medo.

Josué voltou para a rede e Emília foi se encolher junto dele. Ficaram na brisa que chegava do rio São Francisco, numa modorra boa, para um lado, para o outro, o pé de Josué encostando cada vez mais, cada vez mais, no coqueiro onde estava armada a rede… Emília deve ter dado um cochilo. E talvez sonhado. Quando abriu os olhos, Josué continuava balançando a rede, e ela prosseguiu na prosa, como se não tivesse havido interrupção,

– Sabe, Josué? Eu acho que, tirando o exagero, você tem razão nessa tua maluquice do complô das igrejas com a indústria farmacêutica. E veja, Josué, estamos falando aqui do bicho homem, que continua mandando no mundo. Agora, você imagine com o bicho mulher? Quando eu entrei na menopausa, principiavam as discussões sobre reposição hormonal. Havia mais restrições do que apoio à descoberta, tão revolucionária quanto o Viagra para os homens. Nesse caso também, logo apareceram os fantasmas: câncer de mama, de ovário, o diabo a quatro. Os hormônios, Josué, não respondem só pela libido do sexo, mas da vida, do desejo.

– Você nunca parou de fazer reposição hormonal, Emília? Mesmo com esse coração bichado, remendado?

– O que você acha, Josué?

– Eu não acho nada. Só sei que tua boceta não deve nada a de qualquer garota nova. Molhadinha. Gostosa.

– É. Mas tome tento. Da última vez estava lambuzada de estrógeno. “Eu não digo nada”, como gostava de dizer Fausto, um maluco beleza do Velame. Quando você começar a falar fino…

– Emília, agora vou dizer uma coisa séria. Você é uma puta mulher! Saiu daquele curso vagabundo de Ciências Sociais do Recife, e foi para o topo do mundo, em São Paulo. Teria brilhado mais se tivesse feito carreira acadêmica…

Emília não o deixou terminar a frase,

– Seu presunçoso, branquelo da USP!

– Porém, prima, o que você fez a vida inteira, digo, profissionalmente, foi de muito mais valia. Preste atenção, Emília. Você dedicou a vida a tentar assegurar os direitos básicos aos cidadãos do mundo. Quem tem os direitos, vence a fome e a miséria, já dizia Amartya Sen. Mas sabe, Emília, onde você é insuperável? Aquele maloqueiro exagerou na dose, ao falar aquelas bobagens saídas da tara dele. Mas uma certa razão ele tinha: você não é apenas uma puta mulher, Emília. É puta mesmo.

Josué acendeu mais um cigarro. Parecia estar olhando para muito longe, sem ver sequer a outra margem do rio São Francisco. Chegariam ao outro lado? Ou ficariam aonde estavam? Na terceira margem do rio?

– Você fala que fui contaminado pelo vírus das teorias. E você? Se enxergue, mulher. Você, nos devaneios da fumaça, quando principia a momentear, é mestra em teorias. Você virou maconheira de vez, Emília?

– Acho que sim, Josué. Você não quer ser também? Muito melhor que esse veneno da Souza Cruz.

– Querida, eu já sou maluco ao natural. Mas me conta, aqui nessa beira de rio, que nem terá tempo de se lembrar do que ouviu, porque vai na sua pressa de filho para encontrar Iemanjá. Me conta tudo. Sei que você principiou com aquele negão. E nunca mais parou?

– Você sabe muito bem que a vida não é assim, Josué, linear. A vida é cheia de curvas. Não vê o São Francisco? Vai ali, andando a seu passo sossegado, moleirão, quando, de repente, recebe um afluente. Aí é aquele desmantelo, abre espaço para caber mais um, peixe comendo peixe… Minha vida deu muitas voltas, Josué, você sabe disso. Em várias, não cabia o devaneio.

– E os efeitos colaterais? Um deles, por exemplo, me ataca forte, a secura na boca e na garganta.

– E as drogas de farmácia? Também não têm efeitos indesejados? Houve um tempo em que tomei diurético. Retirava potássio do organismo. O médico receitou então uns comprimidos para repor o potássio. Recentemente lançaram no mercado saliva artificial. A falta de cuspe é muito danosa para os dentes. Os laboratórios não pensaram nos maconheiros quando inventaram isso, claro, mas sim nos velhos, pois também é comum aos idosos ter menos secreções.

– E também muita água, Josué. Isso aprendi com Pantélia. Quartinhas d’água. Veja que efeito colateral bom: te estimula a beber litros de água por dia. Em vez de você tomar água por obrigação, toma porque tem vontade, o corpo pede. Bebe água com prazer, sentindo o gosto bom da água cristalina. O principal benefício da maconha, Josué, é esse: ela te ajuda a substituir o princípio da obrigação pelo princípio do prazer.

– E você fuma todo dia, Emília?

– Todo santo dia, chova ou faça sol. Para mim, é como se fosse mais uma droga na minha cestinha de remédios. Está vendo esse cigarro? Ele dá em média para três dias. E às vezes, quando estou com alguma irritação na garganta, substituo os tragos por um mingau batizado. Demora mais para chegar à corrente sanguínea, pois vai passar pela digestão, mas, em compensação, a viagem é mais longa. E mais suave também.

– Vem cá, minha nega. Eita, que essa mulata quando fuma um baseado, dana-se a fazer teorias, mais do que os que ela tanto esculhamba, os branquelos da USP. Deita aqui. Isso. Pode se enroscar mais. Eita cheiro bom nesse cangote…

Mas então Emília pulou de novo da rede, agarrou o pedaço de pau que servira de cajado de Antônio Conselheiro, e continuou a prosa,

– Você já se deu conta, Josué, que esse ano completamos, você antes, claro, você é seis meses mais velho do que eu, completamos sessenta anos? É a entrada no que andam chamando por aí de melhor idade. Se é para ser melhor, meu nego, só tem um jeito: fica decretado, faz parte do pacote da aposentadoria. Na melhor idade, está liberado o consumo da cannabis. Já pensou, Josué, que maravilha? Se é para não trabalhar mais, se já deu sua cota, seja aos sessenta, seja aos setenta… que então deixe de vez a obrigação em favor do prazer. Já pensou a alegria em volta de uma piscina aquecida num asilo de velhinhos?

(continua no próximo domingo)

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