Diário do Pina

Viva o povo brasileiro – 28 de novembro de 2020

Hoje me deu uma saudade de meus leitores… Escrevo para eles com o mesmo espírito com que antigamente escrevia cartas, no tempo em que morava na rua Professor Edgard Altino, aos primeiros anos da década de 1960. Essa rua era uma travessa da Estrada Real do Poço. Os que não são do Recife não estranhem esse nome de rua. É que meus conterrâneos gostam muito de nomear com realeza e nobiliarquia de Conselheiros e Comendadores, as ruas e até mesmo o maior hospital da cidade; e o que mais possa relembrar os tempos de glória da cana de açúcar. Da rua Edgard Altino eu caminhava por entre árvores frondosas até chegar às margens do rio Capibaribe, onde, sentada em um tronco de um pé de azeitona derrubado em alguma enchente do rio, fazia meu escritório. Na safra, voltava pra casa com a língua roxa de tanto comer as frutinhas caídas no chão coberto de folhas secas. Também não pensem os alienígenas que se trata das conhecidas azeitonas das quais se tira o azeite de oliva. Não. Essas daqui têm o mesmo formato, pequeninas, pretinhas – quanto mais pretas, melhor, mais maduras –, e nascem de árvores grandes, que me propiciavam sombra benfazeja desde casa até as margens do rio. Para lá levava um bloco de folhas finíssimas, fabricadas para pesar menos dentro dos envelopes. Estes, selados e enviados aos destinatários no imponente prédio dos Correios e Telégrafos da Avenida Guararapes.

            Naquele tempo, um dos destinatários era Antônio. Meu primeiro amor. Nós dois, estudantes secundaristas. Cearense, mirradinho, feio. Um amor platônico, que se alimentou só da escrita. Depois veio a primeira grande enchente do rio Capibaribe e levou tudo, as cartas de Antônio, meu diário, e até algo que havia se salvado das águas contaminadas. Junto com meu irmão, resolvemos aproveitar a oportunidade e jogar fora um passado do qual queríamos nos livrar: toda a coleção dos livros verdes.

            Pois assim me sinto quando escrevo as crônicas que envio para a dúzia e pouco de amigos, que, com a tecnologia do século XXI, recebem a correspondência no apertar de uma tecla de celular. Hoje, deixo os personagens e cenários do novo romance descansando, e volto aos meus leitores. Recebam então essas mal traçadas linhas, porque hoje é sábado, como disse o poeta, e, além disso, véspera de eleição.

            Ontem fui passear de carro. Antigamente, quando os primeiros automóveis chegaram a Garanhuns, dizia-se: carros de passeio. Lembro do pai de uma amiga de infância, aos domingos, levando a mulher na boleia, as três meninas e o caçula no banco de trás, rua acima rua abaixo, no seu carro de passeio de segunda mão. O Ford 51 de meu pai era de primeira mão, e gostava mais das estradas poeirentas a caminho do paraíso – a fazenda de meu avô em Bezerros. Mas ontem fiz o programa de Seu Asnar, com muitas diferenças de tempo e de lugar. Sozinha dirigindo a Pajerinho 4 x 4 (que também gosta mais de estradas de terra), vidros fechados, ar condicionado ligado, rádio tocando chorinho, saí passeando pelas ruas e avenidas do Recife. Vi muito trânsito na ânsia das compras do bréquefráde (como diz Edinha, que não sabe ler nem escrever, mas sabe as operações básicas de aritmética para não ser enganada e sabe se assinar para votar), e muitas bandeiras para chamariz dos indecisos entre um partido que se chama socialista e outro que se chama do trabalhador.

Distante das duas pragas, lá vai a Mulher do Sétimo Andar no seu carro de passeio, apreciando o colorido encarnadamarelo das bandeiras tremulando, lindo, lindo, numa tarde de sol cheia de brisa. Não vê partidos políticos. Não vê nem as cores da bandeira da Espanha, a terra ancestral de seus filhos. Aquelas bandeiras enfeitam as ruas. E servem para acrescentar uns trocados à garotada que, em harmonia uns com os outros, postam-se ao sinal fechado balançando os mastros das bandeiras. Que belo espetáculo! E as que são plantadas em lugares estratégicos? Como está bonita esta cidade! Cortada por um rio sinuoso como uma cobra caminhando em direção ao imenso oceano, depois de se juntar em núpcias ao rio Beberibe atrás do Palácio do Campo das Princesas.

No domingo essa mulher passará o dia em casa e não irá votar. Não por medo do coronavírus, mas porque já não acredita no voto nesse momento da história do Brasil. Fará o mesmo que fez hoje, sábado. Sairá de casa pelas cinco da madrugada, deixará a chave na portaria do prédio, e voltará a tempo ainda de um dedo de prosa com o porteiro da noite. Houve tempo em que a porta de casa ficava apenas encostada. Porém, depois dos setenta anos, achou prudente deixar a chave na portaria. Não retornando até uma certa hora da caminhada, exercícios, banho de mar, quando já terá assumido o porteiro do dia, este saberá a quem procurar. Na pior das hipóteses, ela terá sido levada por um amigo tubarão, e o caminho será mais curto até os inevitáveis braços acolhedores de sua mãe Iemanjá.

Informando-se do que se passa na cidade pelo movimento das ruas e pela versão de quem não mora trancafiado e usa transporte coletivo, a Mulher do Sétimo Andar conclui que nunca a segmentação de classes foi tão grande em nosso país. Os ricos, os funcionários públicos, podem se dar ao luxo do confinamento. Aliás, há décadas, a classe média está trancada nos apartamentos, sendo o Recife o caso brasileiro mais gritante. Trancafiados com medo das ruas, espaço da cidadania. Pois nas ruas reside o rescaldo da guerra das drogas, presente em toda periferia brasileira. A Pandemia veio acirrar tudo isso: a guerra das drogas, das milícias e do poder privado nos morros e nas periferias das cidades. Os jovens negros e pobres sendo dizimados. O lamento das mães dos garotos encarcerados e mortos nessa guerra. Quem lhes dá assistência? O poder privado dos chefes locais que mandam no cotidiano da periferia. Ou jovens organizados em movimentos sociais, em movimentos negros, em pastorais religiosas e evangélicas.

Enquanto isso, velhos militantes brincam de planejar a tomada do poder. Outros se distraem com as pesquisas eleitorais. Como se mudasse alguma coisa ganhando o amarelo ou o vermelho. Ao chegar lá, continuarão o moto contínuo dos dez por cento, dos quinze por cento, das caixinhas para a próxima eleição e a perpetuação da perversa engrenagem, que salta do poder político para todas as instâncias em que circula o vil metal. Edinha embolsou cento e oitenta que seria de seis votos a trinta reais cada, entre filhos e netos. E ainda contou vantagem: “meu voto terminou valendo mais, cento e oitenta, pois os outros já tinham candidato”. É. Isso ainda existe.

Votar? Não tiro a razão de quem vota. Não tiro a razão de ninguém. Aliás, não tomo partido e por isso conservo todos os meus amigos. Acredito, sim, nos movimentos sociais. Nos jovens, que lutam por seus direitos por outros meios que não só esses da democracia eleitoral. Porém não tenho ilusão. Não verei luz alguma ao final do túnel no tempo de vida que me resta. Creio sim, no povo brasileiro.  

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