Diário do Pina

A Lapinha de tia Lilía – 6 de janeiro de 2021,

Dia de Reis.

Dia do presépio sair de cena.

Na lapinha de tia Lilía

Um caco de espelho servia de lago, rodeado de areia.

Os bichos se multiplicavam a cada ano.

O bafo quente da vaquinha no pescoço do Menino Deus.

Quando tia Lilía morreu,

A lapinha já ocupava todo o tampo da mesa

Na sala de visitas.

Estrela d’Alva – 6 de janeiro de 2021

4 horas. A Estrela da Manhã sozinha no céu. Ela na mesa, com a janela escancarada à noite. O mar ainda é só murmúrio. Brilhas solitária, anunciando o dia, porém já sabes que teu palco acaba quando ele, o dia, despontar, empurrado pelo astro rei. Quando este adentrar o palco, já terás sumido às trevas da noite, que é a tua verdadeira morada.

            Ela queria ter o poder de escrever contemplando teu brilho, sem carecer de luz elétrica nem de desviar os olhos para a mão e o caderno. Escrever pelo tato e não perder um só minuto de tua metamorfose.

            4:35. A Estrela da Manhã continua impávida colosso, enquanto o sol, seu inimigo voraz, já abriu um buraco nas nuvens negras. Tímido, em formato de uma árvore, fosse desenhada por um menino de três anos. O alaranjado ainda não aparece, se prenuncia indeciso. 4:40, o mesmo cor de laranja esmaecido rasga uma nesga horizontal mais abaixo, agora sim, deixando entrever a barra do dia entre o céu e o oceano. Até então, do mar, só o murmúrio. 4:41 e tu, Estrela D’Alva, principias a tua saída, escondida atrás das cortinas de uma nuvem escura. A nuvem passa, mas te deixa menos brilhante.

            4:45, a mulher continua escrevendo, agora, com a luz elétrica apagada. Sai a primeira jangada. A brisa está mais forte, talvez chova em alguma hora da manhã. 4:50. Cada vez que ela baixa a vista para escrever, teme já tenhas ido embora. Pois agora, vejo-te sumindo devagar, voltando à noite. Até há pouco, enganavas aos expectadores, que pensavam ser o clarão que principiava a refulgir do mar, reflexos de tua luz. Mas logo foste desmascarada pelo intruso sol, que se mostrou em formato de árvore tosca. E tiveste que ceder terreno. Não é fácil a uma estrela, ainda mais tu, fulgurante, ciosa de tua beleza, ceder lugar ao sol. Mas a Estrela Dalva sabia bem do seu destino: todos os dias, incansavelmente, caminhar em longa viagem da janela da Mulher do Sétimo Andar para o Japão.

4:53. No que aquela mulher tirou de ti o olhar para ver as horas, saístes à francesa. Todos os dias é a mesma coisa. Aproveitas qualquer distração dela para sumires sem dizer adeus. 4:55. Pelo visto, o sol vai chegar atrasado. Sai a segunda jangada. E o que a Mulher do Sétimo Andar queria mesmo era ter ido naquela jangada para o Alto Mar, onde só o céu, o oceano, e o murmúrio das ondas.

5:15. O astro rei se digna a aparecer. Quinze minutos de atraso. Mais um minuto, você perderia o ponto e eu não estaria mais aqui te esperando.

Velha – 07 de janeiro de 2021

Ser velho é achar melhor escrever no caderno do que no computador. É ver uma criancinha de seis anos, com um aparelho de celular na mão, saber mais do que nós. É passar mais tempo cuidando do corpo – o estômago, a pele, o coração, o intestino, a boca…

            Isso tudo pensava a Mulher do Sétimo Andar, enquanto cumpria uma rotina sentada em frente ao espelho da bancada do banheiro. Preparava-se para sair a caminhar no calçadão ou na areia da praia, a depender dos caprichos da maré. Acordara ainda escuro, fora ao banheiro, abrira as cortinas da janela do quarto. Viu a Estrela da Manhã anunciando a Aurora. Só então olhou o relógio: 4:35. Hora de principiar os preparativos para a caminhada, com o mesmo espírito de um soldado que despertasse em campo de batalha.

            Na bancada de mármore do banheiro está o filtro. Bebe o primeiro caneco d’água, dos muitos desde o amanhecer. O sabor da água fresca de Nosso Senhor, que sempre ela imagina sendo tomada nas mãos em concha, de uma bica de água mineral.  

Na bancada estão também os preparativos para a diária batalha. Primeiro, escovar os dentes, para tirar o mingau dos anjos da noite que vieram alimentar seus sonhos. Depois, um spray de cuspe artificial, docinho, bom, pois velhos produzem menos saliva e isso não é bom para a saúde dos dentes nem da gengiva.

            Como boa aluna, segue à risca as recomendações de cada especialista que cuida de seu corpo. Alguns, como a dentista, são verdadeiros tiranos. A fazer tudo o que recomenda, meu Deus, quanto tempo e quanto dinheiro! Mas ela faz tudo, não consegue desobedecer. Também porque sabe que a vida, a partir de uma certa idade, é como andar de bicicleta: se parar, cai.

            E os olhos? Como pedem cuidados ao amanhecer! O rosto já está lavado, mas carece limpar de novo os olhinhos com um shampoozinho especial, como fossem dois bebês gêmeos. E o colírio. E o protetor solar no rosto.

            Começa enfim a vestir o uniforme dos caminhantes. Vamos à luta, companheiros: tênis, chapéu, óculos, máscara para atravessar a linha de fronteira do elevador e da portaria do prédio.

            Entre caminhada, exercícios, alongamentos, terá vivido cerca de uma hora e meia de seu dia. Chegando de volta, mais um caneco d’água. Dessa vez, a cada gole, um gargarejo cantado. Receita da fonoaudióloga. Percebe que escolhe melodias antigas, como a refazer o tempo do rádio. Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Como sempre foram criativos os publicitários! Uma melodia fácil de decorar, com uma escalação musical perfeita para exercitar as cordas vocais. O cravo, brigou com a rosa… Atirei o pai no ga to, to… Depois o banho, os cremes para não deixar a pele ressecada, água de alfazema para ficar cheirosa, lá se vai mais meia hora, quarenta minutos. E o café da manhã? Ah, senhores, essa é A refeição do dia. Hora de ouvir a Sexta Sinfonia de Beethoven, enquanto vigia o chá no fogo, descasca as frutas, prepara o suco, torra o pão, frita o ovo, corta uma boa talhada de requeijão mineiro para acompanhar o mamão, banana amassada com um pouquinho de leite, mel de abelha, umas bolachas duras esfareladas e bem misturadas com a banana, o leite e o mel, quase uma torta, em cima da qual, aveia em flocos. (Os meninos, quando pequenos, botavam olho comprido nesse prato de banana amassada, que, para ela, era um vestígio das férias na casa dos avós. Ela ria, tomava do garfo, traçava uma linha dividindo a porção por três: é um Tratado de Tordesilhas, cada cá coma a sua parte… Hoje tem Tordesilhas, mãe?). E queijo de coalho frito para acompanhar rodelas de inhame fumegando, derretendo a manteiga por cima. Ou um cuscuz, em cima do qual a manteiga se derrete mais ainda, ensopado com leite quente de uma leiteira de louça branca. Ou, quem sabe, uma Cartola? Às vezes, pãezinhos de queijo cortados ao meio, torrados na chapa, com geleia francesa de laranja e gengibre por cima, para acompanhar o suco, onde a beterraba não deixa nenhuma folha ou fruta aparecer, sabendo-se ela a cor mais poderosa.

            Não, leitores, não é tudo isso o café da manhã da Mulher do Sétimo Andar. Varia com as marés de sua fome, com os caprichos da natureza que chega à feirinha orgânica…

            Satisfeita da primeira refeição (segue à risca os ensinamentos do Presidente Lula: a todo brasileiro, três refeições diárias), enquanto lava a louça, pensa, mas como eu ainda tinha tempo para trabalhar? Riu sozinha. Você correu muito, moça. Era fazer pesquisa, dar aulas… Nunca parava de estudar. Acabado o semestre, as férias para preparar o programa do curso seguinte. E foi tudo ao mesmo tempo, trabalho, filhos, escola dos meninos… A energia daquela mulher jovem parece que espinhava quanto mais a vida pedia dela.

            E agora? Agora ela saúda o sol a cada Aurora, espia o colorido esmeralda de seu pedaço de Oceano Atlântico, e agradece a Deus por mais um dia de vida. Pela vida que lhe é tão pródiga.

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