Conto

Cumplicidade – 17 de janeiro de 2021

O apelido carinhoso não melhorava a comparação de Severina com as irmãs, saídas à mãe, de pele clara e cabelo bom. Ela puxara ao pai, era a pretinha. Em menina, a mãe, dona Cícera, dedicou-lhe atenções especiais. “Entra pra dentro, Dida, pra não perder essa corzinha firme”.

A irmã mais velha se casou em três dias de festa. Muito forró, fogueira, buxada, bebidas à farta. O fazendeiro carecia mostrar riqueza. Dois meses depois, veio a indesejada de repente e ele morreu, deixando dívidas. Venderam tudo. Com a ajuda do genro, vieram morar num beco no Curado, um bairro que não parava de crescer. A irmã do meio já não se casou.  Amigou-se com um homem pai de família e foi morar longe. No Curado, ficaram somente as duas.

Do Riacho das Almas para o Recife, Ciça trouxe apenas o santuário, que colocou numa mesa à entrada da porta da pequena sala. Nesse santuário, havia uma imagem de Padre Cícero, um quadro com o Sagrado Coração de Jesus, e uma imagem de Oxum segurando o espelho numa mão e o leque na outra. Ali também uns retratos esmaecidos do pai e da mãe dela. Nunca foi dormir sem antes fazer as orações e deixar acesa uma vela de sete dias. Sim, trouxe também a penteadeira de seu quarto, com o banquinho onde costumava se sentar para Dida fazer sua bela trança.

Nas primeiras noites, com medo dos barulhos da rua, pois seu sono sempre fora embalado por cantorias de sapos, rãs e grilos, Ciça acordou no meio da madrugada. Saiu do quarto pé ante pé para não acordar Dida, e se sentou na cadeira em frente ao altar para rezar o terço. Se acalmava. Na segunda noite, ao chegar na sala, lá estava Dida, com o mesmo medo. Foi nesse dia, talvez, que as duas, sem palavras, selaram a cumplicidade de uma vida.

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Ciça se olhou no espelho. Olhos castanhos de mel, cabelos negros, cacheados, abaixo dos ombros. Apareciam os primeiros fios prateados. Os cabelos eram seu encanto. Se viu solteira, moça bonita, uma trança pendendo da cabeça por sobre o ombro direito. Dida acabara de fazer a trança da mãe. Ciça olhou para a filha pelo espelho e teve pena dela.

– Vai buscar a faixa para eu fazer um turbante de Oxum na tua cabeça, Dida. Assim a gente pelo menos esconde esses cabelos.

Depois de prontas, olhando-se e rindo em frente ao espelho comprido da penteadeira, Dida não sabia ainda para que estavam assim vestidas, como fossem a uma festa às dez horas da manhã.

Tomaram o ônibus para o Centro da Cidade. Caminharam debaixo do sol quente, e a mãe já não cuidava mais em proteger a pele da filha. Fosse preta. Pensava na sogra, uma mulher que, já velha e doente, viveu na casa do filho, com a nora e as netas, até morrer. Fazia rendas de bilro numa almofada. Só a mim, contava de sua vida amorosa, cada filho de um pai. E não era negra? Filha de Oxum, sim senhora. Dida é feia. Quem sabe tem o corpo fogoso da avó?

Ao descerem do ônibus, andaram na direção do rio. Atravessaram a ponte Maurício de Nassau, seguiram pela calçada do Cais de Apolo para o lado esquerdo, e foram dar na ponte Buarque de Macedo. Retornaram por essa ponte.

– Eita riozão de meu Deus! Exclamou a mãe. Não sabia que ali, naquele caminhar do rio de largas margens, às águas do Capibaribe já se haviam juntado, em núpcias, às vésperas dele se entregar ao mar, as do rio Beberibe, recém-chegado de Olinda. O ponto de encontro dos dois era atrás do Palácio do Campo das Princesas.

Mãe e filha caminhavam à toa. A fome da hora do almoço apertando. Mesmo assim, fizeram uma parada na balaustrada da ponte para apreciar o rio apressado.

– E aquele Ipojuca em tempo de Seca, heim mãe? Se alembra? Eita riozão de meu Deus, esse aqui!

Depois de atravessarem a ponte Buarque de Macedo, andaram pela calçada da Praça da República. Ainda com ar de espanto e admiração, Dida mostrou, olhando no meio da praça,

– Espia o tamanho daquele pé de pau, mãe!

Na rua do Imperador, continuavam especulando a rua, o povo andando apressado, com a cara de quem estava caçando lugar para o de comer. Passaram por um ajuntado de maltrapilhos parados defronte de uma igreja, e viram que, de dentro dessa igreja, saiam pessoas mais ou menos: vestidas com bermudas, bonés na cabeça, e falando uns com os outros do altar de ouro. Quiseram entrar também para apreciar aquela capela com o altar de ouro, mas logo veio um homem lá de dentro e fechou a porta.

– Olhe, Dida, aprenda: é melhor pedir esmola do que viver de aposentadoria. A pessoa que recebe do governo é muito cobiçada. Pode arranjar até casamento, só por interesse e para dar trabalho e aborrecimento. A pessoa aposentada nunca mais terá sossego nessa vida. Sempre vai aparecer gente mais precisada. Não vê lá no beco aonde a gente mora? É muita precisão no mundo.

Entraram num restaurante Serf-Service. Sentaram-se na única mesa vazia e viram as travessas cheias de comida. Ciça atentou para o moço sozinho da mesa ao lado, espiando com um rabo de olho o turbante de Dida.

– O moço paga uma sopa pra nós?

Ele não estava vestido mais ou menos, igual aos que saíam da Capela Dourada, mas com camisa abotoada na frente, calça comprida por cima da camisa, cinto e chaveiro. O mulato mostrou a carreira dos dentes brancos quando sorriu para Ciça, e mandou elas se servirem à vontade. Dida espiou para ele desconfiada.

– Mas quando o senhor diz à vontade, pode comer de tudo o que está nessas bandejas?

O homem apenas meneou a cabeça em aprovação, ainda mostrando os dentes brancos. Depois, as duas satisfeitas, chamou-as para um passeio de carro. Caminharam um bom pedaço pela rua do Imperador, passaram pela praça Dezessete (onde havia outra Igreja, que em dezembro de 1968 havia sido palco de muita pancadaria de policiais, no lombo dos estudantes que ali rezavam uma missa pela alma de Edson Luís de Lima Souto), ele andando na frente e as duas, Dida de braço dado com a mãe, seguindo-o rua a fora, vez em quando olhando uma para a outra e se rindo baixinho. As duas obedeciam ao homem, como atrizes estreantes ao diretor de uma peça de teatro, da qual não sabiam o enredo. Riam. Porém baixinho, uma olhando a outra, sentindo o pulsar da vida e um cheiro de manga espada do tabuleiro de um vendedor ambulante.

Quando chegaram ao Cais de Santa Rita, onde estava estacionado o carro velho, ele abriu a porta da frente para a mãe e a de trás para a filha. Andaram de carro até se afastar das ruas. Um vento quente entrava pelas janelas abertas e jogava a trança de Ciça para trás. Parou o carro em frente a um lixão do tamanho de um monte, um que havia perto do sítio onde elas moravam em Riacho das Almas. Nunca haviam visto tanto lixo amontoado. O moço abriu a porta para a mãe descer e disse à filha, “Você espere aí dentro”. Foi andando na frente, Ciça atrás. No lixão, catou uma folha de papelão grande. Seguiu em frente e forrou um recanto mais afastado dos olhos da moça e de quem passasse na pista.

Ao voltar ao carro, disse a Dida, “Você não carece vir comigo. Já fiquei satisfeito com a sua mãe de boas risadas”.

As duas começavam a ser reconhecidas nos restaurantes baratos do centro da cidade. De outra feita, foram com um homem mais novo do que o mulato do lixão. Era mais branco de cor, cabelo pixaim cortado à escovinha, cheirando a perfume de feira. Pagou uma canja de galinha para cada uma. E depois do almoço levou-as de ônibus para a casa dele, nos confins do bairro de Linha do Tiro. A cada ponto de ônibus, o cobrador gritava para os que esperavam, batendo forte na lataria de fora, “Alto de Santa Terezinha, Bacurau, Alto do Rosário, Dois Unidos, Linha do Tiro”. E aos que entravam, “Passando para o meio do carro”.

Viajaram o percurso todo em pé, o moço encostado atrás de Dida. Desceram quase defronte ao casebre onde ele morava. Abriu a porta, entraram, mandou a mãe ficar esperando sentada na sala e levou a filha para o quarto. A mãe esperando, esperando.

Dida saiu de lá arrumando os cabelos desgrenhados, com cara de espanto, e ouviu o moço falar, “Agora é a tua vez, velha”. Ela cochichou no ouvido da mãe, rápido como quem rouba, “Vai não, mãe. Ele maltrata. Dói”. Escapuliram pela porta correndo em disparada, o rapaz nuzinho em pelo, ainda atônito. Pegaram um ônibus que acabara de parar no ponto, sentaram-se no mesmo banco, e se deliciaram com a brisa que entrava pela janela aberta. O sorriso de Ciça acalmava Dida. Ciça era risonha por natureza. No caminho, viram uma igreja de crente e ali esbarraram. Distribuíam roupas usadas. Pegaram um saco cheio e voltaram para casa.

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