Parque da Jaqueira

Tânia espia o céu em lilases. Está no escritório, sentada à mesa de trabalho do marido. Às três e meia da madrugada, pusera um xale amarelo por sobre a camisola de cambraia branca, hora em que principiou uma chuva intermitente e um friozinho desconhecido no verão do Recife. A chuva lhe trouxera um cheiro de amores perfeitos, de delicadas florzinhas roxas escondidos entre as folhagens de sua infância. Já passa das cinco horas e o sol não dá mostras de que vai aparecer tão cedo. Ela não pregara os olhos por toda a noite, os ouvidos atentos a qualquer barulho do velho elevador.

Tânia e Romualdo moram em confortável apartamento com vista para o Parque da Jaqueira. O melhor ambiente da casa é o escritório, defronte ao parque. Nesse momento, ela sobrevoa com um olhar distante a copa de árvores que conhece bem, uma a uma, de suas caminhadas. A cor de laranja das flores do Flamboyant está esmaecida pela sombria madrugada.

Àquela hora, as luzes da noite ainda perduram acesas no parque. Falta chegar o sol para manda-las descansar. Pela quinta vez, Tânia se levanta e vai até a cozinha pegar mais um copo d’água do filtro e uma xícara de café da garrafa térmica. Pensa em coar um novo, mas não, correria o risco de não ouvir o barulho arrastado do elevador, que está parado no quinto andar, onde ela mora. Durante a noite insone, sentira o sobressalto desse barulho por algumas vezes, não muitas. O predinho antigo tem apenas cinco andares. Por fora, uma caixa de sapatos, excrescência no meio dos luxuosos edifícios de apartamentos que povoam a rua, onde a privilegiada vista. De que adiantou Romualdo ter gastado uma fortuna na reforma do apartamento, dentro desse prédio velho? Ouvira o último ruído do elevador à meia noite. 

Com as costas encurvadas, os olhos caídos, acabara de ler o último dos cinco gordos cadernos escritos com a letra de Romualdo, quando ouviu o primeiro roncar do dia dos motores cansados do elevador. Correu a arrumar toda a papelada de volta na gaveta, que naquele dia, único, ficara esquecida sem a tranca da chave. Voltou a sentar na poltrona. O abajur compunha, junto com aquela, uma cena de filme francês. Por que será que os diretores franceses gostam tanto de cenários com poltrona confortável, iluminada por abajur de pé, onde alguém lê atentamente em noite outonal? Tânia nada lia. Olhava as letras de um livro aberto ao colo.

Ainda não é o marido voltando da noite. Apenas o zelador do prédio colocando o jornal por debaixo da porta do hall de entrada.

Da poltrona, Tânia já não volta para a gaveta, que deixou arrumada do mesmo modo como a encontrara: os cadernos empilhados dentro de uma meticulosa ordem, do mais antigo para o atual, este escrito pela metade. Até então, a chave se justificou por conter documentos de pacientes – segredos tão indevassáveis como as confissões a um padre.

Pousou os contos de Machado de Assis na mesinha redonda ao lado da poltrona e do abajur. O marcador do livro não se movera da mesma página, desde quando o tomara às mãos pela primeira vez. Desde então, o mesmo gesto, a cada ruído assustador do velho elevador, até se certificar que não era ainda o marido, e voltar à leitura compulsiva dos cadernos.

Tânia é uma mulher ainda bonita aos cinquenta e dois anos. Já não tem o viço da pele e dos cabelos louros de quando se casou com Romualdo, o mais cobiçado da turma, há trinta anos. Mas pela firmeza do seu andar caminhando no parque, dir-se-ia uma mulher de trinta. Quando sai do escritório, cruza a saleta de televisão, a sala de jantar, e, exausta, chega ao quarto, com passos lentos e arrastados, semelhava uma velha de setenta.

Vai direto para o banheiro. Abre a torneira de água quente da banheira, tira do armário alguns sais cheirosos. Por que não tomar, antes do banho, um café novo com pão e manteiga? Não. A boca tem gosto de fel e o estômago está embrulhado em fogo. Muito café velho uma noite inteira, queria o que? Antes de escovar os dentes, olha-se no espelho. Vê um rosto com olheiras, um vinco no meio da testa realçando um desgosto. Enquanto escova os dentes, a ira crava fundo a sua alma. Porém a expressão no rosto é agora encoberta pelo vapor no espelho. Corre para fechar a torneira de água quente e abrir a de água fria, até atingir a temperatura morninha desejada.

Está imersa em espumas, olhando para o teto branco. Os pensamentos insistem em continuar nos diários do marido. Desconfiava de uma. Eram duas. Com ela, três. Vira a foto de uma delas. Moça nova. Morena. Comparava-se. Na idade dela, eu era mais bonita. A facada que doeu mais fundo, contudo, foi não saber-se a matriz. Somos todas filiais. Esse homem nunca soube o que é amar. Ficou preso à saia da mãe, defendendo-a da tirania do pai. A matriz, na verdade, não passa de uma quimera, uma fantasia de menino, a renovar-se em cada aventura.

Faz um esforço para apagar aquelas páginas de sua mente, como quem apaga uma lição que copiou errada, e só resta a última folha do caderno para escrever a lição certa. Os pensamentos agora voam para o parque da Jaqueira, conduzidos por ela como quem conduz um cão teimoso que insiste em cavar o chão. Apagar tudo o que leu em uma noite de pesadelo. Foi só um pesadelo. Daqui a pouco o sol aparece e vai iluminar a cor laranja das flores do Flamboyant.

No chão do banheiro, escorre, na direção do ralo, um fio de água que escapara da banheira muito cheia. Nessa hora, Tânia ouve o marido abrindo a porta do hall de entrada do apartamento. Escuta seus passos.

– Olá, querida. Já desperta a essa hora? Caiu da cama?

Tânia sequer olha na direção dele. Acena com o braço levantado, e continua entregue a seus pensamentos, que voltam a ser tão cinzalilás como estava, ainda há pouco, a aurora do Parque da Janqueira. Romualdo abre a ducha do chuveiro, no box junto à banheira, e o vapor embaça novamente o vidro. Dali ele sai para o quarto enrolado com a toalha na cintura. Quando Tânia deixa finalmente a banheira vestida no roupão branco e felpudo, o marido já roncava, quase tão alto quanto o velho elevador. Vai até o escritório, e as flores cor de laranja do Flamboyant, com restos de água das chuvas, brilham à luz do sol.

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