Nova paixão

Durante a longa quarentena, todos nós temos convivido intimamente com nossa casa. Poder-se-ia dizer, quase: nos casamos com ela. Mas uma casa não é a mesma para cada pessoa que nela habita, semelhando pai e mãe, que na foto são os mesmos, mas, na vida, cada filho os sabe como pais diferentes. Cada um tem seu estar na casa. Você mesmo, caro leitor, qual o lugar preferido de sua casa?

A Mulher do Sétimo Andar pensa isso, ao colocar o lixo no espaço comum aos quatro apartamentos do andar, o hall das escadas. A vizinha está na cozinha, com a porta que dá para o corredor semiaberta, escorada com uma almofadinha de chão. Ao passar com o saco de lixo na mão, a Mulher do Sétimo Andar não a vê, mas ouve o som da televisão transmitindo novela. Ela, o marido e os dois filhos, fazem as refeições nesse espaço da casa, com vista para os prédios ao lado. O espaço de entrada e saída do apartamento, para eles, é a cozinha. Por isso usam mais o elevador de serviço, e não o social.

Já a Mulher do Sétimo Andar só frequenta a cozinha enquanto prepara as refeições. Prefere ter o trabalho de levar a comida pronta para a mesa da sala de jantar, da qual pode espiar o oceano, ouvindo dele, quando os motores dos automóveis dão trégua, o incessante murmurar. Melhor ainda quando, sentada à mesa, ser servida pela empregada. Mas esse regalo ela só desfruta às sextas feiras.

Na verdade, durante a longa quarentena, a Mulher do Sétimo Andar não apenas tem convivido intimamente com sua casa. Vou contar em segredo: acho que ela se apaixonou pela sua casa. Sozinha, sem ter com quem compartilhar a paixão que faz parte de sua natureza, apaixonou-se pelo apartamento. Descobriu dele cada recanto. Refez espaços. Livrou-se de guardados inúteis. Apropriou-se de lugares arrumados até então para receber visitas. Sem visitas, a esteira de palha de bananeira (comprada no Mercado de São José por quinze reais), sobre a qual faz os exercícios, saiu do quarto e foi morar no melhor lugar da casa, a varanda. Varanda, pode-se dizer, virtual, pois, desde que veio morar no Recife, em 2007, reformou o apartamento por inteiro e essa varanda incorporou-se à sala.

Depois de quase um ano de quarentena, a Mulher do Sétimo Andar aprendeu qual a rotação do sol em torno de suas janelas. Colocou-o a seu serviço, e não a Terra a girar obediente em volta dele. Observou que o sol, no seu balanço de um lado para o outro do oceano, tem o tempo certo, segundo as estações do ano, para espiar cada parede da casa.

De madrugada, logo brota do mar, alcança a última parede, na cozinha. Abre a geladeira sem cerimônia e toma um copo d’água bem gelada. Vai queimar as almofadas do sofá? Mas ficam tão bonitas, em suas cores em verdes, marrons e amarelos… dourados. Só se salvam os quadros. Estes sim, há que proteger dos raios solares, mais do que protege a pele do corpo. Pois, como pensava Goethe, a arte é maior, muito maior, do que o curto espaço de nossas existências na terra.

Em pleno fevereiro carnavalesco, o sol entra na sala dando os bons dias à mulher de Di Cavalcanti, recostada num canapé, vestida no corpo e na cabeça com tecido estampado em ocre/vermelho, e, para sempre, aprisionada na mesma lânguida e sensual posição. Enquanto se espreguiça no mar, morto de sono, vem beijar a mulata de Di Cavalcanti. E assegura à dona da casa,

– Fique tranquila, esse beijinho matinal não vai tirar dela nenhuma cor. Mas, por favor, não me prive desse beijo com uma maldita cortina.

A Mulher do Sétimo Andar conhece uma pessoa, por exemplo (aqui ela não pode declinar o nome, mas ele certamente botará a carapuça na cabeça quando ler isso), que, com essa mesma vizinhança repousante da natureza, tem seu lugar preferido no quarto/escritório, de costas para o mar, sem dele receber a brisa (que no Recife, todo mundo sabe, é a melhor do mundo), e sim o frio artificial do ar condicionado. Como diz Paulo Vanzolini, “mulher que não ri, não precisa dente”.

– Não desconversa, mulher. Qual o teu espaço preferido na casa?

– A rede da varanda, ora.

Na rede, a Mulher do Sétimo Andar lê. Dali, a partir das quatro, cinco horas da tarde, aprecia o crepúsculo, quando a rápida mudança das cores do dia nunca é a mesma. (Desculpem-me, queridos pintores, mas essas nuances de cores, só Deus.) Já a aurora, o outro quadro pintado em tons diversos de azul, branco, esmeralda… pede que ela se entregue às areias desertas, ao infinito oceano. Atravessa o muro da civilização, e chega à beira mar, onde o murmúrio das águas e dos ventos emudece os ferozes motores da avenida. Para ela, esse é um milagre de dimensões tão grandes quanto o da multiplicação dos pães.

Por vezes, antes de sair para caminhar ao alvorecer, senta-se no seu segundo espaço preferido: a mesa do escritório. Nesta, passa horas perdidas, desde a noite escura da madrugada, até se dar conta de que já não carece da luz elétrica porque o sol se anuncia clareando o mundo. Somente uma coisa lhe desagrada nesse espaço: quando o computador resolve puxar conversa mole, logo é acordado para trabalhar.

– Tem atualizações prontas. Quer instalar agora? Daqui a uma hora? Lembro depois?

Não apresenta a única opção que ela gostaria:

– Não, por favor, não quero nenhuma atualização, não uso nem dez por cento dos recursos que você me oferece. Por favor, não me ofereça nada, absolutamente nada. Apenas deixe-me chegar ao texto que ficou na tela desde ontem.

Foi então que a Mulher do Sétimo Andar ouviu um zum zum dos outros espaços da casa, que se encheram de ciúmes. O quarto amuou-se.

– É. Mas quando você está cansada de um dia todo andando nessa casa de um lado para o outro, preparando comida, na faina incansável de tantos livros na fila esperando, tantas ideias a saírem para o caderno ou diretamente para a tela do computador, quem é que te acolhe de braços abertos? É aqui na cama onde você sonha: sai do mundo das obrigações, e deixa que o anjo da noite venha te fazer companhia. Ah, nessa cama…

Ela sorri, concedendo-lhe o terceiro lugar. A cozinha, por sua vez, protestou.

– Escuta, mulher, você gastou um dinheirão para me deixar novinha em folha, com esses lindos armários, não mais um fogão e sim um cooktop, um forno elevado para não precisares te abaixar. Todinha adaptada para você me usar confortavelmente, e, além disso, me deixou como um palco iluminado, tal e qual a canção imortalizada na voz de Elizeth Cardoso. Agora nem se lembra de mim?

– Tá certo – responde-lhe a dona – fique com o quarto lugar.

O quarto de empregada, tão humildemente servil, nada reclamou. Sentia-se bastante honrado com visitinhas ocasionais da dona da casa, para consultar livros e papéis fora de uso. Porém os livros, ocupando a estante de toda uma parede, estes sim, registraram queixa. Sentiam-se diminuídos, por compartilharem o mesmo espaço com um armário de material de limpeza, rodos, vassouras, e grandes caixas com o almoxarifado da casa.

Apenas o quarto de visitas nada disse. (Falta nele, talvez, como nos hotéis, um formulário especial a ser preenchido pelos hóspedes.) Pois, até do lavabo a Mulher do Sétimo andar se apropriou na quarentena, sendo lá, o único banheiro da casa com vista para o mar, o melhor lugar onde lavar as mãos ao chegar da rua.

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