Diadorim é a minha neblina…

. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina…

. Por êsses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração…

. De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas fôlhas, saíam em giro as tôdas as côres de borboletas. (…) Beiras nascentes do Urucúia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revorêdo, o sací-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rôla-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite. (…) Tardinha que enche as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que fecham o dia: o papa-banana, o azulêjo, a garricha-do-brejo, o suirirí, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro… Eu estava todo o tempo quase com Diadorim.

. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Maripôsas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma bris-brisa. O ianso do vento revinha com cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados.

. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a bôca; mas era um delém que me tirava para êle – o irremediável extenso da vida.

. E eu – mal de não me consentir em nenhum afirmar das docemente coisas que são feias – eu me esqueci de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgôsto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que o coração meu podia mais. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz.

. (…) a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dêle para sempre em tôdas essas quisquilhas da natureza.

***

. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refrêsco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pelo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo… Nhorinhá. Depois ela me deu de presente uma prêsa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi.

. Nhorinhá, gôsto bom ficado em meus olhos e minha boca.

***

. As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim. (…) “Já sei que você esteve com a môça filha dela…” (…) Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli êsses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontudo entre as duas palmas. (…) Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava: “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai…”

. Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surprêsa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. (…) Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.

. Ouvido meu retorcia a voz dêle. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar tôdas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.

. Noite essa, o tanto-tanto que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dêle – os gostares…

. Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado: nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Ôi, Suindara! – linda côr…

***

. Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. (…) Senti, modo meu de menino, que êle também se simpatizava a já comigo. (…) Olhei: aquêles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. (…) Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?

. “Você é valente, sempre?” – em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente…” E eu não tinha mêdo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória tôda – por isto foi que a estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

***

. Soflagrante, conheci. O môço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquêle do pôrto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, tôda a vida. E êle se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a bôca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoamento dêsses, a gente estatela e não entende; (…) O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isso também. E êle como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Êle se chamava o Reinaldo.

. Era o Menino do Pôrto, já expliquei. E desde que êle apareceu, môço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dêle, por lei nenhuma: podia?

. Era êle estar perto de mim, e nada me faltava. Era êle fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era êle estar por longe, e eu só nêle pensava.

. Os afetos. Doçura do olhar dêle me transformou os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. (…) Só um bom tocador de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo. (…) Era, era que eu gostava dêle. Gostava dêle quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites.

. “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que esconder mais não posso… Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. (…) o meu nome, verdadeiro, é Diadorim… Guarda êste meu segrêdo. Sempre, quando sòzinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo…”

. A amizade dêle, êle me dava. E amizade dada é amor.

. Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha dêle, me abastava aninhado.

***

. Tôda môça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais. (…) Ah, a flôr do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta branca, bôca cheirosa, o bafo de menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como êsse rio meu Urucúia vai se levar no mar.

. Cacei melhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha, disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no coração. (…) Não que eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de amor.

. Pensava nela. Às vezes menos, às vezes mais, consoante é da vida. (…) Mas Diadorim, por onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria. (…) Não fosse um, como eu, disse a Deus que êsse ente eu abraçava e beijava.

***

. O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de môça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da bôca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa môça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim… E tantos anos já se passaram.      

(Leitura até a página 152 da quarta edição, Livraria José Olympio Editôra, Rio de Janeiro, 1965)

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