Estórias, Histórias

Aquela moça tímida, magrinha, cabelos castanhos longos, estudante de Sociologia e Política, costumava frequentar a Livraria Imperatriz aos sábados. Foi lá que comprou, no ano de 1967, a quarta edição de Grande Sertão: Veredas, publicado pela Livraria José Olympio em 1965. Nos anos que se seguiram, principiou a leitura desse livro várias vezes. Nunca conseguia passar das primeiras páginas. 

O livro ficou anos e anos na estante. Atravessou o período de militância da moça, o mestrado, uma viagem do Recife para São Paulo, as atividades de ensino e pesquisa… Viu muito livro acadêmico passando na frente dele na fila. Até que chegou sua vez. E foi assim.

Na primavera de 1979, grávida de meu segundo filho, ganhei as estradas do Agreste de Pernambuco, onde fiz as entrevistas e observações para a tese de doutoramento. Lembro dessa pesquisa como dos melhores trabalhos de campo de minha vida. Gravador em punho, percorri, em um valente fusca, estradas e estradas de terra poeirentas. Era tempo de umbu maduro. Em cada casa visitada, a mesma ladainha, para não fazer desfeita com a cortesia dos donos da casa: “Cafezinho me dá azia, por causa da barriga. Mas se tiver umbuzada, aceito”. (A primeira vez que Pedro, pequenininho, viu na casa da avó uma terrina cheia de umbu, avançou naquela frutinha, a qual, menino paulistano, nunca vira antes, mas certamente da qual guardava o cheiro e o sabor, numa lembrança de seu tempo de peixinho nadando em águas calmas – ou turbulentas – do útero materno.)

Retomei a tese de doutorado ao voltar para São Paulo. No Cebrap, redigi um relatório para o órgão financiador da pesquisa. Entrava no oitavo mês de gravidez. Na hora do almoço, sozinha (pois me acanharia de tamanha gulodice na frente dos outros), ia a um restaurante chinês próximo à Alameda Campinas. Comia com gosto um prato que daria para dividir, sem dispensar a sobremesa. Ah, a fome das grávidas…

– Chega de nariz de cera, dona moça. Onde entra o Grande Sertão de Guimarães Rosa nessa história?

– Calma, meu leitor! Estamos chegando.

Um belo dia, tive uma ameaça de aborto, e fui obrigada a passar as últimas semanas antes do parto em repouso absoluto. Meu filho mais velho, com três anos, frequentava nessa época uma creche de meio período chamada Fralda Molhada. Presa na cama, tirei finalmente o livro da estante e passava minhas manhãs em companhia de João Guimarães Rosa. À tarde, Miguel trazia os brinquedos e espalhava pela minha cama e pelo chão do quarto. Quando ele dava uma folguinha, aos cuidados da empregada ou do pai, eu voltava ao livro. Essa primeira leitura foi inesquecível, pois, até então, eu não sabia de Diadorim moça e não rapaz. Vocês podem imaginar o quanto derramei de lágrimas ao final do livro, ao chegar à trágica descoberta?

Assentada a vida, retomei a tese. Deveria contratar um profissional para fazer a transcrição das fitas gravadas. Antes, principiei a ouvi-las para testar a qualidade da gravação. Foi então que se processou uma revolução na minha cabeça. Ouvir a fala de sitiantes, rendeiros, trabalhadores do campo, moradores de pontas de rua das pequenas cidades do interior, levou-me de volta à linguagem de Guimarães Rosa. Era como se eu estivesse lendo outras estórias com o mesmo linguajar de palavras, frases, expressões fora do vocabulário citadino, palavras bonitas, arcaicas, algumas ainda usadas em Portugal e que aqui foram preservadas em certas regiões do país. De mistura com sua grande erudição, que universo da língua portuguesa construíra aquele descobridor do Brasil!

Decidi então eu mesma fazer a transcrição das fitas. Um trabalhão! Mas valeu a pena. Tentei uma pontuação o mais próximo possível da entonação dos entrevistados, mantendo as palavras tal como pronunciadas.

Mais adiante, com o prazo de entrega da tese se esgotando, os meninos foram ficar aos cuidados da avó, que nessa época estava com outros netos e minha irmã numa casa de veraneio na praia de Maria Farinha. E eu fiquei, na gostosa companhia do maridinho, com o tempo todo para mim. Noites a dentro digitando na Olivetti praxis. Gráficos, tabelas, uma linguagem acadêmica. E as entrevistas?

Uma noite, relendo-as, escrevi uma estória, O Corumba. Ao entregar ao orientador os capítulos finais, deixei também com ele essa estória, ressalvando que poderia escrever outras, para entremear nos derradeiros capítulos da tese, como fossem ilustrações. Mas, insegura, adiantei que ele ficasse à vontade para opinar se valia a pena.

Na nossa última conversa, Juarez Brandão Lopes fez algumas observações sobre os capítulos entregues. Eu estava ansiosa, já achando que ele descartaria a ideia das estórias. Qual nada! Mineiro, leitor assíduo do conterrâneo, sorria, dizendo: “Mas isso é puro Guimarães Rosa!”. Sabíamos, tanto ele quanto eu, que aquela estorinha estava a léguas de distância da criação artística do grande mestre. Porém tive dele o necessário estímulo para continuar escrevendo tantas quantas pudesse dentro do prazo, que se esgotava dia a dia. Escrevi mais três, que estão hoje publicadas em Agreste, Agrestes. O Clandestino, O Mundo Todo Amarelo, Reforma Agrária do Agreste é São Paulo.

E demorei mais trinta e três anos para voltar a escrever estórias.

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