Diário do Pina – Terça feira, 6 de julho de 2021

Eram seis horas da manhã quando a Mulher do Sétimo Andar saiu de casa. O sol ainda se escondia entre nuvens escuras, que espinhavam a noite invernosa. Na portaria do prédio, principiava a troca de guardas da noite para o dia.

A maré estava enchendo, quando ela principiou a caminhar em direção a Brasília Teimosa. Pés descalços, segurando as sandálias na mão, máscara no bolso do short, andou pelas piscininhas que se formam do lado de cá dos arrecifes, até o Buraco da Velha. É uma caminhada curta, pouco mais de mil metros. Porém o peso da água em movimento aumenta o esforço das pernas, fortalecendo os músculos. Mas que ninguém se iluda: não é para isso (isso, como diz o evangelho segundo São Lucas, virá por acréscimo) que a Mulher do Sétimo Andar caminha, e sim pelo prazer de andar nas águas. Quase São Pedro, sobre as águas. Vai apreciando a areia desse fundo do mar rasinho, um deserto de Saara que a gente visse nas telas. Molha a mão direita e chupa, um por um, os dedos salgados com gosto bom de batismo. Se benze e joga um beijo ao fundo do mar, à morada de Iemanjá.

Os arrecifes seguram um mar raivoso. Com o tempo nublado do inverno, o sol demora a aparecer. As nuvens próximas ao oceano estão escuras. Mais acima, formam carneirinhos de lã muito branca, iluminados por fios de luz que conseguem ultrapassar a barreira das nuvens. O sol só vai aparecer pelas seis e meia, sem muito graça. Nessa época, misturada com rios açucareiros, a água do mar tem a cor do caldo de cana. As ondas do outro lado das pedras não dançam uma valsa de verão. No encontro com os arrecifes, parecem esmurrar um casco de navio.

“(…) o incessante vaivém dos rolos possantes e lisos das ondas que oscilavam lado a lado, encontravam-se com um marulhar, empurravam-se uns aos outros em direções inesperadas e de repente se dissolviam em cintilante espuma… (…) O mar dançava. As vagas não vinham de logo ali, redondas e uniformes em ordenadas fileiras, mas à luz pálida e tremulante o mar inteiro, a perder de vista, era rasgado, surrado, revirado, lambia, lançava ao alto gigantescas línguas pontudas, clamejantes, arremessava à beira de abismos espumantes silhuetas espinhentas e improváveis e, num jogo enlouquecido, parecia atirar pelos ares a espuma com a força de braços monstruosos. (Thomas Mann, Tonio Kroger).

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A família, os amigos, o trabalho, (o amor?), as leituras, uma réplica das revoltas estudantis de 1968, as mobilizações de 2021, o namoro, a prosa na boquinha da noite, o circo, a alegria, até a risada, a música, o fuxico, a tristeza… cabem num aparelhinho que pesa menos de meio quilo, inseparável do homem do século XXI.

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Naquela terça feira, a Mulher do Sétimo Andar cruzou com personagens da madrugada. Um rapaz muito magro, estatura média, vestindo uniforme de ginástica. Calça comprida azul marinho com listas verticais dos lados, camiseta sem mangas,  apanha sacos e copos de plástico que escaparam aos tratores da prefeitura na limpeza noturna. Sim, um ecologista amador. Só depois de cumprida a obrigação para com a preservação da natureza, inicia a corrida matinal. Imagino-o participando na São Silvestre.

            O outro é um homem a quem ela encontra sempre que passa pelas jangadas. Se conhecem sem nunca terem trocado palavras, a não ser o cordial bom dia. Ele não é pescador. É ajudante de terra dos jangadeiros que saem para a pesca nas madrugadas, e voltam sem horário definido, sempre antes do entardecer, quando novamente este homem estará a postos, pés descalços, bermuda surrada, peito nu tostado pelo sol, boné com aba para trás. Nos primeiros escritos desse Momentear, já foi motivo da crônica “O Lutador”, na qual ele conta fatos picantes de sua vida. A Mulher do Sétimo Andar nunca soube seu nome de pia, nunca o entrevistou, e esse apelido foi inventado por ela. Naquela terça feira, ele mais parecia um menino, catando iscas de pesca nas locas das pedras.

            Cruzou ainda com um jovem fazendo self no celular. Esse aparelhinho também serve para alimentar um narcisismo exacerbado no século XXI. Para esses Carregadores de Celular, a beleza da praia não é apreciada. Serve apenas como cenário para a fotografia dele próprio, que será postada nas redes sociais em tempo real.

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