(Essa crônica é dedicada às minhas amigas feministas)
A vida corria serena naquele Sertão de Minas Gerais. Até o dia em que Iô Liodoro trouxe Dona Lalinha para dentro de seu casarão do Buriti Bom.
O nome dela mesmo é Leandra. Casos. Como o acontecido ali mesmo, o da nora de iô Liodoro. Dona Lalinha – a das mais mimosas prendas – conforme se diz: moça-de-corte, dama do reino, sinhá de todo luxo – e linda em dengos, que nem se intentada a todo instante diante dos olhos da gente. Dona Lalinha. Mulher de iô Irvido. Tido quase ano que ela estava ali, no Buriti Bom. Iô LIodoro caçara a capital, tinha trazido Dona Lalinha. Iô Irvino fugido com outra. Isto era possível? Iô Irvino voltasse, era para encontrar Dona Lalinha, mas Dona Lalinha cuidada entre suas sedas e jóias, de cidade, sem desmerecer.
Iô Liodoro? O senhor ver um homem em mando, vê iô Liodoro. Ele tudo rege, sisudo, com grandeza. Aqui, confio ao senhor, por bem, com toda reserva: fraqueza dele é as mulheres… de tardinha, de noitinha, iô Liodoro tem cavalo arreado, sai, galopa, nada não diz. Tem vez, vem só de madruga. Iô Liodoro regressa a casa às vezes já no raiar das barras, esteve lavourando de amor a noite inteira. Esse homem é um poder, ele é de ferro! Dentro de casa, um justo, um profeta.
O Buriti-Grande – igual, sem rosto, podendo ser de pedra. Dominava o prado, o pasto, o Brejão, a mata negra à beira do rio, e sobrelevava, cerca, todo o buritizal. Não podia o vento desgrenhar-lhe a fronde, com rumor de engenho, e mal se prendia em seus cabelos, feito uma grande abelha. Seria mais cinza ou verde menos velho, segundo dividisse o forte do sol ou lambessem-no as chuvas. E, em noite clara, era espectral – um só osso, um nervo, músculo. Sua beleza montava, magnificava. Marcava obstáculo: um tinha que parar ali, momentos que fosse, por império.
Agora, maio, era mês do mais de florezinhas no chão, e nos arbustos. E o pau-doce, que dá ouro, repintado. Mas tinham passado por lá, com as lobeiras se oferecendo roxos. E a faveira cacheada festiva. E o pau-terra. – “Elas quiseram parada, em demorão…” Maria da Glória e Dona Lalinha. O pau-santo começando a florir: flores alvas, carnudas, cheirosas, mel-do-leite, com coroa amarela de estames. Colhiam daquelas flores, as mal abertas – que nem ovos cozidos, cortados pelo meio; as abertas todas: como ovo estrelado, clara e gema – Mulheres têm a idéia sem sossego… Mulher tira idéia é do corpo…
Do Brejão, miasmal, escorregoso, seu tijuco, seus lameiros, lagoas. Entre tudo, flores. A flor sai mais colorida e em mimo, de entre escuros paus, lôbregos; lesmas passeiam na pétala da orquídea. Do Brejão-do-Umbigo, garças convoavam. O brejo não tinha plantas com espinhos. Só largas folhas se empapando, combebendo, como trapos, e longos caules que se permutam flores para o amor. Aqueles ramos afundados se ungindo dum muco, para não se maltratarem quando o movimento da água uns contra os outros esfregava.
Dona Lalinha, tem mulheres de lideza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez. Iô Liodoro a trouxera; fora buscá-la. “A senhora vem, todos estão lhe esperando. Há de ser sempre minha filha, minhas outras filhas suas irmãs… Lá é sua a nossa casa.”
***
Correu para o quarto, ria sozinha, incontidamente. Depressa, como num jogo febril, tirou o vestido, vestiu as calças escuras, tão justas, que lhe realçavam as formas. Não o suéter cinzento, mas uma blusa, a que mais se abrisse, mais mostrasse. Nem tomou fôlego. Calçava os sapatos de pelica vermelha, bem esses, que tinham salto altíssimo e deixavam à vista a ponta-do-pé, as unhas coloridas de esmalte, como fruta ou flor. Daí, à penteadeira, se exagerou. Mais – assim a boca mais larga, para escândalo! Com o ruge e o batom, e o rímel, o lápis – o risco que alongava os olhos – ah, no senhor sertão, sabiam que isso existisse? Apanhou a cigarreira, o isqueiro minúsculo, que era uma jóia. Veio para a sala. Desse jeito o recebeu.
“Pois não, como o senhor, quer, então podemos viajar, dentro de uma semana…” – disse, sorrateira como só a fingida inocência o sabe ser. E esperou. Mas nada acontecia. Sentara-se diante dele, burlã, desenvolta, cruzara as pernas. Iô Liodoro não se assombrava, não vincara a testa, não arregalava os olhos. Tampouco esquivava encará-la. Um momento, ele olhou em torno, e disse: que, de qualquer jeito, convinha levar tudo o que dela fosse, para maior regalo, trens e roupagens; o número de malas e caixas não fazia conta. Seu tom, seu gesto, nele denunciavam um uso profundo, uma crença: a de que cada um devesse estar sempre rodeado do que era seu – pessoas e coisas. “Perdi um marido… e ganhei um sogro…” – gracejou, no outro dia, com a irmã, mais velha; a irmã louvava-a por ter concordado em partir com iô Liodoro.
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Passou-se a festa de natal, a festa de São João, Lalinha ia ficando.
E o mais – que foram esses dias curtos, que se seguiram, iam-se. Vazios de outras coisas, e com frios aumentados. Jogar a bisca com Iô Liodoro, a mesa se forrava com um grosso cobertor, os dedos palpando a lã do cobertor colhiam um suadir-se de leito bom e amplo sono, longo, longo. Sim, Lala, Leandra, suas mãos eram bonitas, moviam-se, volviam-se, alvamente empunhavam o feixe de cartas, os reis e condes e sotas, desdobrados em dois, intensas roupagens … o escarlate esmalte das unhas, tê-las tão cuidadas, ali no inútil do Buriti Bom, travava com um ressaibo quase de desafio.
Confirmava! Para eles, eu sou apenas o que não sou mais: a mulher de um marido que não mais tenho… E ela perdeu o acompanhamento do tempo: – Estou no sertão… No sertão, longe de tudo…” – se compadeceu. Notou, de repente: estava chorando. “Estou chorando é de raiva, é de ódio…” Que tinha vindo fazer ali, lugar de outros, tão trazida? Todos queriam que ela fosse uma coisa, insistentemente devolvida a quem a recusava? Abaixo, quase de o poder tocar com os dedos o pobre jardinzinho, atulhado, de suas flores dava o ar, das que desabrochar escolhem o escuro. Tinha – lembrou-se – a tirolira amarela, migalha de seca, um retalhinho de flor: essa obedecia de abrir-se exata no entreminuto das quatro da madrugada. – “É um relógio…” – diziam. Sabiam coisas demais, do tempo, dos bichos, de feitiços, das pessoas, das plantas – assim era o sertão. Davam-lhe medo.
Fechou a janela, mesmo no obstáculo do escuro caminhou, tateou pela cama. Deitada, uma das mãos estava sobre um seio, sentia o liso de seu corpo como se apalpasse um valor. Sabia-se bela, desejável. Assustava-a, qual se fosse a velhice, a insônia – aquela extensão sem nenhum tecido. Não, precisava de ir-se embora dali, voltar para a sua casa, para perto de suas amigas, na cidade… E ouvia. Ouviu. Era um rumor de cavaleiro chegando, estacara encostado aos pilares da varanda. Lidando com o animal. Desarreava. Tão tarde assim. Mas era iô Liodoro, retornando. Iria escutar-se os passos, quando viesse pelo corredor. Não ouviu, não ouvia. Iô Liodoro, infatigável no viver, voltando do amor de cada dia, como de um trabalho rude e bom. Aquele homem assentava bem com as árvores robustas, com os esteiões da casa. Ele estreitava a execução dos costumes, e não se baixava amesquim para o que de pequenino se desse.
Depois, ela esteve doente. Dos dias de gripe, veio-lhe a desgostosa fraqueza, pausa em pausa, aquela mesma impotência dela exigindo maior decisão. Grata todavia a tanto trato de carinhos – de Glorinha, Maria Behu, Tia Cló, de todos – pensou sério em ir-se embora. Não, não ficaria mais tempo ali, não queria completar um ano. E ria-se: ficar, como uma vaca permanecente nas pastagens – entre um tempo de chuvas e outro tempo de chuvas – de verde a verde… Logo em logo, avisaram-se as chuvas. Glorinha fez anos. Caíram as tanajuras. Deram fruta as jabuticabeiras. Com Tia Cló, ia-se ao cerrado, apanhar mangabas para doce.
Assim, e de repente, não era ali o Buriti Bom, com as árvores em pé, o céu sertanejo, a Casa – inabalável como um século –, o rio próximo, o movimento do gado, a gente, o Brejão-do-Umbigo e a Baixada do Buriti-Grande ao sul, e as matas de montanha pelo lado do norte?
Fazia tempo que cessara a cerração de águas. O tempo era claro, balançava-se o vir do frio. A camélia plantada por mão de Lalinha deu flor. Honrou-se o aniversário de Behu, e o de iô Liodoro, festejaram-se tão simples como sempre, tomava-se vinho-do-porto e do de buriti, perfumoso vinho óleo. As primeiras boiadas engordadas se enviaram. Mataram, rio adiante, duas onças-pretas. Passou-se a Semana-Santa.
***
Assim como as coisas do nada e nada se defurtam, para súbito acontecer, se saindo de muralhas de feltro; foi assim. Ela sentira sede – talvez não fosse bem sede, como recordar-se? Ela saíra do quarto, segurava o pequeno lampião, pouco maior que uma lamparina. Veio pelo corredor. Parara, já na sala de jantar. Pressentiu-o – olhou. Seus olhos para a porta. Soube-o, antes, sob o instante. A porta se abrir, de-bravo. Subitão, ele apareceu, saindo do quarto. O coração dela dera golpes. – “Boa noite, minha filha!” – iô liodoro disse. E tudo esteve tão natural e tranquilo, ela mesma não entendia mais seu tolo susto, e se admirava de tão rápido poder recobrar toda a calma. Ela estava de penhoar por sobre a fina camisola, calçava chinelinhos de salto. Lesta, sua mão endireitou o cabelo.
Iô liodoro todo vestido, e de botas, decerto as preocupações nem o tinham deixado pensar em dormir – ou ia sair, tão tarde? Tampouco teria acabado de chegar. Ele empunhava o lampião grande. Quereria alguma coisa. Seu dever de servir, Lalinha cumpria-o, de impulso; ofereceu-se para fazer café. Sentiu que devia mostrar-se desenvolta. “Não, minha filha. Vou tomar um restilo…” – ele respondeu manso, não quisesse acordar os demais da casa. Era curioso – Lalinha pensava – faz ano-e-meio que estou aqui, e nunca houve de me encontrar assim com iô Liodoro. Ele depusera o lampião grande na mesa, e ela o imitou, colocando bem perto o lampiãozinho. Desajeitava-se de como poder se portar. Não de menos ele apanhava no armário a garrafa e um cálice, se servia. Bebeu de costas para ela, foi um ligeiro gole – “Estou a gosto…” – disse, voltando-se. Fitou-a. Imprevistamente, caminhou para a cadeira de pano, sentou-se – “Não tem sono, minha filha? Senta, um pouco…” – pediu. Obediente, sentada em frente dele, ela estava mais alta. Ele se recostava, distendera as pernas. Precisava do conforto de uma companhia, precisava dela, Lalinha. Pobre iô Liodoro! Tudo tão inesperado, e ela queria ajudá-lo, de algum modo, queria sentir-se válida. Seu espírito se dividia em punhados de minutos. Conversavam.
Se podia dizer aquela fosse uma conversa – ele mal mencionava singelas coisas, nem perguntava; parecia precisar só de medir com uma palavra ou outra as porções de aliviado silêncio. E a satisfação que ela sentia: estava sendo prestimosa, acompanhava-o com sua insônia; e ele, via-o agora, era uma pessoa como as outras, sensível e carecido. Encaravam-se, sem cismas, era como se entre eles somente então estivesse nascendo uma amizade. Podia ser. Quanto tempo durou? Combatendo o silêncio, o monjolo, o monotom do monjolo; e os galos cantaram. Pausavam. Como se separaram, como se deram boa noite? Ela não atinaria dizer. Um deles se moveu na cadeira, o outro também, e estavam de pé, cada um receava estar já roubando do sono do outro. E Lalinha voltou para seu quarto, estava feliz, da felicidade mera e leve – a que não tem derredor nem colhe no futuro. Dormiu sendo boa.
A casa – vagarosa, protegida assim, Deus entrava pelas frinchas. À noite, tardava-lhe a barra do sono. Duas noites, desse modo.
***
À terceira noite…
E havia luz, na sala. Seria ele? Lalinha se ajeitou, resoluta. Pegara a lâmpada. Ia. Caminhou, queria ter o ar de quem não ia com intenção; fazia mal? Nada tinha a esconder, não trazia malícias.
Ele estava lá, na cadeira-de-pano, como da outra vez. Saudou-a com uma expressão de exata insurpresa, que acolhia-a melhor que um sorriso. – “Sem sono, minha filha?” Tinha a garrafa e o cálice, ali perto, no chão. Sentara-se, naturalmente, diante de iô Liodoro, na mesma cadeira. E tudo realizara de vezinha, tenuemente – como se temesse destruir um bom encanto. O que se sentia fruir, a mais, era o quieto agrado com que aquela noite recomeçara no ponto certo a anterior, como os momentos da vida sabiam bem emendar-se. Tudo? Não, de repente havia uma diferença, uma mudança no silêncio, ela percebia.
Notou, correita, quis duvidar, duvidou. Iô Liodoro saía de seu caráter? – ela pensava. Iô Liodoro, o peito extenso, os ombros, seu rosto, avermelhado vinhal. “Ele me espia com cobiça…” Seus olhos inteiravam-na.
– Você, tão delicadazinha, minha filha… Carece de tomar cautela com essa saúde…
Ele falou. E era um modo apenas de acariciá-la com as palavras. Ela sorriu, sorriuzinho. Estava com o penhoar, por cima da camisinha de rendas, vaporosa, de leite alva. Sabia-se bela. Gostaria de estar entre transparências de uma gaze. “Pobre iô Liodoro” pensou “ele precisa disso, de um pouco de beleza…” Sentia-se fitada, toda. Dele defendida ela se encontrava, como se ambos representassem apenas no plano esvaecente dum sonho. Aquela gula – e o compressivo respeito que o prendia – era um culto terrível. Sonhava-o? Despertaria? E, por um relance, imaginou: como prolongar aquela hora E como, depois, desfazerem-se do voluptuoso enlevo? Falavam mentirosamente. Os pobres assuntos garantiam a possibilidade do deleite, preservavam-no.
– “Pois… Assim tão linda, a gente mesmo acha, faz gosto…” – ele disse, não se acreditava que sua voz tanto pudesse se mitigar.
– “O senhor acha? De verdade?” – ela respondeu: se apressara em responder, dócil, queria que sua voz fosse uma continuação, mel se emendasse com a dele.
– “Linda!” – ele confirmou. E mudara o tom – oh, soube mudá-lo, hábil: dissera-o assim, como se fosse uma observação comum, sã e sem pique. Quem o inspirara? A fino, que desse modo o diálogo podia ser uma boa eternidade. Não, ela não ia permitir que aquelas palavras fenecessem:
– “O senhor acha? – Gosta?” – sorriu, queria ser flor, toda coqueteria sinuasse em sua voz: – “De cara? … Ou de corpo?… – completou; sorria meiga.
– “Tudo!…” E com a própria ênfase ele se dera coragem. Mas ela, sábia, alongava a meada:
– “A boca…? – perguntou.
– A boca… Todos os dentes bons, tão brancos, tão brilhando…
Sua admiração se dizia como a de uma criança. Lalinha descerrara o sorriso, exibia aqueles dentes, a pontinha da língua.
Riram juntos. E ele mesmo acrescentou:
– Os olhos…
– “E o corpo, o senhor gosta? A cintura?” – ela requestou.
Sim, a cintura, o busto, os seios, as mãos, os pés… Devagar e manso, falavam de tudo nela, os olhos e as palavras dele quentemente a percorriam. Iam-se as horas, desvigiadas das pessoas. Separaram-se, sem se darem as mãos, ela sorriu esquivosamente.
No leito, exultou. Borbulhavam-se afãs, matéria de pensamento. Tudo excitava – inconcebível, arrebatador como se lido e escrito. Ela era bela, criava um poder de prazer; e nem havia mal, naquilo. Ela se disse: sua beleza se empregara, servira. Adormeceu assim. Muito.
E entanto cedo acordou, abriu a janela toda, o frio era bom, a madrugada mal raiava: sus roseazins de nuvens sufladas, de oriente, dedo a dedo, anjos, no desrol. Belo dia! Não obtinha dormir mais, não podia, tanto se governava lépida. Ouvia as vacas, grandes de leite, bondosas. Mugia-se. O mundo era um sacudido cheiro de bois, em que o canto dos pássaros se respingava. O touro, ora remugia o touro, e o jardinzinho estava ali, ao pé da janela, viçoso de verdes hastes. O dia custava a começar, a passar. Tudo era grande, e belo. Avançavam, de alto ar, as araras, suas cores, fortes vozes. Depois, sob o pleno sol, bom e belo o Brejão – suas grandes dadas flores: a olímpia, a dama-do-lago, a gogóia, o golfo-da-flor-branca, a borboleta, a borboleta amarela, as baronesas. O brejo alegrava, se doava, doce como o ócio e o vício.
Nesta crônica, estão em itálico frases de João Guimarães Rosa, que copiei livremente. (“Buriti”, Noites do Sertão, Oitava Edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira)