Para morrer, basta estar vivo. Mas ninguém morre antes da hora. E tem mais: a pessoa não pode andar distraída, que a morte só quer uma desculpa. A Mulher do Sétimo Andar, vocês já devem ter percebido, anda sempre com a cabeça na lua. Ou nas estrelas. E aconteceu duas vezes em sua vida que a morte lhe fez um susto danado. Sempre no mês de outubro.
A primeira vez foi no outubro de 1968. Vinha caminhando numa lama de dois dias chuvosos. Um pé calçava seu tênis de número 36. O outro, um chinelo de número 41. Naquele sítio não havia cama para dormir. À noite todos se ajeitavam como Deus é servido. Na véspera, ela se acomodara em um dos bancos compridos como de um circo, aliás, era mesmo a armação completa de um circo, que só teve serventia para uma única assembleia. Ao acordar, ela já não encontrou o outro pé do sapato e calçou um chinelo que avistou no banco logo abaixo do seu. Nos primeiros dias foram servidas as três refeições. Na véspera, porém, coubera-lhe metade de uma barrinha de chocolate.
Naquela manhã anunciava-se que finalmente começariam os trabalhos e a situação de alimentação seria regularizada. A Mulher do Sétimo Andar retornava do banheiro, que ficava na extremidade oposta ao circo. Com o tênis no pé direito e o chinelão no esquerdo, ela vinha caminhando com dificuldade na lama escorregadia, quando ouviu os tiros. Assustou-se. Ao tentar correr para alcançar logo o lugar onde estavam os outros, caiu. Viu quando o dinheiro, parece que também amedrontado, pulou do bolso do casaco e se esparramou pela lama. Naquele momento, teve certeza de que o tiro a havia atingido e pensou, Mas que morte mais besta! Foi apenas um lampejo de segundos. Logo se levantou, deixou as cédulas enlameadas no chão e caminhou o mais rápido que conseguiu para encontrar os companheiros.
A tropa de Fleury era composta de 12 policiais. Dali, caminharam 12 km até chegar à praça de Ibiúna. Nunca verificou se alguém terá fotografado aqueles setecentos estudantes avançando em três imensos cestos de pão francês no centro daquela praça.
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A segunda vez foi nesse outubro de 2021. A Mulher do Sétimo Andar havia pedido remédios na farmácia. Certificou-se que entregariam o pedido antes das nove horas da noite. “Durmo cedo”. “Sim, sim, minha senhora. Pode ficar tranquila”. Deu nove horas, nove e meia, nada. Então ela foi dormir. No quarto, fechou a porta, ligou o ar refrigerado, leu um pouco e logo adormeceu.
Foi acordada mais ou menos às onze horas da noite com uma lâmpada sendo acesa bem defronte aos seus olhos. Viu a luz da sala de interrogatório na Avenida Tiradentes em São Paulo. Ou seria o juízo final? Três pares de olhos assombrados na sua direção, e logo a voz da irmã, pegando no seu braço, quase gritando: “Tá bulindo, tá viva! Graças a Deus!” – A Mulher do Sétimo Andar mal teve tempo de abrir os olhos. – “Como você pede remédio na farmácia e depois vai dormir?”– E o cunhado – “Eu não disse, que ela estava era dormindo? Vamos embora, deixa a pobre voltar a pegar no sono”. “Venha pelo menos fechar a porta” – replicou a irmã, com a voz ainda embargada – “Como é que a pessoa vai dormir e deixa a porta só no trinco?”
Era muita coisa para explicar de uma vez só. Não conseguiria conciliar o sono. Passou a chave na porta e veio ao computador escrever.
Se… claro. Se tivesse, só por desencargo de consciência, ligado à portaria para avisar que, caso o entregador da farmácia ainda viesse… Mas não. Já sabendo a falta de compromisso tão comum por essas plagas…
À tardinha daquele dia, havia ido verificar detalhes do salão de festas, o qual usaria pela primeira vez desde que morava naquele prédio, para receber uma tropa boa de amigos das noitadas de música. Na volta, o celular tocava na mesa do escritório. Correu para atender e esqueceu de voltar para trancar a porta. Das distrações dessa Mulher do Sétimo Andar. Assim, dormiu com a porta de entrada só no trinco.
Bom, dos males o menor. Não arrombaram a porta. Ligou depois para a irmã e ela detalhou a cena. Do porteiro, um dos mais antigos do prédio, preocupado porque aquela moradora não atendera o interfone nem o celular nem a campainha da porta, sendo que há menos de um mês a dona Regina, do sexto andar, havia morrido de repente de um ataque cardíaco. Ele contou tudo isso à irmã e ao cunhado, enquanto subiam pelo elevador.
Na verdade, ela morreu, mas foi de pena da irmã. Que, boa e generosa, revidava, “Tudo bem, o que importa é que você está viva. Graças a Deus.”
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Enquanto escrevo, transporto-me ao quarto de minha mãe no seu velho casarão de Olinda. Seu estado de saúde piorava dia a dia. Naquela tarde, eu e Denise estávamos com ela e precisamos chamar a ambulância do seguro saúde. Minha mãe pediu para avisar a Totonho. Enquanto era atendida pelo médico, ficamos com ela no quarto os três filhos que moram no Recife. Passada a crise, num certo momento me sentei na cabeceira de sua cama. Quarto de mãe guarda algo de sagrado. Passei a mão nos seus cabelos brancos. “Está melhor, mãe?” – Ela olhou para mim com um sorriso entre aliviado e irônico, a fina ironia inglesa de dona Octávia. “Estou bem, minha filha. Estou viva”.
Quanto a mim, estou viva, bulindo. E, com fé em Deus, o outubro derradeiro não vai se avexar em vir nem tão cedo.