Dia Internacional da Mulher

A Mulher do Sétimo Andar recebeu logo cedo a primeira mensagem. Um vídeo que nem era de comemoração ao dia, mas calhou muito bem, como uma luva.

Uma negra de turbante na cabeça. Começa assim:

– Boa tarde. Hoje é segunda feira, dia de Exu. Estou aqui nas Dunas, Lagoa do Abaeté, e a gente já está vendo aqui que a obra da construção desse espaço, que querem que seja o nome “Monte Santo Deus Proverá” já começou aqui. Então eu estou aqui denunciando…

Enquanto ela grava a mensagem, tendo ao fundo o barulho de um trator devastando as dunas, é interrompida por um homem uniformizado de preto, que se diz embaixador do evangelho e está ali para assegurar a continuidade da obra. Ouve-se ao fundo a voz desse homem esperneando seus dogmas. E a negra, altiva, se afirma, “pois eu sou filha de Oxum e embaixatriz da África. Sou de Oxum”. “Sou de Deus”, revida o evangélico. E a mulher: “Viva Oxum, vivam todas as mulheres ancestrais que me antecederam, como Macota Valdina, Mãe Estela, Mãe Menininha do Gantois e Mãe Gilda.” Impressionante a coragem e firmeza daquela mulher negra.

O vídeo, mandado não intencionalmente no oito de março, rapidamente tornou-se a mensagem pelo Dia Internacional da Mulher, para aquela do Sétimo Andar. Se ela usasse Instagram, valia postar. Aliás, tem, mas não usa, como tantas outras ferramentas da tecnologia a seu dispor. Espalhou o vídeo, ao qual acrescentou. “Isso sim, é comemorar o Dia Internacional da Mulher, que não é de florzinhas e parabéns, mas de luta.”

Esse vídeo emocionou deveras a Mulher do Sétimo Andar. Sentiu nele a firmeza, a beleza e a centelha do que acontece de importante na nação brasileira. Pois é nisso que ela acredita hoje em dia, depois de ter vivido tantas utopias nessa vida. Acredita que a mudança de nossa sociedade, contaminada em suas raízes pela Casa Grande e Senzala, só será possível com a libertação do povo negro pela sua própria luta. E luta não são palavras de dicionários ideológicos. Luta são atitudes. Como daquela negra americana que ousou se sentar num banco de ônibus reservado aos brancos.

E pensou: fiz bem em deixar meu título de eleitor para sempre arquivado no colégio eleitoral do distrito de Nogueira, município de Aiuruoca, no tempo em que morava na Serra da Mantiqueira, e naquele tempo pensava mesmo que aquela seria sua morada até o final da vida. Ah, quanta ilusão! Mas valeu o sonho, como valeu! Sonhar é bom. De vez em quando.

O jogo eleitoral continuará acontecendo, ano após ano, ilusão após ilusão. E a barreira de classes se aprofundando a cada dia, a cada ano, a cada decênio do século XXI, como um vírus muito mais grave que o Corona.

O lado dos pobres tem hoje sua fé, seus líderes nos pastores evangélicos, seu comportamento medieval de separação radical do bem e do mal, de deus e do demônio. Aboliram da escrita miúda o ponto de interrogação, encolheram o português às pobres mensagens escritas, poucas, porque basta o áudio. São todos irmãos. Pode-se vê-los nas conversas dos empregados de supermercados, em fragmentos de conversas no calçadão, que aliás é o “campo” de observação privilegiado da Mulher do Sétimo Andar.

Hoje mesmo, caminhando pelo calçadão, ela cruzou com uma mocinha branquinha, bem nascida, que portava na mão direita a coleira do cachorro e na esquerda um saquinho de plástico para o cocô do animal. Mantendo o distanciamento necessário desses tempos, a Mulher do Sétimo Andar parabenizou a mocinha. Que não entendeu por que, até que soube que era pelo simples fato de ela pensar nos outros. Pois aqui, a regra é usar toda a área verde entre o calçadão e o mar como um grande cagódromo de cães. E sempre há o risco de um cocô no meio do calçadão. O de hoje, por exemplo, já havia sido pisado por sapatos incautos que caminham ou correm sem olhar para o chão.

As placas de aviso dos tubarões continuam lá, intocadas. Os tubarões também, que há muito pararam as pesquisas e quaisquer atitudes do poder público sobre o assunto. Ô seu prefeito, manda fazer muitas plaquinhas assim, ó: Papais e mamães de pet. Pensem que essa área é pública. Não a transforme num grande cagódromo. Já perdemos o mar para os tubarões, não vamos perder todo esse imenso espaço entre o calçadão e o mar para os cocôs de seus filhinhos.

Claro que esse aviso nada diz à metade dos passeadores de cães, que são as empregadas domésticas, enquanto sinhô, sinhá, sinhozinho e sinhazinha dormem o bom sono da madrugada. Mas talvez para os papais e mamães de pets que saem eles próprios a passear…

Bobagens que só se passam na cabeça dessa Mulher do Sétimo Andar. Pois lá o prefeito vai querer saber de obra que não dá nenhum retorno eleitoral? Obra e-du-ca-ti-va? Antes da pandemia, ela se lembra de umas lixeiras, só para fazer de conta, colocadas no meio das barracas de praia em ano eleitoral, frágeis ao simples quebrar das ondas quando a maré estava alta. O detalhe é que elas eram escritas em cada lado com propagandas. A Mulher do Sétimo Andar até escreveu na época uma crônica sobre isso.

Deixa de besteira mulher, você nem vota mais em nenhum deles… Pra quê? Manda na cidade, quem? As grandes construtoras, e o bolso dos que se beneficiam do percentual do custo das obras, políticos e administradores.

Uma amiga dessa Mulher do Sétimo Andar comentou outro dia, toda orgulhosa: Meu prefeito está fazendo as calçadas. E ela pensou, mas não disse: Uma esmola para o lado rico da cidade, pois o que importa mesmo são as caixinhas, que serão muitas. A máquina é pesada. Muitas bocas para alimentar.

Mas deixemos o calçadão e as calçadas e voltemos ao Dia Internacional da Mulher. A Mulher do Sétimo Andar espalhou o vídeo da Filha de Oxum a vários de seus contatos. A primeira reação foi de uma amiga que comentou

– Guerreira!!! Saravá!!

E em seguida postou a mensagem dela, dentro de um quadrinho discreto de cor rosa claro, com dois galhinhos em bico de pena ladeando a palavra Mulher,

– Feliz dia da Mulher. “Eu tenho medos bobos e coragens absurdas” Clarice Lispector.

E pergunta, em seguida,

– Clarice pode, não pode? Duas carinhas, uma piscando o olho e a outra com um beijinho na bochecha.

Ao que a Mulher do Sétimo Andar responde

– Claro. Clarice sempre pode. Grande Clarice. Beijo.

E o Dia Internacional da Mulher transcorreu repleto de mensagens na telinha do celular. De homens apaixonados, como um que mandou num dos grupos de whatzapp a música “Mulher”, de Erasmo Carlos e, achando pouco, mandou também a música “Tu és divina e graciosa estátua majestosa do amor por Deus esculturada. E formada com ardor da alma da mais linda flor…” E por aí vai. A mocinha que cantava, de cabelos ondulados e ruivos, era acompanhada por um violino e um violão, todos no meio de um bosque numa linda manhã ensolarada. De outro amigo, que curte as mulheres e nunca deixou de mandar mensagem para todas as amigas nesse dia, ela recebeu o sambinha Sonho Meu. E dançou na sala enquanto ouvia.

Recebeu mensagem animadora com frase de Mafalda. Ou filosófica, de Simone de Beauvoir, “Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância.”

Foi mesmo um dia especial esse Dia Internacional da Mulher. Uma sensação boa de que as pessoas estão começando a sair do grande pesadelo do confinamento. O abraço se aproxima, minha gente!

Mas o melhor mesmo desse dia foram as mensagens da cumade. A Mulher do Sétimo Andar pensou:

– Ah, como gosto dessa cumade! A afilhada perdi, mas ela é madeira de lei, sólida feito Pau Pombo de Garanhuns.

Dessa cumade recebeu muitas, todas exaltando a mulher. “Parabéns para nós, mulheres, que nunca vamos morrer de frio, porque SEMPRE estamos cobertas de razão”, e os emojis morrendo de rir. Outra, com um casal jovem vestindo camisetas negras, escrito na camiseta dele “Primeiro, Deus criou o homem.”, e na dela “Depois, teve uma ideia melhor.” Outra ainda, com a fotografia de uma mulher negra, dizia: “Metade do mundo são mulheres. A outra metade os filhos delas.”

E a cumade refletia,

– Eu as vezes penso que sou poderosa. Acho que é por isso que curto tanto esse dia. Doideira, né cumade?

– Doideira boa, cumade.

O Dia Internacional da Mulher terminou se espichando pela semana e só terminou no sábado, quando a Mulher do Sétimo Andar assistiu a duas sessões seguidas de Belfast na telona do cinema. De tudo o que viu no filme, que lhe recordou o tempo em que esteve tão próxima ao drama da imigração, o tempo em que escreveu “Brasileiros longe de casa”, o que lhe tocou mais foi uma das cenas finais, o momento em que o marido reconhece o papel central da sua mulher naqueles anos de guerra. Sem a seriedade e dramaticidade das telas, mas em tom jocoso e até como provocação, ela ouvia da boca de seu marido: rainha do lar. Algo mais cafona? E ele ria. Contudo, nesse momento da vida, tal uma guerreira que nunca larga as armas, era assim mesmo que a Mulher do Sétimo Andar se sentia: rainha do lar. Que estava justamente nesse momento da vida amarrando numa trouxinha o que lhe era essencial, e partindo para mais uma mudança. Para juntar de novo a sua família, depois de uma guerra que perdura desde 2001.

2 comentários em “Dia Internacional da Mulher

  1. Adoro ter você como leitora, Maria Luiza. Para mim, é um luxo. Sim, até quarta, quando estarei em Salvador por uma semaninha, para comemorar o aniversário de minha querida sobrinha pelo lado do marido, que completará sessenta anos. Uma linda idade. Acompanharei nosso primeiro encontro com a Sandra e e os colegas na casa dessa sobrinha, na rua de Mouraria, esse nome que tanto lembra nossa velha Lisboa. Beijos

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