Algum de vocês já viajou numa nave do tempo? Se ainda não, então vá à Bahia. Como diz o poeta: você já foi a Bahia, nega? Então vá. Viagem ao futuro é mais arriscado. Porém ao passado, é só desembarcar no aeroporto, seguir de carro por umas ruas ladeirosas, casas antigas, igrejas, comércios. Chegar numa rua chamada da Mouraria, a lembrar o tempo dos portugueses, e, quase defronte a uma casa velha, mal tiradas as bagagens do carro, atravessar a rua, e lá está: um tacho de acarajé fervendo, o Acarajé do Baiano. Sua sócia, uma baiana sentada como anchas se sentam as baianas de roupas brancas e turbante na cabeça, cuidando da mistura, vatapá, camarão seco, pimenta, tomate picado. O colorido da África, o cheiro do óleo de palma, que é como se chama o azeite de dendê em terras africanas, aquela mistura cheia de vida do amarelo e da cor de laranja.
Uma semana a Mulher do Sétimo Andar passou fazendo essa viagem no tempo. Eram os idos de 1969. Os namorados haviam feito uma viagem de Fusca do Recife a Salvador, passando em Penedo a primeira noite. No dia seguinte, a noiva será apresentada à família do noivo, pousando de virgem, hospedada na casa da futura cunhada, marido e filhos. A caçula tinha sete anos e já era buliçosa, líder das meninas, arrumara alguma encrenca na vizinhança. Havia sido desalojada para o quarto dos dois irmãos, para dar lugar à futura tia.
E a alienígena foi pisando com cuidado em terras galegas da Bahia. Um clima acolhedor de recepção para a futura esposa do filho pródigo. Na casa do tio, um jantar. A comida galega. A farta mesa, o vinho, o indispensável pão. Conheceu a noiva destinada pelos desejos do pai dele como futura consorte do filho, para que ele um dia retornasse ao seio da família galega. Desejo vão porque esse filho, desde que se desgarrou de casa aos dezoito anos, não mais retornou. A não ser quando aquela alienígena, com o poder de que são donas as rainhas do lar, foi lhe trazendo aos poucos de volta, a cada filho que nasceu, a cada viagem do avô, que via naquele filho a realização de seu sonho engenheiro. Na casa do filho, em São Paulo, o sogro ia fazendo daquela nora a depositária de seus segredos, de seus desejos de outrora, do que nunca contara antes a ninguém, porque nessa vida ele apenas cumprira um fado traçado na terra de onde viera, Gajate.
A alienígena que precedera a Mulher do Sétimo Andar, com quem esse filho pródigo havia se hospedado em um hotel em viagem prévia à Bahia, possivelmente não teria sido vista com bons olhos. Eram liberalidades excessivas para os padrões galegos. Com a escolhida, ele aprendera a lição. Ela, na casa da irmã. Ele, na casa do pai. Em horas mortas das tardes daquele julho de 1969, faziam amor clandestino na casa do pai.
Existia um restaurante chamado Dona Flor, na ladeira da Fonte, próximo ao teatro Castro Alves. Sem palavras, que as ações contam mais que as palavras, a noiva acabara de ser acolhida no seio da família galega. O noivo, também sem carecer palavras, já era aceito pela família dela. Pela vontade da mãe da noiva, com foguetões e tiros de canhão. Pois, até então, a filha só se ocupava em fazer revolução.
Ela se lembra que comeram naquele restaurante Dona Flor uma moqueca de peixe, precedida de divinas casquinhas de siri. E foi nessa noite que, também sem solenidade, lhe foi proposto casamento. Parecia algo tão distante… Ela tinha planos de fazer um mestrado em Paris. Isso se faz depois, dizia ele desconfiado. E se fez depois, mestrado, fuga para São Paulo, doutorado, filhos… Uma vida.
De repente, como se o tempo realmente fosse uma máquina que a gente move para trás e, às vezes, perigosamente, também para a frente, em planos, fantasias, de repente, aquela menininha caprichosa e cheia de dengos, aquela princesinha que só tinha sete anos, completa sessenta. E se tem uma mulher que se pode dizer representante da Bahia, da alma da Bahia, é essa mulher. Que tem a coragem de morar na mesma rua da Mouraria de seus avós, carregando com leveza um antepassado nascido num torrão da Espanha onde corre um fio d’água pelas ladeiras do pequeno povoado para desembocar no rio Oitavén. Mas que ao mesmo tempo é parte integrante da alma mestiça da Bahia. Que convive com os da rua, porque não tem garagem na velha casa da rua da Mouraria, casa que mudou quase totalmente de feição por dentro, espichando-se pelas velhas casas vizinhas que foram sendo incorporadas. Uma pensão antiga, que não abrigasse estudantes quaisquer, mas aqueles que, como ela, fazem arte. Porque a Bahia é toda ela uma grande arte, um museu do que temos de mais alegre e colorido da raça brasileira, trazida pela sonoridade, pela dança, pela comida e pelos rituais herdados da África.
Na sua festa de sessenta anos, num amplo e lindo espaço às margens do mar no Rio Vermelho, havia um certo cerimonial para entrar, porque exigia-se carteira de vacinação em dia, e os nomes de cada um que chegava eram checados na lista de quase trezentos convidados. Como boa baiana, uma festa íntima para trezentas pessoas. Cerca de duzentas estavam lá. Do reitor da Universidade Federal da Bahia, professores, alunos, orientandos, ao baiano do acarajé da rua da Mouraria; a família, amigos próximos. E a tia, única tia, outrora alienígena, mas no sangue da qual já circulava há muito, por osmose, o sangue galego.
Festa é bom antes, na azáfama dos preparos e das expectativas; durante, o clímax, fosse o enredo de um romance; e a crônica do depois. Ah, a crônica do depois… Tempo de desembrulhar os presentes. Viu como fulana estava vestida? Céus, com aquela roupa ela envelhece, parece uma senhora mais velha do que é. E a aniversariante? Não fez outra coisa a não ser dançar desbragadamente, mais do que todos. Não se sabe onde foi buscar tanta energia. Ou melhor, sabe-se sim: pela alegria dos abraços, que era só quando ela parava de dançar, para cumprimentar cada um que chegava.
Na manhã invernosa da Bahia, quando o sol não deixa de aparecer depois das chuvas madrugadoras, a Mulher do Sétimo Andar escreve esta crônica no espaço do que foi antes um quarto qualquer na casa dos avós, hoje transformado em escritório na casa da neta. Aqui, nesse escritório, toda uma parece é ocupada por memórias e futuros. Um futuro que dá a volta para terras d’ Espanha através da bisneta.
Nessa parede de fotografias, vê a Mulher do Sétimo Andar no dia do casamento, sete de março de 1970, cortando o bolo com o noivo, que habitou esta casa até abandoná-la para estudar em São Paulo aos dezoito anos de idade, num longínquo 1959.
E lá está também, na galeria dos antepassados, uma lembrança amarga, em maior moldura, no alto da parede de quadros. Um filho da Galícia igualmente pródigo, que não pode realizar sua paixão por outra alienígena, e por isso foi morar no reino de Iemanjá no fundo dos mares da Bahia. Um assunto tabu, desses sobre o qual não se fala, a não ser quando aquela nova alienígena conseguiu furar o bloqueio e entrar no seio dos galegos e, mais que isso, ser a confidente para que o sogro pudesse enfim contar a alguém tudo que lhe apertou a garganta uma vida inteira.
Salve a Bahia de Todos os Santos. Os santos de todas as religiões. Os santos que, junto com os negros escravizados, vieram da África habitar as terras da Bahia.
PS: Dedico esta crônica a ma belle soeur, Maria del Rosário Suarez de Alban