Moço bonito

A rotina da moça era assim: acordava com o cacarejar das galinhas do quintal da casa onde morava, o número 56 da rua Professor Edgar Altino. Na Estrada Real do Poço ainda não havia o calçamento que hoje em dia imita pedras antigas. Nesse tempo, estudante do Curso Pedagógico no colégio das freiras, costumava levar bloco de carta de folhas finíssimas, e escrever no silêncio da margem esquerda do rio Capibaribe, assentada em um tronco de árvore derrubada pelo rio. Cartas de amor. Cartas de amizade. Esse mesmo rio Capibaribe que, mal-agradecido, depois de ter testemunhado tantas missivas adolescentes, tomou-se de uma fúria e saiu de seu leito a caminhar em guerra por ruas e calçadas e casas adentro, trazendo cobras e lagartos. Tantas perdas… Levou os cadernos com os diários da moça. Levou as cartas.

Formada professora aos dezoito anos, principiou a trabalhar, para nunca mais parar, mesmo aposentada, mesmo velha. Porque sabe, como Tereza Costa Rêgo, que o trabalho é que nos mantém vivos. Acordava às cinco e meia da madrugada, mal o dia clareava. Toma um banho rápido, prepara o lanche da escola, toma café, e às seis e meia está a caminho do Instituto Santana. Seu turno é das sete às dez e meia. Até o final do ano, esses meninos deverão estar alfabetizados.

Tempos depois, numa seleção para professores da Puc de São Paulo, um dos entrevistadores fazia um sorriso de mofa e perguntava, folheando o curriculum vitae da candidata: o que a experiência de professorinha primária poderia contar ponto para a proficiência no ensino universitário? Naquele momento, a nordestina, ainda intimidada com a sapiência paulistana, nada respondeu. Muita vida depois, deu-se conta de que, ajudar crianças a entrar no mundo das letras, talvez tenha sido o mais nobre de seus trabalhos.

Saía da escola pelas onze horas, depois de passar o turno para a professora das 10:30 às 13:30, que depois passaria o bastão para a do terceiro turno, das 13:30 às 17 horas. Uma pobre escola estadual no que hoje é o Parque Santana, então um bairro de casinhas pobres, quase mocambos. A passo sem pressa, voltava para casa. Lembra que até um certo ponto de seus vinte minutos de caminhada, alguns alunos a acompanhavam. Nilton era um menino magrinho, desses que dá trabalho para prestar atenção nas aulas, e que dizia, quando passavam carros na avenida Dezessete de Agosto: passando calhambeque, que eu só ando de monobloco.

Em casa a professorinha almoçava, descansava meia hora e voltava à labuta. Tomava o ônibus de Dois Irmãos para ir às aulas do Curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia do Recife. Dali, na boquinha da noite, ia caminhando até alguma lanchonete do entorno da Faculdade de Filosofia de Pernambuco. Às sete da noite entraria no seu terceiro turno, o curso de Sociologia e Política. O pátio daquela Fafipe lhe reservaria muitas aventuras.

Sentava-se ao fundo da classe. Às vezes esquecia de trocar os óculos escuros pelos claros, e foi assim que chamou a atenção do professor Nelson Saldanha, que lhe pediu – a moça que está de óculos escuros – comentário sobre o tema que tratava em aula. Lembra apenas que ficou vermelha de vergonha, uma marca que acompanharia aquela moça pelos quatro anos em que estudou naquela Escola.

Naquela Escola abriu-se uma larga porta. A mocinha deixou para trás o projeto de Educação, e foi se chegando aos poucos à luta estudantil, com a obrigatória passagem pelo mundo clandestino dos partidos políticos. O seu, foi a continuidade de um compromisso que assumira com outra roupagem desde muito cedo, no tempo do colégio das freiras, o compromisso de salvar o mundo pela religião. Agora a religião era outra, de rituais pagãos e secretos. Foi acumulando frustrações de tanta leitura que gostaria de fazer e não havia tempo, porque havia muitas obrigações, e as leituras se reduziam a pobres textos de uma teologia da qual ela passou ao largo.

Aos olhos de um colega que fazia o curso de Sociologia e Política por puro deleite, posto já ser um profissional da área de planejamento, que chegava ao pátio da Escola em um Karmann Ghia vermelho, essa moça, que corava quando tomava a palavra nas assembleias estudantis, a cada discurso de campanha para ser presidente do Diretório Acadêmico, era motivo de reportagens que ele fazia, em intervalos de trabalho, a seu amigo, um dos sócios da empresa de planejamento na qual ele era funcionário.

Um dia, um dos militantes da Ação Popular, seu colega de Escola e militância, fez a festa de casamento num bar de Olinda, uns bares que havia à beira mar, de higiene duvidosa, onde não era incomum verem-se ratos circulando entre as mesas. Lembra que nesse dia, um sábado, houve reunião do Diretório Acadêmico à tarde. A moça foi para a reunião de bobs na cabeça, amarrados por um lenço de seda. Vestia um vestidinho de organdi com ligeiro estampado de flores, de alcinhas. Acabada a reunião, no precário banheiro daquela escola, tirou os bobs e acomodou em uma cesta de palha de bananeira, que era sua pasta executiva, fez uma ligeira maquiagem, e foram todos que estavam na reunião à festa de casamento.

Que festa, meu irmão! Depois de várias caipirinhas, uns salgadinhos, enquanto tocava alguma música em um canto, em outro, uma morena bonita cantava ao microfone para encantar seu namorado. Nada disso impediu a moça, que vestia um outro figurino distinto em tudo da sainha, blusa e alpercatas, uma espécie de uniforme inconfundível aos olhos das forças repressivas em dias de passeata; nada impediu que ela, em outro recanto do bar, puxasse uma ciranda. As cirandas que frequentava na praia de Itamaracá, a ciranda de Lia, ao tempo em que Lia era apenas a de Itamaracá. Fez-se Lia e saiu arrebanhando os que estavam em volta, fazendo o círculo crescer, até tomar quase o espaço inteiro do bar.

Na segunda feira, uma colega de curso chegou à Escola com um recado. De um moço bonito, alto, de olhos verdes, bem posto na vida, cobiçado por todas as moças casadoiras porque, além de seus atributos físicos, era um partidão, sócio de empresa, dono de um belo apartamento onde costumava reunir boêmios e intelectuais nos almoços aos sábados. Ele queria conhecer aquela moça, que o havia puxado pela mão para dançar na ciranda, quando ele, distraído do cantar da morena, postara-se no entorno daquela dança circular.

– Mas Helena, eu não sei quem é esse rapaz, não tenho dele a menor lembrança.

Pois naquela ciranda a moça segurava, com a mão esquerda, a do colega do Karmann Ghia vermelho, num namoro ali principiado, na festa. Com a mão direita, ia arrebanhando outros cirandeiros para compor a roda. Naquela noite, os namorados haviam saído dali para tomar uma água de coco e ver corrida de submarinos à beira mar em Boa Viagem.

Nessa época, segundo semestre de 1968, a moça já não dava aulas nas classes de alfabetização do Instituto Santana. Vivia semi-clandestinamente, por ter participado do Congresso de Ibiúna. Para ganhar um dinheirinho, fazia entrevistas e preenchia questionários de pesquisas sociológicas. Os recados se sucediam. À Helena foi prometido mundos e fundos se ela conseguisse arranjar o primeiro encontro.

Lembra o cenário. Estava aguardando ser recebida para preencher um questionário numa repartição do governo do estado à rua Cruz Cabugá. Enquanto esperava, viu que havia um orelhão no corredor. Usando as fichas que tinha sempre à mão, ligou para o moço bonito. Foi um impulso. Era a primeira vez que ouvia a voz dele. De suas feições e porte elegante ainda não tinha ideia. Marcaram o primeiro encontro para o final de semana. À noite, no pátio da faculdade, conversou com o moço do Karmann Ghia vermelho para encerrar um namoro, que já vinha mesmo arrefecendo, fogo de palha de uma festa.

E pronto, entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato; sinhô rei mandou dizer que contasse mais quatro. Respondi assim a um de meus leitores que me pediu, na última carta, ops, comentando a última crônica, Bahia de Todos os Santos, pediu-me que eu contasse como a Mulher do Sétimo Andar conhecera aquele baiano, filho pródigo de terras da Galícia.

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