Do lugar de onde escreve a Mulher do Sétimo Andar, ela descansa a vista da tela do computador em três cenários. À esquerda, o Oceano Atlântico com a imensidão de seus verdes, o murmurar das ondas na madrugada, a areia cor de areia. Vê também algumas copas verdes de castanholas e coqueiros, que, à altura de sua vista, sentada na cadeira, aparecem como fossem imensos vasos de planta suspensos no ar.
À Frente, quatro pequenas prateleiras com um metro e quinze de largura. Como a altura entre elas é apenas de quinze centímetros, acomoda bem, sem litígio entre seus habitantes, pequenos artesanatos, desses que a gente vai acumulando de viagens pelo mundo, ou vestígios d’antanho. Na primeira, uma banda de pífanos, do Alto do Moura. Dois grupos de retirantes, um, cor de barro, o outro, colorido. Caminham na direção do mar. Uma coleção de minúsculas panelinhas de barro de casinha de boneca, mimosas, com florzinhas de nada pintadas com esmero, da feira de Garanhuns. Fosse uma cozinha colorida em tons fortes de azul marinho, azul claro, verde, vermelho, cor de rosa. No meio deles, feliz da boa companhia, um presente do filho caçula: uma cerâmica de barro cru, escrita embaixo o nome ilegível do artesão e o ano de 1973. Nessa pequena peça, há um tablado, em cima do qual uma mesa com livros e cadernos. Uma mulher à mesa, sentada na cadeira, escrevendo no caderno. Numa placa na borda da mesa está escrito: Socióloga.
Na segunda prateleira, patos de muitas viagens nadam em direção ao mar. Atrás deles, ecleticamente, há um cachimbo da paz dos índios astecas e uma embalagem para cigarros sem filtro de couro trabalhado, presente de um galego, irmão, o mais baiano que ela conheceu, o velho e bom Calixto. Contém um brasão atrás e, à frente, uma cena de tourada, o vermelho da indumentária do toureiro muito vivo ainda, como se vida tivesse aos olhos da mulher, que relembra uma das mais lindas e coloridas cenas que viu pelo mundo, uma tourada.
A última prateleira conversa com a primeira. Bois de barro, cavalo marinho, um cofrinho de guardar moedas de menino pequeno, três pequenos vasos de flor feitos de cerâmica vulgar, dessas cujo dourado das palavras e das bordas brilha ao sol, tendo num deles escrito “lembrança de Garanhuns”. Nos dois extremos dessa prateleira está a África: um pé de baobá minúsculo feito de palhas pintadas; uma negra vestida de branco, com o ojá na cabeça, comprada em janeiro de 2019 numa feira de rua da Guiné Bissau.
A terceira prateleira contém os barcos menores da Home Fleet. Na marina da Mulher do Sétimo Andar, há barcos do mundo inteiro por onde viajou com o marido, que gostava de comprar ou ganhar barcos e carros antigos. Uma barquinha de Salem, o lugar das Bruxas, cenário de Edward Hopper na Nova Inglaterra, onde existe a ele dedicado um museu. (Ah, quantos museus essa mulher visitou na companhia de seu marido! Com ele, artista plástico, aprendeu segredos das cores, dos estilos…). Mais três barquinhos de além-mar. E cinco minúsculas embarcações, verdadeiras nanotecnologias, dentro de lâmpadas sem uso. Artes nossas.
A marina com os barquinhos da terceira prateleira conversa com outra, que a Mulher do Sétimo Andar pode ver enquanto sentada à mesa de trabalho, se olhando para o lado direito.
Há uns sete anos, ela chamara seu marceneiro, para quem encomendou duas prateleiras grandes, da largura de toda parede da sala com vista para o mar, medindo cinco metros e quarenta. Mandou afixá-las no alto da parede, à altura da vista e não das mãos. Há que usar escada para tirar a poeira dos objetos que ornam essas prateleiras. Lá está, ao lado esquerdo, o restante da marina. Barcos maiores, de muitas procedências, todos pacientemente esperando a Guerra do Fim do Mundo. São sete embarcações. Duas delas, de tamanho menor, estão por sobre um baú de madeira de lei, encomendado por uma moça apaixonada que, em meados dos anos de 1930 do século passado, ali guardava as cartas do noivo, cartas de amor, com fechadura e chave para que os primos irmãos não devassassem seus segredos. Uma imagem negra de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e uma figura de madeira feita como ex-voto e ali representando uma entidade mítica, compartilham o espaço com as embarcações e o baú.
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Quinze de abril de dois mil e vinte e dois. Sexta Feira da Paixão. Procissão do Senhor Morto. Nos alto-falantes pendurados nos postes de rua de Garanhuns tocava O Lago dos Cisnes de manhã à noite, expulsando nesse dia Nubia Lafayete, Nelson Gonçalves, Orlando Silva…
A procissão de Bezerros. Zuzinha Guilherme e Ioiô Guilherme cantando dolentes hinos, acompanhados pela mesma banda de música dos dobrados em dias de festa. Bandas de música herdeiras do Passo Doble ibérico. Meu pai chorando na janela da casa na rua da Matriz, espiando a banda passar tocando um dobrado. “No céu, no céu, com a mãe de Seu Ioiô estareeee ei”, cantava a velhinha na procissão, postada logo atrás de meu avô.
Na procissão de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife, que sai da Igreja dos padres carmelitas da rua Dantas Barreto nas tardes do dia 16 de julho, predomina a cor amarela. Das flores trazidas pelos fiéis. Das que se vendem na rua. Das vestimentas de mais da metade dos que vão à procissão. Porque Nossa Senhora do Carmo vem a ser a mesma Oxum trazida da África, dona dos rios e das cachoeiras. E quem ainda quiser apreciar vestígios da religião católica do Brasil, herança dos tempos coloniais, há que assistir a uma procissão de Nossa Senhora do Carmo no Recife.
A procissão do Senhor Morto de Olinda. Os mesmos músicos que no carnaval sobem e descem as ladeiras tocando frevo na festa pagã que antecede a Quaresma, acompanham a procissão com hinos religiosos de antigamente. Músicas que há muito tempo a igreja católica se esqueceu de cantar nas missas, e passou a macaquear os evangélicos. Nem assim conseguiu chegar ao povão, que prefere as promessas de consumo dos pastores.
Procissão do Senhor Morto. As ruas se vestem de roxo. O nosso país está vestido de roxo, esperando algum colorido de carnaval.