21 de abril de 2022. Depois de uma véspera com chuvas invernosas intermitentes, o sol desponta na quinta feira dentro do esplendor do mar. Nasce sem nuvens que o encobrissem, no horário costumeiro das cinco e meia da madrugada. No calçadão, vários personagens são velhos conhecidos da Mulher do Sétimo Andar. Chama-lhe a atenção um negro de estatura média, belo corpo, não teria mais que trinta anos. Corre no calçadão ou beira mar, dependendo das condições da maré. Os dois pequenos cães que o acompanham não são presos em coleiras. Imagino-o com um em cada braço para atravessar a avenida. Corre a passo regular e rápido, descalço, vestindo apenas um short de praia preto e um boné vermelho.
“Os outros cães que se segurem nas coleiras, porque os meus andam soltos”, parece dizer o moreno do mar, totalmente entregue a seus passos ritmados. Assim também procedeu o diretor do Colégio do Padre, quando a diretora do Colégio das Madres pediu para que, justamente num feriado de Tiradentes, combinasse o horário em que sairiam os alunos internos para a matinê do Cinema Jardim, para que ela mandasse as suas alunas internas em horário diferente. Ao que o padre respondeu ao mensageiro do recado: “Diga à Madre que meus cabritos estão soltos. Ela que prenda suas cabrinhas”. Terá sido essas mesmas as palavras do padre? Mas que importa? O causo eu conto como o caso foi.
Quinta feira e a Mulher do Sétimo Andar ainda não tivera uma ideia para a crônica domingueira. Foi quando cruzou com aquele personagem negro vistoso, a correr com os dois cachorrinhos brancos, e assim principiou a escrever. Já houve semana em que na sexta feira ainda não escrevera uma linha. Que terá dito daquela vez? E por que o diabo dessa mulher insiste em escrever, se para isso não tem obrigação alguma?
Ora, diria ela, escrevo para não enlouquecer. “Esse chavão é velho, mulher. Arranja outro”. Outro dia respondeu ao comentário de um leitor: “Escrevo porque gosto. É o que me mantém viva.” Hoje em dia, ela perdeu a veleidade de publicar em papel, em editoras, com lançamento de livro, matéria na imprensa. Isso já fez muito, no tempo das pesquisas e do ensino.
Hoje ela escreve crônicas com o mesmo espírito com que escreveria cartas. E gosta de saber que para estas existem destinatários. Outro dia uma leitora comentou: “Está pronta para voos mais ousados”. E ela, com seus botões: Memórias? Não serão vendidas no atacado, mas aqui mesmo, no verejo.
Ah, os destinatários dessa Mulher do Sétimo Andar… Ora se isso tem comparação com os leitores invisíveis de um livro! Às cartas, eles lhe retribuem com mimos. Quem não gosta de receber mimo? Dádivas. Sem preço fixado no mercado. Artes. Fotografias do amanhecer, o mesmo que ela presenciara ao vivo. Pode até ser resultados e análise em primeira mão de pesquisas eleitorais. Trocas. Outros querem saber detalhes, sugerem temas. Ou comentam algum pedaço da crônica, que chega a cada um conforme seus interesses. A cronista contenta-se com tudo. Um simples bom dia em retribuição. Ou até ver os dois tracinhos em azul na tela de seu celular.
De uma feita, ela pediu a um de seus leitores, no rol dos três melhores, que lesse um parágrafo de apresentação de seu ensaio de romance. Data vênia, ele comparou aquilo a uma lista de supermercado e sugeriu: “Corta tudo. Deixa apenas as cinco palavras da última frase. Você sabe escrever melhor”. Quanta distância da província em colóquios acadêmicos, uns elogiando os outros!
Crônica é uma literatura leve, qual surfista à superfície das ondas. Ofício distinto do romancista, mergulhador. Terá coragem essa mulher de tornar público o que vem explorando nas profundezas do mar?
A Mulher do Sétimo Andar é chegada a fazer isso. Escreve lá em riba, no título da crônica: Três homens e quatro cães. E põe-se a divagar, seguindo o fluxo dos pensamentos que viajam com ela nas suas caminhadas. Desculpem, queridos, volto o fio à meada.
22 de abril de 2022. Outro personagem do calçadão. Também é negro. A Mulher do Sétimo Andar se acostumou a estimar a idade dos caminhantes pela postura do andar ou correr. Esse terá cerca de sessenta anos, um metro e oitenta e cinco de altura aproximadamente. Veste-se à vontade, porém elegantemente: bermudas cáqui com vários bolsos, camiseta marrom claro com detalhes em lilás, do mesmo tom do lilás do boné. Caminha sem pressa, usando uma sandália de dedo de boa marca. Talvez roupas e sandálias compradas em Miami. Imagino-o funcionário público aposentado de alguma carreira no judiciário.
Também leva um cão de raça pequena a passear sem coleira. A Mulher do Sétimo Andar segue-o de perto, adaptando seu ritmo de caminhada ao dele para observá-lo melhor. Vê quando o cãozito faz festa com uma cadelinha, e ele segue impassível, apenas olhando para trás quando já mais distanciado do enlevo canino. O obediente cão volta a segui-lo de perto.
A Mulher do Sétimo Andar apressa o passo, ultrapassa o meretíssimo, e simula um alongamento num tronco de coqueiro, aquele tipo de alongamento de quem parece estar tentando derribar a árvore com as duas mãos, enquanto as pernas se alongam alternadamente. Faz isso na direção contrária, de tal formas que possa ver o personagem de frente quando ele a ultrapassar.
Passa sério e percebe que está sendo visto por trás dos óculos escuros daquela mulher. Barba branca, bem aparada, óculos de grau sem proteção solar. Miopia avançada. Não terá feito ainda cirurgia de catarata. Apenas retribui o olhar, sem sorriso. Uma lorde. Há que ter havido nobres na sua ascendência africana. Fosse essa caminhada no calçadão de Pituba, na Bahia, um personagem mais comum. Aqui no Recife, capital da Casa Grande, os negros mais raramente se distanciam da Senzala.
Dia abençoado de bonito e ensolarado, essa sexta feira imprensada entre um feriado e um sábado.
23 de abril de 2022. Uma desfeita com o sábado, que amanheceu anunciando chuva. A Mulher do Sétimo Andar cruza com várias carroças humanas no calçadão, a caminho de alguma réstia de sol em seus pontos de venda na areia da praia. Um deles, velho conhecido seu, banguela, corpo curvo ao peso da carroça lotada de cadeiras, guarda sóis, isopor com gelo, bebidas. Seu bom dia é o mais caloroso dos poucos que restaram depois da pandemia.
Aparece o terceiro homem com o quarto cão, pequeno e branco como os três que o antecederam nessa história. Porém o bichinho está segurado numa coleira. O homem é branco. Tem cara de vovô. Caminha pouco, logo se senta no banco do calçadão, o cachorrinho ao lado dele. Fica para trás. A mulher pensa: faltou melanina nesse homem. E segue seu caminho de volta pra casa, com cenas e diálogos do filme de Lázaro Ramos ainda frescos na sua memória.