A última peça foi o vestido de noiva. Estava na prateleira de cima do armário, aquela que só se alcança com uma escadinha. Junto dele, uma sacola com roupinhas de bebê, outra com xales… Ocupando o maleiro do armário, pesadas peças de crochê, uma colcha, almofadas, uma rede. Tudo feito pelas mãos de artista de dona Otávia.
Foi uma longa semana na vida da Mulher do Sétimo Andar, a rever o tempo através de guardados. Guardados para, quem sabe, um dia…
“Esse dia chegou, mulher. A vida não seguiu teu script.” O dia de se desfazer do que já não usa, já não tem para ela nenhuma serventia e poderá ter para outros. Há mais de mês ela vinha separando tudo em sacolas grandes, que mais pareciam mudança de pobre. Foi mais fácil as roupas de loja, bijuterias, lenços de seda, adereços de carnaval, tecidos africanos, toalhas de mesa, guardanapos, chapéus, sapatos, bolsas, aquele baldinho de gelo de prata, presente de casamento que nunca teve serventia… Mas os bordados e crochês relutavam em sair do armário.
O que restou do enxoval de bebê. Lavado e passado a ferro, exposto numa cesta (cestas combinam tanto com bebês em histórias antigas, não é?), ficariam bem num museu. Aliás, era o que bem mereciam. Um museu das artes manuais de bordadeiras, rendeiras, costureiras desse rico Nordeste brasileiro em artesanato e cultura popular. Fosse Europa…
E ela, nas madrugadas chuvosas que antecedem o dia do Bazar, vai arrumando os guardados, tão abrigados que estavam em seus armários, agora expostos à vista de todos. Guardados que logo não serão mais seus. Um comércio em tudo diferente. Só para amigas, primas, irmãs, sobrinhas. Uma festa. Com bolo de noiva e champagne. De onde escreve, ela olha para o bazar e pensa, “que bom, o apurado dessa loja vai para o hospital infantil de Garanhuns, um sonho realizado de meu pai”.
A sala da Mulher do Sétimo Andar foi se transformando em loja. A arara alugada para pendurar vestidos e blusas só chegará no dia do bazar. Por enquanto, eles se ajeitam como podem nos cabides do chapeleiro da sala. Mas os xales e echarpes já estão num cabideiro, bolsas, cintos, colares e chapéus em outro. As peças que encimavam armário de som e gavetas de pastas suspensas e CDs (esses, coitados, em pleno desuso), foram expulsas por enquanto, para dar lugar aos brincos, anéis, pulseiras, máscaras…
***
Era um sábado. Dia sete de março de mil novecentos e setenta. Fui uma semana atribulada, a que antecedeu esse sábado. Muitas providências a tomar, a noiva se deu conta de que a cor do vestido do casamento fazia par com a do tecido do sofá que acabara de chegar do estofador. Foi a vez de dona Otávia desabafar mais uma vez o seu lamento.
– Minha filha, bem que eu queria fazer para você um vestido de noiva como é para ser, branco, com casamento na igreja. Se seu pai fosse vivo, ele não permitiria que você se casasse só no civil. Até Rosa Maria se casou na igreja, minha filha!
– Mas minha mãe, se tiver que entrar na igreja e passar por todo esse vexame, Hamilton não se casa.
Esse era o argumento decisivo. A mãe já se convencera, com a desculpa a dar para a família: o casamento no religioso seria na Bahia, com Dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, naquela época prior do Mosteiro de São Bento em Salvador, para onde os noivos iriam no dia seguinte às bodas celebradas no civil em casa. O mesmo frade com quem ela fizera a primeira comunhão em Garanhuns.
A noiva, que se achava tão livre e tão distante dos rituais burgueses, via-se de repente com a mesma tensão nervosa própria a qualquer moça às vésperas do casamento. Sim, voltariam às lojas de tecidos no dia seguinte para, de última hora, a mãe fazer outro vestido. A mãe, que sempre vestira as filhas com modelos de revistas francesas, atendendo aos caprichos da moda e de cada uma. Que fez o enxoval de todos os netos, como fizera dos filhos, em cambraias bordadas por ela, com bicos e rendas finas.
Estavam justamente conversando sobre esse assunto, quando chegam duas amigas do peito, Janice Japiassu e Lucila Bezerra, trazendo o presente de casamento. Naquele tempo não carecia aviso prévio para se chegar à casa dos amigos. Entraram na prosa de mãe e filha. Quiseram ver os vestidos do enxoval da noiva.
E foram elas, como fossem enviadas por minhas orixás, que até então eu nem sabia que desde sempre estiveram na minha guarda, elas que sugeriram usar um dos vestidinhos que fora feito como parte do enxoval. Estava resolvido o problema.
Espio agora para o vestido azul, de crepe de seda, com leves ondas na horizontal, com as cores do oceano que vejo de minha janela em dias de sol. Como eu não soubera que era esse o vestido? Continua igual, com as mesmas cores em diversos tons de azul, verde claro, mostarda, branco. Lindo, curtinho, como era moda. Adornará o corpo de alguma jovem, filha de minhas amigas, de minhas irmãs. Para mim, ficará no álbum de fotografia em preto e branco, vestindo uma noiva alegre. E a risada gostosa de meu tio Adriano, ele e tia Ritinha nossos padrinhos de casamento, dizendo que nunca ouvira um “sim” de noiva com tamanha convicção.