Festa de aniversário

Nos dias que antecedem o aniversário, ela se faz pensativa. Passa em revista, como um comandante de tropas faria com seus soldados, os aniversários passados de sua vida. O vestido meticulosamente escolhido nas lojas pelo olhar do artista, mal começava o mês de maio. Até que, dias antes da data, dizia, com seu jeito tímido, com um amor de poucas palavras, “acho que o vestido que vi numa boutique vai sentar bem em você”. Para experimentar, era tratada como rainha. As atendentes adivinhavam que não haveria barganha de preço com aquele homem elegante e bem apessoado, que pacientemente aguardava sentado numa poltrona o desfile exclusivo para ele.

            Não lembra de grandes festas. Os aniversários da casa paterna eram, principalmente, uma comemoração da família. O pai despertava todos, menos o aniversariante, logo cedo, e, ainda com roupas de dormir, eles o “acordavam” cantando parabéns, cada um com um presente na mão. Ela não lembra de nenhum aniversário em que já não estivesse acordada fingindo dormir para disfarçar a surpresa.

            O pai era o grande mestre de cerimônia nessas ocasiões. O assunto do aniversário principiava dias antes. Ele ameaçava, “Esse ano o presente vai ser um pinto pelado”. E todos riam, e aquilo ia criando a expectativa da surpresa. Até que um dia, no aniversário da caçula, foi encomendado mesmo um pinto vivo e pelado, que chegou no quarto piando dentro de uma caixa. Ela caiu no choro, mas logo foi consolada com os presentes de verdade. Ah, aquilo era uma festa!

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Este ano o 28 de maio caiu no Domingo de Pentecostes. “Quando chegou o dia de Pentecostes, estavam os discípulos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído, como de vento que soprava impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam reunidos. E apareceram-lhes destacadas línguas como de fogo, pousando sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em várias línguas, conforme o Espírito Santo os impelia a se exprimirem.” (Atos, 2, 1-11)

            No mistério da Santíssima Trindade, o mais simpático dos três é o Espírito Santo. O Deus Pai sempre lembra um pai severo, o que julga, o que pune. O Filho, nas parábolas dos evangelhos, é uma fonte inesgotável de sabedoria, mas também de controvérsias. José Saramago interpreta a crucificação de Jesus como uma espécie de auto-punição. Pois ele não teria sido o único recém-nascido a se livrar da espada de Herodes, que ceifou tantas vidas inocentes por sua causa? Mas será que Saramago não tinha era uma pontinha de inveja, porque os seus ídolos materialistas nunca foram objetos de obras de arte maravilhosas, a encantar nossos olhos em museus de todo o mundo? Melhor uso da tradição cristã fez Dostoiévsky. Impressionou-o tanto a pintura a óleo de um cristo morto, que usou-o como modelo para um dos grandes personagens da literatura, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin.

            Porém o Espírito Santo, ah, o Divino Espírito Santo…

            Pense num professor, tendo como único recurso a voz e a lousa. Explicar aos alunos do primeiro ano do Curso de Ciências Sociais a teoria da Ação Social de Max Weber. Estuda, faz resenha, prepara algumas anotações, acende um cigarro (naquele tempo se fumava em sala de aula). Então entra em campo o Divino. Aquele que habita em cada um de nós, como preferem pensar os budistas. Vem o sopro de um vento forte, as línguas de fogo, a inspiração. O “dia do professor” devia de ser comemorado no domingo de Pentecostes.

            Vejam bem. A imagem de Jesus é a cruz, o sofrimento. A imagem do Espírito Santo é uma pomba branca, a pomba que veio a simbolizar depois a paz entre os homens.

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Havia em Garanhuns um médico clínico geral e obstetra, que gozava de prestígio e, por que não dizer? também de poder. Trabalhou incansavelmente até a morte prematura aos 57 anos, vítima de um câncer avassalador. Antes do consultório, ele atendia em um ambulatório da paróquia da Boa Vista das sete às nove. Descendente de uma família católica e aristocrática (pois não é a aristocracia brasileira assentada na posse da terra?), guardou, vida afora, o espírito de militância juvenil do integralismo.

            Certa feita, Plínio Salgado, em visita a várias cidades do país, passaria um dia em Garanhuns. Os velhos integralistas voltaram a se assanhar. Organizou-se uma cerimônia com discursos, o hino integralista, o Anauê pelo bem do Brasil. Para a cerimônia, encomendou-se a um marceneiro habilidoso uma enorme Águia Branca, símbolo do integralismo.

            Acabada a comemoração ao grande chefe, a Águia Branca ficou jogada num canto da garagem na casa do médico. Até que um dia, a mulher do médico flagrou Mariquinha, a lavadeira da casa, ajoelhada defronte da Águia Branca, uma vela acesa, e ela cochichando um terço.

            “Pois não é do Divino Espírito Santo essa imagem, minha patroa?”

            E tudo vira folclore, assim como a festa do Divino Espírito Santo trazida pelos colonizadores portugueses para o Brasil.

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Vejam que a Mulher do Sétimo Andar não perdeu seu cacoete de começar uma história e sair devaneando por outras. Mas nisso ela está bem ancorada nas melhores tradições literárias. Agora mesmo, está lendo o romance de Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, publicado na segunda metade do século XVIII por um obscuro pároco de aldeia, e que influenciou o nosso Machado de Assis das Memórias póstumas de Brás Cubas, assim como Virgínia Woolf, James Joyce, Samuel Beckett, entre outros. E como devaneia o narrador Tristam Shandy, sem seguir nenhuma linha reta! Vejam bem como essa mulher tem andado em boa companhia.

            Mas voltemos ao tema.

            O ano era 2018. A Mulher do Sétimo Andar decidiu que queria comemorar o aniversário no Central Park de Nova York. A bem da verdade, desde que completara setenta, ela vinha percebendo uma mudança no seu espírito. Passou a se sentir merecedora. Sempre ficara hospedada em hotéis de segunda naquela cidade cara. Dessa vez escolheu um bom hotel perto do parque.

            O simples motivo para passar o aniversário naquela cidade era porque lá, no Hemisfério Norte, o mês de maio é primavera.

            Na primeira vez que morou em Boston, encantou-se com as cores do outono, achou o inverno parecido com as estiagens do Sertão nordestino, e a primavera? Ali parece que havia um planejamento meticuloso para o desabrochar das flores. Por um tempinho, ela começou a sentir o cheiro bom de serragens de madeira espalhadas pelos jardins dos parques públicos, nas floreiras das casas e das lojas. E, surpresa, viu que um belo dia, apareceram as tulipas. Dali a pouco, as magnólias, as azaleas, as peônias… As rosas. Pareciam fossem programadas em computador para aflorarem em ordem, como um desfile de escola de samba.

            Em São Paulo, o tempo gostava de contrariar a Mulher do Sétimo Andar, com uma frente fria às vésperas do dia 28; no Recife, grandes chuvas para estragar a festa. Nada disso. Este ano, pensou, vou para a primavera. Na imensidão do Central Park. E foi. Passou um susto danado no desembarque, quando viu a mala, já retirada da esteira rolante, junto com outras, guardadas por policiais com cães farejadores. Não, ela respondeu com segurança, na mala trago apenas roupas. Fez seu melhor sorriso, encarou os policiais como fosse uma nativa branca, uma senhora com pouco mais de setenta anos; segurou a mala de rodinhas, e caminhou solerte e tranquilamente para o portão de saída. Somente fora, as pernas pegaram a tremer. Céus! Já pensou se descobrem o camarão de Cabrobó trazido para a viagem no Central Park?

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