Dia de Graça

Hoje foi um dia especial. Logo que acordei, ouvi o celular chamando na sala. Era Miguel, dizendo que estava a caminho. Sem explicações, como é de seu feitio, ele atendia ao meu apelo numa mensagem de e-mail:

“ (…) Você já me disse há tempos que não queria mais nenhuma comemoração. Respeito sua decisão. Mas esse ano, meu filho, se você quiser, venha passar a sexta feira aqui comigo. Podemos pedir uma comida japonesa. Podemos ver um filme na minha nova televisão, que você nem conheceu ainda. Mas se você não quiser vir, tudo bem. Beijo da mãe.”

Não contava que ele viesse. Quando chegou, corri à porta para lhe dar os parabéns. Quem me conhece e a meu filho primogênito, saberá avaliar a alegria que invadiu meu coração. Foi um dia de graça. Aniversário de filho sempre é um dia especial para a mãe. Naquele distante 14 de julho, a caminho da sala de parto, perguntava à enfermeira que conduzia a maca, “que dia é hoje”? E ela não compreendeu meu júbilo quando exclamei, “que maravilha, meu filho vai nascer no Quatorze Juillet, dia da queda da Bastilha!”.

Hoje ele fez a barba, eu cortei seu cabelo, um hábito que perdura desde a Quarentena. Um dia caseiro, pleno. A noite vimos os primeiros capítulos de um seriado da Netflix, “Transatlântico”, que uma amiga havia indicado a propósito de Walter Benjamin. Atirei no que vi, matei o que não vi.

***

Conheci Albert Hirschman em São Paulo, no verão de 1983. Foi meu vizinho de sala no mês que passou no Cebrap. Estava em licença sabática do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, New Jersey. Havia passado quatorze semanas em seis países da América Latina, visitando projetos que receberam apoio financeiro da Fundação Interamericana. Naquele período no Cebrap, escreveu o primeiro esboço de um relatório preparado para aquela Fundação, sobre “Experiências de Base na América Latina”.

            Nessa época, aos 68 anos, Hirschman era economista conhecido e famoso. A meu juízo, já ultrapassara a idade de economista para entrar na de sábio. Conhecera a região Nordeste brasileira em pesquisas acadêmicas sobre a ousadia Sudene, que resultaram em um de seus livros mais conhecidos entre nós. E certamente foi nessa região que conheceu nossos cantadores em suas Pelejas, das quais José Paulo Cavalcanti Filho nos brindou com uma linda amostra na última crônica publicada na “Revista Será?”.

            Naquele verão de 1983, eu ocupava uma sala no andar superior da velha casa na Vila Mariana, onde ainda hoje funciona aquele centro de pesquisa, rua Morgado de Mateus, 615. Eu compartia uma sala com outra Teresa, no que seria, na antiga casa, um quarto. Com a reforma da casa, esse quarto repartiu-se em três salas. Para entrar nas duas salas individuais, o ocupante deveria passar pela nossa. Pois bem, todos os dias, o nosso ilustre visitante chegava lá pelo meio da manhã, trazendo uma sacola cheia de mexericas. Deixava uma na minha mesa e outra na de Teresa Caldeira.

Um dia, na sala do cafezinho, ele me disse que gostaria de conhecer os cantadores nordestinos que faziam desafios aos domingos na praça da Sé. Combinamos o dia. Calhou de ser um domingo ensolarado, sem chuvas. Havíamos contratado a babá para estar logo cedo com Miguel e Pedro, que tinham então 7 e 4 anos. Eu e Hamilton fomos buscar o professor e sua mulher, dona Sarah, no hotel. Fotos e algumas conversas na lendária Praça da Sé, que alguns anos depois seria palco dos maiores comícios pelas eleições diretas. Depois, voltamos para buscar os meninos, para irmos todos dar uma volta e almoçar na vizinha cidadezinha do Embu das Artes.

(Que lembrança essa que me despertou, vendo com Miguel a série Transatlântico. Albert Hirschman muito jovem, fugindo da sanha antijudaica do nazismo, na pele de um ator tão bonito como certamente ele foi). O banco da frente do carro ocupado pelo professor, com suas pernas compridas. Atrás, mulheres e crianças. Em casa, antes de pegar a rodovia Régis Bitencourt, tomou-se um cafezinho. Lembro da observação de Hirschman sobre a cesta de frutas: quanta banana, uma marca tão brasileira.

No Embu das Artes o casal se interessava por quase tudo; pelos quadros expostos nas calçadas, pelos artesanatos… Ele comprou uma sandália de couro cru, e se admirou de que finalmente ali era o primeiro lugar brasileiro onde encontrava um calçado do tamanho de seu pé gigante. Almoçamos uma comida muito típica dos domingos paulistas: frango com polenta.

***

Em 1989 fui fazer uma imersão de inglês em Washington por um mês, antes de enfrentar o primeiro pós-doutorado no MIT em Boston no ano seguinte. Tinha o endereço do professor. Escrevi uma carta manifestando meu desejo de visitá-los. Ele me respondeu prontamente, sugerindo o horário do trem, e que iria me esperar na estação. Cheguei ao final da manhã. Em seu carro, fomos primeiro a uma farm onde poderia encontrar morangos silvestres, pequeninos, sem adição de agrotóxicos. Além dos morangos com creme de leite, eles haviam providenciado cocadas para a sobremesa. Uma comida com toque brasileiro.

            Dona Sarah terminava os preparativos do almoço quando chegamos. Quanta diferença aquele casal de velhos, que sozinhos davam conta das comezinhas tarefas da cozinha, comparados com nossas senzalas que teimam em perdurar nas casas brasileiras… Muitos anos depois, já morando no Recife, ao fazer a reforma de minha cozinha, lembrei-me da pequena e bem equipada cozinha do casal Hirschman. Até quando terei a ousadia de dispensar a senzala?

Antes de me deixar de volta na estação de trem, ainda passamos na Universidade de Princeton. Era um domingo, tudo fechado. E ele, chave em punho, com um olhar azul e buliçoso que o ator do seriado conseguiu expressar bem, mostrou-me sua confortável sala de professor emérito (não pude deixar de lembrar o pequeno cubículo do Cebrap onde escreveu um texto de sabedoria), com portas abrindo para um imenso gramado. “Vim te mostrar só por um certo orgulho de quem chega ao final da carreira”.

Salve a pátria que acolheu tantos imigrantes ilustres durante o horror do nazismo!

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