De cães e pets

A Mulher do Sétimo Andar espia pela janela do sétimo andar. São 7 horas da noite de segunda feira, 8 de abril de 2024. As luzes potentes dos postes do calçadão estão acesas e dá para ver os ciclistas da noite. Uma noite enfim fresquinha, com a brisa do mar. Os dias têm sido tão absurdamente quentes, que nem à noite refresca. Mas hoje sim, está agradável, como costumam ser as noites recifenses.

Um cachorrinho vira-lata caminha faceiro pelo calçadão. Chega a um recando da pista de ciclismo onde se juntou água das chuvas da madrugada, e bebe água com o focinho para baixo, à maneira dos cães. Daqui de cima não dá pra ver sua língua espichada. Assusta-se com um ciclista que passa quase o atropelando, e se safa com a agilidade aprendida pelos cachorros de rua, pulando de volta à calçada. Volta para beber água na mesma poça e, dessa vez, a outra bicicleta que se aproxima, vem na mão oposta, e ele consegue matar a sede. Espio quando caminha por onde veio, pelo calçadão. Pelo andar, deve ser um cão jovem.

E pelo tamanho e cor dos pelos, faz-me lembrar o vira-lata de meu filho Miguel. Jota chegou novinho lá em casa, ainda em São Paulo, juntamente com sua mãe, Priscila, presente de minha sobrinha Joanna. Quando nos mudamos para o Recife, trouxemos os dois. Antes da viagem, Miguel havia ido comigo à rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, para comprar vários transformadores para adaptar os eletrodomésticos de 110w à energia de 220w do Recife. Mas não é assim tão simples.

A geladeira pifou. Chamamos um técnico da redondeza de Pau Amarelo, onde Miguel ficou morando comigo, enquanto se fazia a reforma de meu apartamento do Pina, e enquanto escolhíamos a casa dele em Aldeia. Aí que se deu um diálogo interessante com esse precário técnico. Quando soube que os dois vira-latas haviam viajado conosco de avião, ele não se conformou. Na certa pensou, lá com seus botões: eu nunca viajei de avião, como pode, trazer de tão longe, esses dois vagabundos de rua? Perguntou mais de uma vez: mas eles vieram de avião? Pagando passagem e tudo? Não se conformava. Ainda por cima, que Jota não havia simpatizado com ele, e precisamos trancá-lo para não agredir o homem. Chegou a nos oferecer um cachorro de raça que o vizinho dele queria vender.

Jota adaptou-se bem à casa da praia de Pau Amarelo, à casa de Aldeia, desde que estivesse junto ao dono. Como todo cão. Anos depois, a mãe adoeceu e teve de ser sacrificada. Quando Miguel saiu com ela de casa, sangrando, Jota percebeu a situação e ficou chorando, como choram os cães. Quando viu que o dono voltou sem ela, chorou mais ainda. Mas logo meu filho mostrou a coleira, ele balançou o rabo de alegria, e, depois de um bom passeio pela redondeza, já nem se lembrava mais da tristeza. E Miguel comentava: como é rápido o luto dos cachorros.

Pensa tudo isso a Mulher do Sétimo Andar, espiando o cachorrinho sem dono caminhando pelo calçadão. Observa ele entrar no terreno entre o calçadão e a praia. Terá ali encontrado algum resto de comida? A liberdade de não ter coleira costuma ter um preço alto para o estômago. Naquele terreno, certamente terá o cheiro de muitos cocôs de seus colegas de coleira, os pets. Ele é apenas um cachorro.

A Mulher do Sétimo Andar perdeu o gosto de caminhar pelo calçadão, por causa do cheiro de cocô de cachorro desse terreno tão aprazível. Aqui no Pina, essa parte arborizada é mais larga. (Quando o mar começar a invadir a avenida Boa Viagem, o Pina será o último bairro a ser atingido, pela distância entre o mar e a avenida). A regra de quem passeia com seu pet, é levá-lo a essa área bonita e arborizada com coqueiros e castanholas, para fazer cocô. Recolher o cocô em um saquinho de plástico? É coisa para poucos. Para ir até o mar, a pessoa terá que olhar com cuidado onde pisa. Às vezes, até no próprio calçadão. A incivilidade campeia na avenida mais rica e mais policiada da cidade.

Nas madrugadas em que escreveu os capítulos finais do livro sobre Canhoto da Paraíba e João Pernambuco, a Mulher do Sétimo Andar vem observando o movimento da rua. Há uma sutil mudança na relação de classes sociais. Como se a periferia tivesse iniciado uma ocupação, quase imperceptível a olho nu. O bairro do Pina está imprensado entre a comunidade do Bode e Brasília Teimosa. Às três da madrugada, enquanto o forte esquema de policiamento não chega, uma afronta juvenil, palavrões, risadas altas, sobe do calçadão para os prédios encastelados da avenida. O calçadão é deles. Arreganham os dentes à riqueza encastelada.

Para manter a beleza dos equipamentos urbanos, dos novos banheiros públicos do calçadão, há que mantê-los vigiados durante o dia por um guarda homem e uma mulher. (Ah, os banheiros públicos de Tóquio!). Enquanto os policiais não chegam, permanecem fechados e com grades nas portas. Como a cidade toda não pode ser vigiada, ou o governo teria que gastar um bom pedaço da verba pública para pagar policiais armados, as grades de proteção da linda Via Mangue foram roubadas. O lixo e a violência se acumulam nas calçadas da rua, nas beiras dos rios cantados pelo poeta João Cabral, pela cidade inteira. Uma cidade deserta.  Nos restaurantes de luxo da rua Capitão Rebelinho, no Pina, os frequentadores terão que descer em frente à porta de entrada, deixando o carro com o manobrista. A conexão de informática às vezes falha, porque foram roubados os fios das gambiarras deixadas na fiação de rua. Prato cheio para propostas truculentas de governo no vindouro 2026: protejamos os homens de bem contra os bandidos. Ou vocês pensam que é a ideologia que está por trás das plataformas eleitorais?

O mesmo massapê da cana que produziu o maior pensador social brasileiro, Gilberto Freyre, um dos grandes poetas do país, João Cabral de Melo Neto, esse massapê da cana, que se espraiou nos estados vizinhos, produziu desse lado de cá uma cultura escravocrata que deitou raízes profundas nos mangues, depois transformados na periferia da cidade. Que invade o Recife inteiro com sua pobreza, sua falta de cidadania, a violência do tráfico de drogas, os altos índices de mortes juvenis, as prisões superlotadas.

E la nave va. Olhando pelo outro lado, quem sabe, o Recife não será o líder de uma nova revolta, que contraria todas as velhas teorias ainda acalentadas por uma esquerda míope? Temos a mania de ser o primeiro em tudo. Afinal, o Recife foi pioneiro numa revolução de verdade, a de 1817. E nosso herói nacional, por justiça, deveria ser Frei Caneca e não Tiradentes. Os sinais indicam que também aqui pode despontar algo que não está na cartilha das teorizações dos partidos políticos e dos movimentos sociais. Mas isso são apenas devaneios e elocubrações de uma mulher, que tem na janela do sétimo andar, o seu laboratório de observação social.

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