Casinha de boneca

A Mulher do Sétimo Andar gosta de viajar. Principalmente porque tem chance de brincar de casinha. Por isso, em vez de hotel, ela escolhe sempre para se hospedar, flat. Os cenários mudam a cada novo local em que se hospeda. Em Lisboa, chegou a passar três semanas num desses apartamentos de aluguel por curtas temporadas. Que lembre, foi a mais longa experiência. Foi ali, em dias frios e chuvosos de um outono, que ela mais escreveu, alimentando o blocomomentear recém-criado.  

Mas suas experiências frequentes são mesmo em São Paulo, sua segunda casa, primeira por tanto tempo. É aqui que ela está agora. Veio comemorar o aniversário da entrada nos 80 anos. Nossa, nem parece…Pois é, meus queridos leitores, a Mulher do Sétimo Andar entra para nova década de vida nesse maio de gêmeos.

Afinal, o ano é esse. Foi nesse ano que ela despertou de um pesadelo, que incluiu até uma semana de hospital para tomar antibiótico. Sarou da bronquite, da diverticulite, e tomou-se de ânimo de comemorar a vida. Mas aí pensou: qual o charme de comemorar 79 anos? Se fosse 69, sim, um número cheio de significado sem vergonha… Aí que se lembrou de sua infância em Garanhuns.

Sua infância foi numa casa cheia de quartos e de empregadas e agregados na mesa da sala e na mesa da cozinha. Maria era irmã da cozinheira e às vezes aparecia na hora do almoço com os caçulas, Carma e Júlio. Ambos tinham a mesma idade dela. Só que, enquanto ela tinha 13 anos, por exemplo, Maria dizia que Carma e Júlio tinham entrado para os 14. Muda o verbo, muda o sentido: “entrou” e não “completou”.

Assim, para ter um número redondo que justificasse a festa, a Mulher do Sétimo Andar decretou: esse maio, entro para os 80. Mobilizou o filho de São Paulo, os amigos, marcou passagem, encomendou um bolo de noiva para levar, e foi. Está aqui. Já houve a primeira comemoração, com amigos de décadas, de desde quando viera morar em São Paulo. Aqueles com quem viveu o período festivo da redemocratização em nosso país.

Ah, foi uma noitada memorável. Calhou de ter sido uma noite de temperatura perfeita: nem frio nem calor. Seis em volta de uma mesa redonda, no aprazível jardim de um bistrô francês. Faltaram dois, que estavam fora de São Paulo. Principiaram com um pró-seco para acompanhar as entradas. Brindes. Presentes. Mais abraços. Ao ritmo da boa prosa de velhos amigos, chega-se à sobremesa. Mais champanhe. Agora, para acompanhar o bolo de noiva, com direito a velinha de luzes e parabéns. Novos brindes. Parecia até festa de russo, com tanto brinde.

Vocês, que já conhecem essa Mulher do Sétimo Andar, sabem muito bem que ela escreve assim, por caminhos tortuosos. Entra por uma perna de pinto e sai por uma de pato.

Casinha de boneca! Esse é o tema, mulher.

Dessa vez, a Mulher do Sétimo Andar tomou um susto danado quando, já na véspera da viagem, recebeu um comunicado da responsável pelo aluguel, com as orientações de como entrar no apartamento. Tudo informatizado. Um código para a primeira porta, outro para a segunda porta, de vidro, que dá acesso a uma escada de 21 degraus, o equivalente a dois pavimentos, para finalmente chegar ao quarto de número 3, nomeado Beija Flor, com mais um código para entrar. Gostou de saber que ficaria num espaço nomeado por um pássaro.  Contudo, no detalhamento das instruções, referia-se ainda a que, na porta de vidro e na porta do quarto, antes de digitar o código de sete números, teria que passar a palma da mão no visor.

Deus do Céu! Era muita tecnologia para uma mulher que estava sempre correndo atrás dos jovens para sobreviver nesse século XXI. O filho estaria trabalhando na hora do desembarque, mas não teve outra alternativa. Lá estava ele no aeroporto, todo satisfeito, como ficam os filhos quando sentem a sua valia para pais que eram tão sabidos. Ele transferiu uma reunião da hora do almoço para as 4 da tarde, e o que seria um tormento enfrentar sozinha, transformou-se num dia de boas prosas com o filho. Começava ali a comemoração da entrada nos 80.

Adorou o apartamento. Com o passar dos dias, acostumou-se às senhas, embora andando sempre com o celular e mais um papelzinho com as três senhas. Logo no primeiro dia, antes até de desarrumar as malas, foi às compras num hortifruti próximo, na rua Tabapuã. Minha senhora, que frutas! Que queijos! Poucos fregueses, sim, senhora, o rapaz pode acompanhá-la e nessa distância não cobra frete. Veio conversando com o rapazinho simpático, Carlos. “Moro no Morumbi”. Deve ter percebido um olhar admirado e completou: “Em Paraisópolis”. O Morumbi comporta todas as classes sociais.

De onde vem essa necessidade premente de fartura na mesa? Nunca passou fome. A imagem dos flagelados da seca que chegavam em Garanhuns em anos de estiagem? a vizinhança da fome? será daí?

Aos poucos, o pequeno flat foi sendo arrumado. Frutas em fruteiras improvisadas na mesa. É ver uma natureza morta: mexerica, banana, limão, abacate, mamão papaia. A mesa redonda de tampo de vidro não lhe agradou. Em vez dos joguinhos americanos de plástico, improvisou, com duas toalhas de banho, uma toalha branca na mesa. Ficou mais aquecida. Brincou de casinha o resto do dia. Nem saiu para jantar. O almoço tinha sido farto de comida e de prosa boa com o filho. Na ceia, ouvindo o piano de Tia Amélia, inaugurou a nova casinha, já toda arrumada, servindo-se de frutas sensuais, dignas de completar um dos poemas eróticos de João Cabral de Melo Neto. Sim, aquele mesmo, que fala das frutas nordestinas, que melhor comê-las na cama que na mesa, e que inspirou Alceu Valença a compor uma de suas canções de maior sucesso, Morena Tropicana.  Caquis vermelhos por fora e por dentro. Os misteriosos figos com suas doces reentrâncias molhadas.

Na primeira madrugada, acordou com o relógio biológico, que no Recife lhe desperta a tempo de saudar a Aurora. Aqui em São Paulo, a essa hora, o sol ainda dorme. Só entrará nesse pequeno apartamento pelas 10 horas da manhã. Os bem-te-vis anunciam os primeiros clarões. E ela cumpre a rotina. Principia com um copo d’água, limão, cúrcuma e própolis. Coloca primeiro os ingredientes e, ao ouvir o ruído do fio de água da torneira do filtro caindo no copo, transportou-se ao curral da fazenda. Todos ainda de pijamas e chinelos, na madrugada fria do Agreste, com um copo na mão, esperando a vez de chegar bem perto e ver o vaqueiro tirando o leite da vaca direto no copo, misturando o açúcar do fundo. O segundo copo já não seria açucarado. E voltavam para o aconchego dos cobertores, para mais um cochilo antes do farto café da manhã sertanejo.

Escova os dentes, lava o rosto com água fria, e arma um altar possível na mesa coberta com a toalha branca. A casca grossa da mexerica vira porta-incenso. Flores do campo dentro de um copo d’água, enfeitam a mesa de coloridos que conversam com as frutas. Improvisa uma meia luz de templo. Forra uma toalha de banho no chão. Duas de rosto farão as vezes de uma almofada de meditação. São 5:15 de uma madrugada sem sol. Coloca no JBL o som de Yoga & Meditação.

Tudo o mais que acontece na vida dessa Mulher do Sétimo Andar, durante as duas semanas em conhecidas terras paulistanas, teatros, museus, jantares, almoços, abraços, tudo o mais é lucro.

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