

Vestidos de noiva de Emília Guilhermina de Azevedo
15 de agosto de 2024
Frei José Milton de Azevedo Coelho, OFM, publicou em 2011 o livro Em busca das raízes – Genealogias de Famílias Bezerrenses. O lançamento foi eu uma pousada de Serra Negra, distrito de Bezerros, com grande comparecimento de vários dos familiares citados na genealogia. Miltinho, como era chamado em família, era primo de meu pai. Adriano, meu primo, um dos 11 filhos de tia Mariana, irreverente, lá estava no dia do lançamento, curioso para conhecer “a primeira foda”.
Emília Guilhermina de Azevedo era chamada “Mãe de Casa”. Nasceu em 15 de agosto (dia em que escrevo esta crônica) de 1836, e morreu em 1929, com 93 anos de idade. Viúva do segundo casamento, continuou morando na mesma casa onde nasceram seus filhos, com a família do caçula, Yoyô Guilherme, meu avô. Ajudou minha avó Palmira a criar os filhos.
Foi casada em primeiras núpcias com o viúvo septuagenário Luiz José de Vasconcellos em 1851, portanto, com 15 anos. Porém, em duas outras passagens do mesmo livro, Frei Milton se refere ao fato dela ter casado com 12 anos, ainda menina. Ouvi essa história pela boca de meu pai, grande contador de histórias, em almoços festivos na casa de Garanhuns. Ele se referia a ela ter casado menina de 12 anos, como castigo do pai por ser muito desobediente. E que teria levado, junto ao enxoval, a coleção de bonecas.
A semana passada, estive finalmente na “Casa da Cultura” (antiga Estação Ferroviária) de Bezerros, para ver os dois vestidos de noiva dessa minha bisavó Emília. Infelizmente, pela inaptidão da fotógrafa, e pelo empecilho da vitrine onde estão expostos os vestidos naquele museu, a foto que segue com esta crônica não é fidedigna às cores e à beleza dos vestidos branco e verde.
O primeiro marido de Emília, era um rico fazendeiro em municípios agrestinos ao redor de São Joaquim do Monte, Camocim de São Félix, Bezerros… Não encontrei a data do nascimento nem da morte desse primeiro marido de Emília. O que se sabe é que ela só veio a se casar de novo aos 36 anos, em 1872, com um comerciante remediado de Bezerros, José Antônio de Mello. Pela foto da casa de meus avós, recordo que a Mãe de Casa não era uma mulher especialmente bonita. Porém, certamente seria cobiçada por muitos: uma viúva virgem e rica, dona de latifúndios e escravaria. “Ela dizia que podia casar de véu e capela. Mas casou de verde”, segundo o autor do citado livro. Mesmo sendo virgem, a igreja católica, à época, não permitia que as viúvas se casassem de branco.
Possivelmente pela idade avançada (36 anos), Emília Guilhermina de Azevedo teve apenas 5 filhos: Maria José de Azevedo Mello (Lilia), nascida em 1874 (morreu em Bezerros aos 107 anos de idade); José Antônio de Azevedo Mello (Zuzinha Guilherme), nascido em 1876; Inês Guilhermina de Azevedo Mello; Silvério de Azevedo Mello; e o caçula, Francisco de Sales de Azevedo Mello (Yoyô Guilherme).
O meu avô se chamava Francisco de Sales em homenagem ao santo italiano, sendo Emília uma mulher devota e conhecedora das histórias de santos. (Aqui no Brasil é mais comum os Franciscos de Assis, outro santo italiano). Porém, no cartório de Bezerros, o registro do sobrenome dos descendentes de meu avô, passou a incluir o Sales no sobrenome.
Uma coisa que sempre me pareceu estranha: os apelidos Zuzinha Guilherme e Yoyô Guilherme. Fui pesquisar no livro do frade. E foi mais um dado a me indicar que, ao contrário de toda reverência, patriarcalmente prestada através dos José Antônios e Franciscos, que se multiplicam por dezenas entre meus parentes, a grande matriarca da família foi na verdade Emília. Seu pai, o “Coronel” João Guilherme de Azevedo, homem importante naqueles Agrestes, colocou o sobrenome Guilherme nos filhos e Guilhermina nas filhas. Permaneceu na descendência, porém, apenas o sobrenome Azevedo.
Pois não foi em deferência ao pai de Emília, os codinomes Zuzinha Guilherme e Yoyô Guilherme? De pouca serventia foi o Mello herdado de José Antônio.
A história dessa “Mãe de Casa” sempre me encantou. Há anos, tomei-a como inspiração para um romance inédito, que dá corpo e desejo aos personagens, e um rumo diferente à descendência de Emília. Hoje, aos 188 anos de seu nascimento (em 15 de agosto de 1836), publico nesta crônica um fragmento daquele romance. Os mais afeitos à literatura, verão nesse fragmento a influência de Nabokov (Lolita) e Kawabata (A casa das belas adormecidas). É isso mesmo.
***
“Era uma vez uma menina que vivia com o pai, a mãe e sete irmãos. O pai, dono de terras e escravos, criava gado. Por ser a única filha, Emília foi sempre a preferida do pai. Porém era traquina. Teimava em contrariá-lo. Com os irmãos e filhos de moradores e escravos, saía de casa a armar arapucas para caçar passarinho ou matar lagartixa com estilingue. Era proibida de entrar na mata, lugar de homem. Quando desobedecia, e desobedecia muito, recebia como castigo não tomar banho de rio. Entre a floresta e o rio, Emília floresceu em prazeres proibidos e punições. Que não a impediram de ser amada, quase venerada, pelo pai.
Vizinho deles morava o fazendeiro mais rico da região. Velho, mais de setenta anos, viúvo. Todo dia, depois do almoço, vinha tomar um cafezinho e ter um dedo de prosa com o pai de Emília. Da última travessura, sorriu olhando nos olhos da menina e disse sério, como a completar o castigo do pai:
– Da próxima vez, venho te buscar para casar comigo.
Emília tinha acabado de completar doze anos. Seios de umbu maduro, os primeiros pelos pubianos. Ainda não menstruara. Casou-se como uma princesa de contos orientais.
Foi no ano da graça de 1848. Levou, com o enxoval, as bonecas. O marido mandava buscar no Rio de Janeiro mais bonecas, as mais bonitas. E Emília criou caprichos: até costureira à disposição dela e das bonecas. O véu e a grinalda do vestido de noiva faziam parte de seu tardio brincar de menina.
A mucama recebeu ordens para não deixá-la ir à mata. Mas Emília desobedecia. Sem castigo, tomava banho de rio todo dia, num sítio com cachoeira.
Um dia o marido soube. À noite, à hora da ceia, olhou a menina de tranças amarradas com laços de fita, um vestidinho de algodão enfeitado de rendas. Sentou-a no colo. Beijou-lhe a face assustada. Emília sentiu embaixo da coxa esquerda algo se avolumando. Com graça, assentou-se mais à vontade; o velho a lhe dar na boca doce de goiaba em calda feito pela negra cozinheira, com queijo de manteiga mandado da casa do pai dela. Sentiu um calor que subia pelo corpo como o vento da mata e descia como a cachoeira.
Enquanto o marido lhe implorava, como a uma rainha, um bom comportamento, ela, sem olhar para ele, mexia de leve a bundinha.
Nessa noite, a mucama foi dispensada dos serviços de quarto. Emília deixou-se despir de costas, olhando para a janela de onde ouvia, no escuro de uma noite sem lua, o farfalhar das folhas do cedro. Levantou os braços, como fazia para a mucama, para fazer deslizar pelo seu corpo magrinho a camisolinha branca bordada de bicos e rendas de bilro.
O velho vigiou o sono da menina. Imaginou o sonho que abria ligeiramente os lábios dela num sorriso e num murmúrio que ele não escutou. Esperava novos sonhos de Emília.
Passaram-se três noites de vigília. O rico senhor de terras cumpria preceito de caboclo pelo desabrochar da menina. Só se permitia espiar o sono dela. Para sufocar um desejo que se tornara insuportável, de dia trabalhava mais do que nunca, numa espera desesperada. Nem precisava. Para isso possuía escravos e moradores. Depois da terceira noite de vigília, saiu cedo de casa com uma dor no peito que já conhecia: gases de comidas mal digeridas. Precisava se alimentar com mais parcimônia. Nesse dia, voltou para casa só a tempo de fechar os olhos para sempre.
Emília, vestida de negro, assustada com a morte, menstruou pela primeira vez. Seu choro não era de viúva, mas de uma dorzinha no baixo ventre que desconhecia.
O pai quis levá-la de volta para casa. Mas a rebeldia de Emília dispunha agora do sustento da posse de terras, gados e escravaria. Viúva, guardava uma virgindade que atiçava os homens. Passou a se vestir de calças compridas, que mulheres não usavam naquele tempo, cabelos presos, chapéu, botas. Contratou professor. Aprendeu a ler, escrever, fazer contas e alguma coisa do mundo em histórias e geografias. Josué, filho da mucama, com quem penetrara em matas maiores que as da fazenda do pai, foi seu único colega de classe.
Não houve adolescência para Emília. Sua têmpera altiva resultou numa moça forte, de vontade própria. Alforriou sua mucama (a quem deixou que usasse o nome africano, Dallá) e o filho, Josué. Mandou que construíssem para eles uma casa próxima à Casa Grande, distante da Serra onde viviam os escravos.
Dona de seu destino, Emília passou a guiá-lo segundo a sua vontade. Fez prosperar as terras do finado marido, agora suas. Aprendeu por conta própria artes de mandar e ser servida, o que a acompanhou, mesmo depois de se casar, aos 36 anos, com um tal José, quatro anos mais velho que ela.
José era um homem alto, cabelos louros e ondulados, barba e bigode levemente ruivos de um antepassado holandês. Aparentava astúcia e fineza ancestral nobre, mas sem terras nem heranças.
Emília deixava para o marido todas as poses de mando. Da casa para fora. Da soleira da porta para dentro, continuou no comando do lar e dos negócios. Josué cuidando da contabilidade das fazendas.
Sete meses depois de casada, deu à luz uma menina que recebeu o nome de Maria Emília. Ninguém, nem o marido, ousou comentários à sua vista. A filha tinha os olhos verdes em pele escura, quase negra, única entre os irmãos que vieram depois, todos branquinhos.”