Diário do Pina

31 de agosto de 2024

A Mulher do Sétimo Andar voltou a caminhar com regularidade no calçadão da Avenida Boa Viagem. Foi uma grata surpresa reencontrar alguns personagens, que já foram protagonistas de suas crônicas. Um deles, desses que limpam a vista da gente, é um jovem negro atlético, que corre descalço, só de calção de banho, segurando uma coleira em cada mão, e sem dar a mínima para os dois cachorrinhos que exploram soltos as delícias do calçadão e entorno. Reparou que ele criou gordurinhas na barriga. Ah, meu jovem, a idade chega para todos!

Como não lembrar o filme que ela viu recentemente, Testamento? O filme se passa em um residencial de idosos do Canadá. O diretor tem um belo curriculum na carreira artística. Entre as cenas no espaço interno da bela casa e a área externa, vários enredos se sucedem. O protagonista/narrador é um velho, com o qual ficamos simpatizando desde a primeira cena. Logo ao início, ele aparece  caminhando tranquilamente em um parque. Ao voltar, encontra outro morador, acabado de chegar de extenuante exercício de bicicleta, sendo recebido no meio fio da calçada pela dedicada esposa, ansiosa para saber qual o recorde atingido por ele naquele dia. Vemos ele tirar o capacete, os óculos, começar a entortar a boca e cair mortinho da silva. O desespero da dedicada esposa, gritando para todos ouvirem a vida de exercícios e alimentação saudável do marido, um hércules, que ainda trepava com apenas meio viagra! Como morto? Era um equívoco de Deus.

Talvez o que faça a diferença seja fazer exercícios e caminhadas por prazer, ou fazer como lição de casa prescrita pelo médico.

Em sua longa trajetória de caminhante, desde que veio morar no Recife em 2007, a Mulher do Sétimo Andar já presenciou muitas mudanças. A começar pelo próprio calçadão, que trocou as pedras ditas portuguesas, pelos tijolinhos ecológicos com belas cores neutras. Na época, ela lembra que foi uma querela danada na imprensa: os defensores da tradição ardentemente contrários aos tijolinhos ecológicos. E o resultado calou a boca deles: ficou tão bom, que ninguém nem se lembra mais daqueles tijolinhos ditos portugueses, irregulares, com um cimentado ao meio, horrível e estreito para os caminhantes.

Parecia até que, com a mesma área de antes, aquele calçadão crescia. E cresceu. A estreita faixa de cimentado era agora o calçadão inteiro. E hoje, aos finais de semana, os velhinhos madrugadores precisam firmar bem sua caminhada mais lenta e seu privilégio de velhos, para disputar com os inúmeros grupos de jovens fardados com camisetas iguais, olhando para os relógios que marcam o tempo, pegando água e banana junto aos apoios, e depois lotando todos os cafés da manhã dos restaurantes de Boa Viagem, que descobriram esse filão domingueiro.

A atual, é a terceira versão das antigas barracas de coco, que eram cobertas com palhas secas dos coqueiros. Há muito essas barracas vendem muito mais que a saudável água do coco verde, com direito à laminha raspada da volumosa casca, com uma lasca do próprio coco servindo de colher. Uma dessas barracas, recentissimamente, sofisticou ainda mais a oferta, com um dia na semana com ostras ao som de jazz.

O horário da caminhada madrugadora, à luz da Aurora, sempre foi o preferido pelos mais velhos. À tardinha/noite chegam os skates, os caminhantes mais jovens, ciclistas que aproveitam o escuro para invadir o calçadão, em vez de usar a pista de bicicleta cheia de curvas. A paisagem humana é variada no calçadão. Um dos poucos espaços democráticos onde cabe ricos e pobres, jovens e velhos, pagãos e cristãos, bonitos e feios, alegres e tristes. E os cães sem dono. E os pets de coleira. No decorrer desses 17 anos de caminhada, alguns velhos sumiram do calçadão. A taxa de mortalidade dos velhos homens é cruel, em comparação com as mulheres, que continuam firmes: algumas debulhando um terço, outras de cabelos longos, saia e tênis: as evangélicas.  O calçadão aceita todas as religiões.

A Mulher do Sétimo Andar sempre se distraiu, enquanto caminha, escutando flashs de conversas. Construiu muitas histórias com esses retalhos de prosa. Hoje ela observa como é visível o avanço das igrejas evangélicas. O motoqueiro evangélico, que vai ao trabalho diariamente às 6 da manhã (antes era às 5:30 – deve ter melhorado de posto no trabalho), foi quem inaugurou espalhar a palavra de Deus aos brados, cumprimentando os caminhantes enquanto entoa cantos de louvor. Depois surgiu um ciclista. Hoje, ela cruzou com uma mulher de saia, conduzindo um carrinho de mão cheio de cocos verdes, e pregando, profetizando: o mar invadindo a praia, as queimadas tomando conta do mundo, os ventos uivando: recados de Deus aos homens infiéis. Ao passar pela portaria do prédio, o zelador explicava para o porteiro da noite, que naquele tempo os anjos desciam à terra.

E a Mulher do Sétimo Andar segue seu caminhar, pensando: são dois empregos bons, bem remunerados: pastor de igreja evangélica e político. Estes, que só aparecem nos períodos pré-eleitorais, sempre sorrindo, barriga cheia, nas bandeiras de coloridos diversos a tremular à brisa do Recife. Para não pensar no assunto (deixa esse pensar para os jovens militantes), espia apenas as bandeiras coloridas plantadas no calçadão, como se elas não tivessem conteúdo algum, apenas tremulassem em cores.

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